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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - ESTRADAS
Plano para revitalizar os Caminhos do Mar (4)

Em agosto de 1975, a Prefeitura do Município de São Bernardo do Campo e a Protur - Turismo de São Bernardo do Campo S.A. publicaram o livrete ilustrado Projeto Lorena - Os Caminhos do Mar: Revitalização, Valorização e Uso dos Bens Culturais, reunindo informações e imagens sobre essas estradas, num projeto preparado pelo doutor Benedito Lima de Toledo, então professor de História da Arquitetura da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. Prossegue a transcrição do texto, com as imagens e as legendas originais:


RUÍNAS DA CALÇADA DO LORENA - Ruínas existentes à margem da Calçada do Lorena tal como encontradas. Presumivelmente de um antigo pouso

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3) Importância do patrimônio natural e cultural da área

3.1. Patrimônio Cultural

O trecho da Serra de Paranapiacaba, compreendido entre o Rio das Pedras e o Rio Perequê, que descem a Serra buscando o Rio Cubatão, abriga diversas vias e restos de caminhos, da maior importância na história de São Paulo e do Brasil. Nesse setor da encosta foram abertos sucessivamente o Caminho do Padre José (trilha utilizada por Anchieta), a Calçada do Lorena (utilizada por D. Pedro I, na viagem de 7 de setembro de 1822), a Estrada da Maioridade e o Caminho do Mar.

3.1.1. O Caminho do Padre José de Anchieta

Há poucas indicações do traçado exato da trilha utilizada pelo Padre José de Anchieta, praticamente ligação única, por séculos, com o planalto. Sabe-se que se desenvolvia pelo Vale do Perequê. Um documento de 1775 todavia menciona uma segunda trilha pelo Vale do Rio das Pedras. Parece que, em fins do século dezoito, essas duas trilhas foram usadas simultaneamente até a construção da Calçada do Lorena, que se desenvolve precisamente no divisor de águas dos rios das Pedras e Perequê.


PLACA DO PONTILHÃO DA RAIZ DA SERRA - O Caminho do Mar é na verdade
a primeira estrada de rodagem sul-americana pavimentada de concreto,
obra concluída no governo de Carlos de Campos

3.1.2. A Calçada do Lorena - A Estrada da Independência

Era a melhor estrada do Brasil daquela época e, como ela, poucas eram vistas na Europa, segundo depoimento de viajantes do tempo. Pela Calçada do Lorena subiu o Príncipe na memorável viagem de 7 de Setembro. A Calçada do Lorena é a Estrada da Independência. Já o Imperador Pedro II subiu, em 1842, por outra estrada (a qual - por ter sido aberta à época de sua elevação ao trono - recebeu o nome de Estrada da Maioridade), cujo traçado foi adaptado, no governo de Washington Luiz, ao tráfego de automóveis, recebendo o nome atual de Caminho do Mar.

Subsistem, ainda, em meio à densa vegetação da Serra do Mar, trechos da calçada construída em 1792, com curioso traçado em zigue-zague e pavimentação de pedra. Situada entre o Rio das Pedras e o Rio Cubatão, trecho mais árduo da ligação São Paulo com o Porto de Santos, essa estrada destinava-se a dar escoamento aos produtos das terras de "serra-acima", principalmente o açúcar.

A iniciativa de sua construção coube a Bernardo José Maria de Lorena, governador da Capitania de São Paulo de 1788 a 1798, tendo sua execução ficado a cargo dos oficiais do Real Corpo de Engenheiros. A obra ficou conhecida por Calçada do Lorena. Esse empreendimento assinalou o início da constituição de uma infra-estrutura destinada a colocar São Paulo no comércio internacional.

Essa calçada veio romper o isolamento em que se encontravam os paulistas devido às péssimas ligações com o litoral. E o que mais surpreendeu a população foi a técnica empregada na pavimentação: o calçamento com lajes de pedra. A nova técnica, desconhecida nas estradas da capitania, veio assegurar o trânsito permanente de tropas de muares que, por essa época, principiavam a ser largamente empregadas no transporte de carga.

Anteriormente, a precariedade das trilhas era o pesadelo dos viajantes, e a rede, carregada por dois índios, única alternativa para quem não se dispusesse a subir a serra a pé. Toda a carga era, igualmente, transportada em ombro de índio.

Ao assumir o governo, em 1788, Lorena compreendeu que, dadas as condições climáticas reinantes na região, o problema maior seriam as enxurradas, a lama e os atoleiros, tendo qualquer técnica que pressupor a solução desse problema. Daí o emprego da pedra, técnica capaz de enfrentar o elevado índice pluviométrico da Serra de Paranapiacaba, e com a qual estavam familiarizados os engenheiros militares, alguns deles vindos das obras de reconstrução de Lisboa e cercanias.

Esses engenheiros militares, enviados originariamente para trabalhar na demarcação de fronteiras, dando cumprimento ao Tratado de Santo Ildefonso, acabaram por ser responsáveis por notáveis trabalhos empreendidos na Capitania, como a elaboração do primeiro plano urbanístico da cidade de São Paulo, e de seu primeiro chafariz, erigido pelo Thebas no Largo da Misericórdia.

Até a construção da "Estrada da Maioridade" em 1840, que já permitia o trânsito de carros, a Calçada do Lorena assegurou a ligação de São Paulo com Cubatão. A partir de então, e mesmo continuando a ser utilizada pelas tropas de mulas, foi conhecendo um progressivo abandono, até o golpe final, representado pela construção da estrada de ferro.

No governo do Morgado de Matheus (1765-1775), dentro de sua política de estimular o povoamento da Capitania, com a criação de novos núcleos urbanos, a agricultura recebera grande estímulo, como meio de fixação dos colonos à terra. Sob este prisma, o açúcar teve notável papel. Pode-se afirmar que, por essa época, todos os bairros ou povoados do "quadrilátero açucareiro" tiveram, praticamente, sua origem ou desenvolvimento ligado à cana.

Esse quadrilátero - formado por Sorocaba, Piracicaba, Mogi-Guaçu e Jundiaí - abrange a área entre os rios Mogi, Piracicaba e Tietê. Na carta que endereçou ao vice-rei em 1791, dando conta dos melhoramentos que introduzira no caminho de São Paulo a Santos, Lobo Saldanha, que governou a Capitania de 1775 a 1782, conta que recebera "donativos gratuitos" das Câmaras de São Paulo, Santos, Itu, Sorocaba, Parnaíba, Jundiaí, Mogi-Mirim e Mogi-Guaçu. Documento que define, claramente, a região produtora.

Entre a base da serra e o porto de Cubatão foi construído um aterro, obra de Gama Lobo, que governou a Capitania sucedendo Cunha Menezes. O atual Caminho do Mar aproveitou esse aterro entre o pontilhão sobre o córrego do Cafezal na Raiz da Serra e o rio Cubatão, passando pelo monumento conhecido por "Cruzeiro Quinhentista".

3.1.2.1. Uma nova fase

A Calçada do Lorena abre uma nova fase na história dos caminhos da Capitania de São Paulo. Na verdade, sucede a caminhos que pouco mais eram do que as primitivas trilhas indígenas. Essa ligação, vital para a economia da Capitania, já é uma estrada cuja execução foi precedida por levantamentos topográficos, hidrográficos e observações registradas pelos oficiais do Real Corpo de Engenheiros.

Representa, por tudo isso, um verdadeiro marco, dos mais significativos, na história da evolução da tecnologia no Brasil.

A 15 de fevereiro de 1792, Lorena escrevia a Martinho de Mello Castro dando conta da conclusão da obra, onde transparece seu justificado orgulho: "Está finalmente concluído o Caminho desta cidade até Cubatão da Vila de Santos, de sorte que até de noite se segue viagem por ele, a serra é toda calçada, e com largura para poderem passar tropas de bestas encontradas sem pararem; o péssimo caminho antigo, e os precipícios da Serra bem conhecidos, eram o mais forte obstáculo contra o comércio; como agora se venceu, tudo fica mais fácil".

No ofício de 15 de fevereiro, Lorena fala de um obelisco colocado no Pico da Serra e diz que acompanha "este ofício o mapa topográfico de todo o caminho", o que constitui uma informação de maior importância: revela que havia um plano da estrada, o que não era usual.

A administração de Lorena inaugurou uma nova fase na história dos caminhos. A partir dela, a comunicação entre os núcleos urbanos principiou a ser feita, não simplesmente por antigas trilhas dos naturais, como até então se fizera, mas por estradas abertas com base em levantamentos levados a efeito por profissionais habilitados e com traçado estabelecido, considerando-se, além da topografia, a natureza do solo da região e outras peculiaridades locais, como o caso da Ponte de Cubatão, cujas bases foram executadas em pedra, devido à presença de gusano na água.

Esses levantamentos eram tão cuidadosos que uma carta topográfica chega a incluir um "Mapa das madeiras de lei que com maior abundância se acham nos rios reservados para os cortes reais", onde são anotados os nomes, quantidade (freqüência de ocorrência), grossura, comprimento e descrição de qualidades e préstimos, o que constituía guia seguro para os construtores e é um documento de grande interesse para estudo de nossa flora.

3.1.2.2. Uma façanha de Engenharia

Com o traçado da Calçada do Lorena, os oficiais do Real Corpo de Engenheiros realizaram uma façanha surpreendente: construíram uma estrada que vence a serra de Paranapiacaba sem cruzar, uma vez sequer, um curso d'água.

Nessa região, o índice pluviométrico é dos mais elevados do País. Em conseqüência, a serra é cortada por inúmeros riachos, alguns dos quais dão origem a belíssimas cascatas de pequeno volume.

Nesse quadro natural, a manutenção de uma trilha sempre foi empresa ingrata.

O levantamento topográfico da costa da capitania permitiu a elaboração de um mapa com tal rigor que os ingleses, no início do século XIX, surpresos com sua exatidão, mandaram-no estampar. Com esse levantamento, puderam os engenheiros militares escolher com segurança a região por onde conduzir a estrada, dispensando inteiramente o uso de pontes, em meio à complexa rede de drenagem natural da serra.

Para tanto, elegeram um contraforte, divisor natural de águas, cujo único inconveniente era sua forma abrupta, problema solucionado com o engenhoso recurso do desenvolvimento em zigue-zague, com o que lograram atingir uma declividade aceitável para trânsito de mula.


CALÇADA DO LORENA - Trecho de Planalto compreendido entre o Rio das Pedras e o Monumento do Pico. Nota-se claramente a faixa central mais regular e as faixas laterais inclinadas para o centro

3.1.2.3. Características técnicas

Resumidamente, podemos destacar alguns aspectos da execução da Calçada:

PAVIMENTAÇÃO: As pedras do piso são de formato irregular, as maiores medindo cerca de 40 centímetros de dimensão, entremeadas por outras menores que dão uniformidade ao conjunto. A face superior é a mais regular. As pedras têm em média 20 centímetros de altura, sendo os interstícios preenchidos por pedras menores e areia grossa. Esta camada se assenta sobre outra composta de saibro e pedregulho, cuja espessura varia em torno de 10 centímetros.

Antes do calçamento de pedra, o uso de saibro (obtido na ladeira de Tabatingüera) era muito difundido na cidade de São Paulo, sendo o piso executado com pedregulho e saibro "pisado a masso". Alguns viajantes registraram o mesmo procedimento em ruas do Rio de Janeiro.

No trecho do planalto, entre o Rio das Pedras e o Pico, que foi o que se manteve em melhores condições, pode-se observar 5 faixas distintas no piso da Calçada:

a) uma faixa central de largura variando entre 60 e 80 centímetros composta de pedras mais largas e regulares que lembram a capistrana mineira;

b) duas faixas laterais de pedras menores regulares e menores que a faixa central;

c) duas faixas de bordo, onde as pedras, mais volumosas, têm a face superior inclinada em direção ao centro. Dessa forma, o centro da Calçada apresenta um pequeno desnível em relação aos bordos. A largura da calçada varia de 3,20 metros a 4,20 metros no planalto. No trecho de 3,20 metros o desnível em relação aos bordos é de cerca de 10 centímetros; nos trechos mais largos esse desnível chega a 15 centímetros.

CORTES E ATERROS: No planalto, a estrada se desenvolve parte sobre aterro e atravessa cortes em trincheira, onde o talude lateral chega a 5 metros de altura. Logo a seguir, na serra, começam as bruscas mudanças de direção, os zigue-zagues. A Calçada corta o Caminho do Mar em três pontos. Logo abaixo do padrão do Lorena, terceiro ponto de cruzamento, a Calçada passa por uma região onde o terreno sofreu alterações posteriores, mas reaparece logo abaixo com seu zigue-zague, seus canais para escoamento de água, seus muros de arrimo, tais como aparecem em descrição feita por Frei Gaspar.

O traçado da estrada, enfim, revela cuidados técnicos surpreendentes. Percorrer a Calçada do Lorena atualmente é uma experiência, por muitos motivos, capaz de provocar tanta admiração como aos deslumbrados paulistas do século XVIII.

3.1.2.4. Iconografia

O mais importante documento relativo à Calçada do Lorena é, por certo, o "Mapa topográfico de todo o caminho" elaborado pelos próprios autores da estrada e do qual Lorena enviou cópia a Martinho de Mello Castro, acompanhando a carta que em 15 de fevereiro de 1792 enviara àquela autoridade, dando conta da conclusão da obra. Não é impossível que esse mapa ainda venha a ser localizado em algum arquivo em Portugal.

Esses autores nos legaram outras notáveis peças cartográficas onde, devido à escala, a Calçada aparece em tamanho reduzido.

Hercules Florence fixou um flagrante da Calçada num belo desenho, a partir do qual Oscar Pereira da Silva pintou um quadro a óleo. Fletcher, co-autor do famoso Brazil and Brazilians, ilustrou essa obra com gravuras feitas na Filadélfia por Van Ingen & Skider a partir de "sketches and daguerreotype views taken on the spot", das quais se destaca uma vista da serra e da ponte de Cubatão.

Mas, a obra de dois exímios desenhistas ingleses somente agora começa a vir à tona: são os trabalhos de Burchell e Landseer, ambos integrantes da missão de Sir Charles Stuart, o qual, como se recorda, veio ao Rio negociar o reconhecimento de nossa independência.

Landseer nos deixou uma obra "tão importante e tão fiel quanto as de Debret e Thomaz Ender" e deste desenhista, além de um artigo na revista do IPHAN, tivemos, em 1972, uma edição muito bem cuidada, que nos revela suas superiores qualidades. Haja vista os tropeiros e tropas que desenhou no Cubatão. É incrível que desenhos dessa importância tenha permanecido inéditos por quase 150 anos.

3.1.2.5. A mais notável viagem 

A situação de São Paulo notada por D'Alincourt, isto é, uma cidade protegida pelo baluarte da Serra do Mar, não teria porventura entrado nas cogitações do Príncipe Regente ao preferir a longa e aventurosa cavalgada de agosto de 1822, quando tinha à sua disposição fragatas e tropas no Rio, como afirma na carta de 3 de abril que, de São João Del-Rei, enviara a José Bonifácio?

A viagem por mar pouparia a longa viagem (de 14 a 25 de agosto) por terra. Ainda mais se considerarmos que uma das alegadas razões de sua posterior visita a Santos era inspecionar as fortalezas. Seu receio pela situação em São Paulo ficou patente pela sua prudência em acampar na Penha e mandar dois observadores se informarem da situação antes de entrar na cidade. É verdade que todos seus biógrafos assinalam sua grande destreza de cavaleiro e sua permanente disposição para cavalgadas. Mas a sugestão fica apenas para estudo.

A 5 de setembro tomou o Príncipe o caminho do Mar que se iniciava na sede do governo, no Pátio do Colégio, seguia pelas ruas do Carmo e Boa Morte, cruzava o córrego do Lavapés, passava pelo Ipiranga, seguia para o Zanzalá e no "pico" tomava a Calçada do Lorena rumo ao Cubatão e Santos.

A 7 de setembro voltava, cavalgando sua "baia gateada". Como todos os viajantes que subiam pela Calçada do Lorena, cavalgava uma besta, esse dócil animal que assegurava a ligação com o porto de Santos. A do Príncipe, segundo testemunhas oculares, era uma "bela besta baia", sonegada à história nas representações artísticas.

"Na localidade de Moinhos foi alcançado pelos emissários vindos do Rio de Janeiro. Alvoroçado, o Príncipe galopou em direção a São Paulo, indo encontrá-los no alto da colina próxima ao Ipiranga". Assim, a Calçada do Lorena conheceu a sua mais notável viagem. Parece até que - dentro da paisagem que todos os viajantes anotaram como das mais belas do mundo - a Calçada, certamente a melhor do Brasil (e como ela poucas eram vistas na Europa, segundo os mesmos viajantes), conhecera seu real destino: ser a Via da Independência, anseio de um povo cujo intérprete foi nosso mais insigne cavaleiro.

3.1.2.6. Uso ao longo do tempo

Depois de ter sido a via por onde se iniciou a colocação dos produtos de São Paulo no comércio internacional - inicialmente o açúcar e depois o café -, após ter conhecido a memorável viagem de 7 de setembro, a Calçada foi relegada ao abandono, uma vez concluída a Estrada da Maioridade.

Muito tempo depois conheceu uma nova utilização: ser estrada de serviço para as concessionárias de serviços públicos. Assim, às margens foram plantados dezenas de postes de telefone, alguns dos quais ainda subsistem. Recentemente, foi a vez da Refinaria de Cubatão, que não contente com o arrasamento que promove sistematicamente da paisagem e do patrimônio cultural de Cubatão, instalou em plena Calçada o incinerador (flare) com o qual marca melancolicamente sua presença na serra.

3.1.2.7. Turismo cultural

Mas, como no famoso conto, lá está, adormecida, a bela calçada, à espera de sua reintegração como legítimo patrimônio cultural e histórico do povo paulista.

Essa estrada poderá vir a ser um dos mais atraentes pontos turísticos de São Paulo, desde que o Caminho do Mar seja dotado de indispensável infra-estrutura para apoio a essa nova função.

Mas, até que se constitua essa infra-estrutura - destinada, entre outras coisas, a dar segurança ao visitante -, as incursões serra-a-dentro devem ser evitadas pelos reais perigos que oferecem. Além disso, é imprescindível, antes, que se executem trabalhos de levantamento, para a sua restauração.

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