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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE - BIBLIOTECA - Na Capitania de S.V.
Washington Luís e a capitania vicentina (21)

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Além de governador paulista e presidente do Brasil, Washington Luiz Pereira de Souza foi escritor e historiador, sendo responsável pela construção dos monumentos históricos do Caminho do Mar, na subida da serra entre Santos e São Paulo, em 1922, para comemorar o centenário da Independência do Brasil.

Uma das suas mais importantes obras foi esta, Na Capitania de São Vicente, publicada em 1956 (um ano antes da morte do autor) pela Livraria Martins Editora, da capital paulista. Com 341 páginas mais 7 introdutórias, a obra foi impressa pela Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, também de São Paulo.

O exemplar de número 956 foi cedido a Novo Milênio para digitalização, pela Biblioteca Pública Alberto Souza, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. Páginas 263 a 277, com ortografia atualizada:

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Na Capitania de São Vicente

Washington Luís

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Capítulo XX - Fim do primeiro governo de d. Francisco de Souza – algumas bandeiras – volta de d. Francisco de Souza após a divisão do governo geral do Brasil em dois, cabendo-lhe a repartição do Sul – Espírito Santo, Rio de Janeiro e São Vicente, com a administração das minas a descobrir

A Felipe II, em 1594, sucedera Felipe III, no trono de Espanha.

Como sempre acontece nas mudanças de governo, começou a derrubada sob o fundamento de que os homens bons haviam sido intencional e maldosamente afastados da administração por vinganças, ódios, intrigas, só se aproveitando os venais, os incompetentes. Assim, também, iniciou-se uma regeneração no começo do reinado de Felipe III.

Mas a regeneração, porém, como sempre também acontece, não se faria. Foi assim em todos os tempos, foi assim também nesse fim do século XVI em Espanha.

Grande teria sido o trabalho em Madri para que d. Francisco de Souza fosse substituído no governo geral do Brasil.

Mas na península ibérica, demoradas eram as resoluções e demoradíssimas eram as suas execuções. Afinal apareceu a nomeação de Diogo Botelho para governador geral do Brasil, lugar que durante 12 anos d. Francisco de Souza ocupara.

As viagens para o Brasil eram, então, raras, precárias, difíceis e demoradas. Vindo para o Brasil, Diogo Botelho aportou em Recife, onde chegou a 1º de abril de 1602 e aí se deteve mais de ano e meio, para compor negócios da capitania de Pernambuco, só vindo a tomar o governo geral do Brasil, em Salvador, na capitania da Baía de todos os Santos, por outubro de 1603. Só, então, Álvaro de Carvalho, o substituto lá deixado por d. Francisco de Souza, largou o governo interino.

Durante algum tempo d. Francisco de Souza continuou em S. Vicente, com as prerrogativas de governador geral.

Mas ao conhecimento da vila de S. Paulo já havia chegado a notícia da vinda do novo governador e das suas disposições reacionárias ou regeneradoras, com grandes penas contra os que fossem ao sertão em guerra ao gentio. Na sessão de 22 de março de 1603 (Atas, vol. 2º, págs. 125 e 126) tendo conhecimento que havia sido publicado um mandado do capitão e ouvidor da capitania proibindo a entrada ao sertão e mandando devassar os que lá tinham ido, a Câmara de S. Paulo, muito precavidamente, querendo afastar de si qualquer responsabilidade, protestou contra a expedição de Nicolau Barreto com perto de 300 homens e mais gentio e escravos, por ser isso contra a lei de Sua Majestade, tendo a vila de São Paulo os guaruminis à porta, com a possibilidade de guerra estrangeira por mar, ficando as minas sem benefício e todos sem defesa. A Câmara de 1603 era, já se deduz, composta de oficiais, outros que tinham dado autorização para a entrada de Nicolau Barreto.

Não querendo também aceitar a responsabilidade da entrada o capitão-mor e ouvidor, Roque Barreto, no dia seguinte ao protesto, a 23 de março de 1603, apresentou-se à Câmara e declarou terminantemente que ele "não mandara dar guerra ao gentio do sertão, salvo alimpar ladroeiras que fazem muito mal e dano a esta capitania e por lhe parecer serviço de Sua Majestade e bem da terra, e tendo por fim juntamente mandar chamar seu irmão Nicolau Barreto, para se recolher com toda a gente, acrescentando que tal diligência não se poderia fazer com um ou dois homens, mas com a gente necessária, por haver contrários no caminho" (Atas, vol. 2.º, págs. 126 e 127). Câmara e capitão-mor estavam alarmados e procuravam justificações.

Os boatos deveriam fervilhar na pequena povoação, fazendo a guerra de nervos com ameaças de devassas tremendas, penas severíssimas, confiscos etc.

Começou a derrubada; as autoridades locais, menos as eletivas, que entretanto já eram outras, foram mudadas pelo donatário e pelo governador geral.

Foi no momento o triunfo da catequese religiosa sobre a colonização leiga com a escravização do indígena.

A Câmara assustou-se e resolveu dirigir-se diretamente ao governador geral, Diogo Botelho, e o fez em carta escrita a 19 de julho de 1603, na qual, dizendo a verdade, procurou ser hábil (Atas, vol. 2.º, pág. 130).

Nessa longuíssima carta, com ingenuidade manhosa, entenderam os oficiais da Câmara de avisar, como se Diogo Botelho ignorasse o regime das capitanias, que o governador geral havia feito o provimento dos cargos de capitão-mor e ouvidor, sem dúvida por não estar informado que tal nomeação, pelo foral e carta de doação de Sua Majestade a Martim Afonso e aos seus sucessores, pertencia ao donatário da capitania de S. Vicente, então Lopo de Souza, a quem a Câmara não queria dar motivo de queixas.

Informavam mais que os moradores da capitania, muito pobres, eram idos ao sertão a mandado do capitão-mor Roque Barreto, a requerimento das Câmaras, com parecer do governador geral passado d. Francisco de Souza; que essa entrada de Nicolau Barreto, muito perigosa e de pouco proveito, fora feita à custa dos moradores pela muita necessidade em que todos estavam para cultivo das terras e para proverem a própria subsistência. Insinuavam que se ao sertão fosse a deliberação das severas medidas punitivas, cuja notícia já então corria, nenhum dos que lá estavam, voltaria à vila e de lá mesmo todos tomariam caminho do Pequeri (naturalmente pelo caminho trilhado pelos 700 índios referidos na carta do pe. J. Mansilla), que era província do Rio da Prata, do que resultaria o abandono das mulheres e filhos, ficando a terra sem moradores, as minas sem benefício e a colônia ao desamparo.

Davam a entender mais que o governador sabia que Sua Majestade, nas guerras que fazia, pagava a seus soldados e os sustentava; e nas guerras aos índios, nada lhes dava, e ainda lhes tirava o quinto das presas; e rogava, portanto, providências para que os homens "voltassem seguros e quietos às suas casas, a fim de que não se perdessem muitas almas".

Nos livros da Câmara não se encontram registradas as provisões das novas nomeações, registro que os oficiais da Câmara julgavam indispensável (Atas, vol. 2.º, pág. 129).

Os livros da Câmara de S. Paulo só contêm em 1604 as atas dos dias 1, 3 e 19 de janeiro, não havendo nenhuma do ano de 1605 e começam as de 1606 a 24 de junho. Da mesma forma no Registro Geral faltam as folhas relativas a 4 de agosto de 1602 até 1607. Há nisso singular coincidência.

Sabem-se, porém, os nomes dos novos nomeados pela declaração de sua presença em diversos atos oficiais durante esse período.

Assim, por exemplo, na sessão em que se escreveu a carta, cujo resumo acaba de ser feito, se declara a presença do sr. ouvidor Luís de Almada Montearroio (Atas, vol. 2.º, págs. 131 e 133). E na sessão de 26 de dezembro de 1606 há o traslado da provisão de capitão-mor a Antônio Pedroso e a Pedro Vaz de Barros, da qual se infere que estes haviam sido nomeados por 1602 ou 1603, conforme já analisei (Atas, vol. 2.º, pág. 174).

Nos livros da Câmara de S. Paulo, nada se escreve sobre a volta da bandeira de Nicolau Barreto; mas nos inventários, hoje no Arquivo do Estado de S. Paulo, encontram-se, nas descrições de bens, os nomes de muitos temiminós da entrada de Nicolau Barreto. Para d. Francisco de Souza, essa expedição foi um fracasso completo. Mas, tenaz no seu desejo de descobrir as minas, de cuja existência estava certo, o seu ânimo não se abateu.

Conservou-se na vila de S. Paulo ainda durante anos, ainda mesmo depois de terminado o seu mandato. Isso se confirma com a ata de 9 de agosto de 1603, na qual os oficiais da Câmara acordaram em que "era necessário haver na vila uma mulher que vendesse porquanto vinha o sr. d. Francisco de Souza e gente com ele e para isso lhes pareceu bem Francisca Rodrigues, cigana, a qual foi dado juramento dos Santos Evangelhos" (Atas, vol. 2.º, págs. 132 e 133).

Ainda se confirma a sua permanência em S. Paulo num termo lavrado antes de setembro de 1603 (a requerimento do capitão Pedro Vaz de Barros, na casa da Câmara, em que tomaram parte o vereador Francisco Viegas, o juiz João da Costa e diante de d. Francisco de Souza) onde se lê que se praticou sobre a volta de quatro companheiros que vieram de Vila Rica do Espírito Santo, no Paraguai, e que para lá queriam voltar, mas temiam algum desastre por terem fugido alguns índios que consigo haviam trazido. Nessa reunião foi resolvido que, a bem do proveito, que se esperava da reabertura do caminho por terra entre S. Paulo e Vila Rica, para o comércio entre as duas vilas, ambas habitadas por cristãos e pertencentes ao mesmo rei, se desse a esses companheiros toda a ajuda de gente e de fazenda, pelo menos 15 a 20 homens, que ficassem conhecendo os sítios e inimigos (Atas, vol. 2.º, pág. 138). Tudo isso na presença de Luís de Almada Montarroio.

Esses companheiros eram espanhóis e chamavam-se: João Benitez de la Cruz, Pero Caminha, Pero Gonçales e Sebastião de Peralta, despachados pelo seu capitão-mor, d. Antonio de Anhasque, e tinham vindo por terra pela antiga vereda entre S. Paulo e o Paraguai e se achavam em S. Paulo, pelo menos, desde 22 de novembro de 1603 (Atas, vol. 2.º, pág. 136).

Luís de Almada Montarroio, nesse ano de 1603, a 3 de novembro, fez registrar a renúncia do cargo de capitão-mor e ouvidor que exercia (Atas, vol. 2.º, pág. 137).

D. Francisco de Souza só deixou a capitania de S. Vicente, "quando uma ordem régia transmitida por Diogo Botelho a 19 de março de 1605 assim o determinou; e, então, se decidiu a transpor o oceano levando consigo mineiros, impedindo que comunicassem a quem quer que fosse o resultado de suas pesquisas, de indústria e prudência", seguindo para Madri diretamente onde se achegou ao duque de Lerma para realizar os planos que arquitetara, segundo Capistrano de Abreu (Prolegômenos ao Livro da História do Brasil por frei Vicente do Salvador, pág. 257).

"Muito se receava no Brasil, pelo muito dinheiro que havia gastado da fazenda de Sua Majestade, que ("a d. Francisco") lhe tomassem no reino estrita conta; como, porém, nada tomou para entesourar, antes do seu próprio gastou, como o outro grão capitão, não tratou el-rei senão de lhe fazer mercês. E porque ele não pedia mais que o marquesado das Minas de S. Vicente, o tornou a mandar a elas, com o governo do Espírito Santo, Rio de Janeiro e mais capitanias do Sul" – (História do Brasil, frei Vicente do Salvador, pág. 418).

Deixou S. Vicente, mas voltaria com maiores poderes ainda, como adiante se verá.

Diogo Botelho mandou para a capitania um mineiro-mor, Juan Munhoz de Puertos, com um ajudante Francisco Vilalva, que se apresentaram à Câmara de S. Paulo a 22 de agosto de 1603, para fazerem as diligências, ensaios, e fundições do ouro, prata e mais metais, conforme escrituras que traziam, porque no conselho real houve certas contradições ao ouro que o sr. dom Francisco mandou por Diogo de Quadros e outras pessoas (Atas, vol. 2.º, pág. 134).

No volume 2.º das Atas da Câmara de S. Paulo, págs. 173 e 174, está o traslado da provisão da nomeação de Antônio Pedroso de Barros e de Pedro Vaz de Barros, lavrada em Lisboa a 21 de novembro de 1605, e assinada por Lopo de Souza, donatário da Capitania de S. Vicente, como já foi analisado.

Na capitania de S. Vicente esmoreceu durante algum tempo a iniciativa das entradas ao sertão.

Ninguém melhor que a Câmara da Vila de S. Paulo poderia dar notícia do estado da capitania, como se vê na carta de 13 de janeiro de 1606, mandada a Lopo de Souza, o donatário, à qual pertencem os seguintes trechos curiosos:

"Já vossa mercê será sabedor como Roque Barreto sendo capitão mandou ao sertão 300 homens brancos a descer gentio e gastou dois anos na viagem com muitos gastos e mortes, e por ser contra uma lei de el-rei que os padres da companhia trouxeram, o governador geral Diogo Botelho mandou provisão para tomar o terço para ele, e depois veio ordem para o quinto; sobre isto houve aqui muito trabalho e grandes devassas e ficaram muitos homens encravados, que talvez haja nesta vila hoje mais de 65 homiziados, não tendo ela mais de 190 moradores; se lá for informado de que a gente desta terra é indômita, creia vossa mercê o que deve aos seus, que não há quem sofra tantos desaforos".

E dizia mais a Câmara, no começo da carta referida:

"O que de presente se pode avisar, muito papel e tempo eram necessários, porque são tão várias e de tanta altura as coisas que cada dia sucedem que não falta matéria de escrever e avisar, e, melhor se poderá dizer, de chorar... Vai em tal maneira razão que pelo eclesiástico e pelo secular não há outra coisa senão pedir e apanhar, e um que nos pedem e outro que nos tomam tudo é seu e ainda lhe ficamos devendo. E se falamos prendem-nos e excomungam-nos e fazem de nós o que querem, que como somos pobres e temos o remédio tão longe não há outros recursos senão abaixar a cerviz e sofrer o mal que nos põem".

Entretanto a Câmara confiava ainda na sua terra e na sua gente e procurava estimular o indiferente donatário acrescentando:

"Assim senhor, acuda, veja, ordene e mande o que lhe parecer, que muito tem a terra que dar: é grande, fértil de mantimentos, muitas águas e lenhas, grandes campos e pastos, tem ouro, muito ferro e açúcar, e esperamos que haja prata pelos muitos indícios que há; mas faltam mineiros e fundidores destros. E o bom governo é o que nos falta de pessoas que tenham consciência e amor de Deus, e valia, que nos mande o que for justo, e nos favoreçam no bem e castiguem no mal quando o merecermos, que tudo é necessário" (Az. Marques – Apontamentos. Registro Geral, vol. VII, págs. 110 e 114).

***

Durante a ausência de d. Francisco de Souza não foram muitas as entradas ao sertão, ou pelo menos, não constam elas nos papéis locais. Os sertanistas estavam escarmentados com as severas medidas judiciais mandadas pôr em prática pelo governador geral Diogo Botelho. Nas Atas da Câmara, nos Inventários e Testamentos, pouca coisa se encontra a respeito.

Entretanto conhecem-se, e menciono, não só as entradas de Francisco Barreto, de Belchior Carneiro e de Martim Roiz Tenório, nas quais esses três cabos pereceram, como as de outros de que falarei. Essas, esporádicas e clandestinas, foram feitas antes das entradas metódicas no Guairá, que constituirá uma outra parte deste estudo.

***

Martim Rodrigues Tenório era espanhol. Em 1589 estava casado com Suzana Rodrigues, viúva de Damião Simões, sapateiro (Inv. e Test., vol. 1º, pág. 13) da qual teve quatro filhas. Elvira, casada com o carpinteiro Cornélio Darzan, Maria, Ana da Veiga e Suzana (com 15 anos em 1612) casadas, respectivamente, com Clemente Álvares, também investigador de minas do Jaraguá, Teodósio da Fonseca e João Pais. Teve mais três bastardos.

Na vereança de 6 de setembro de 1608 consta que os oficiais da Câmara reuniram o povo para eleger um vereador para substituir Martim Rodrigues, que era ido ao sertão (Atas, vol. 2º, pág. 217). De fato, em 1608, fez ele uma entrada "ao sertão onde estavam os bilreiros", partindo do porto do Anhembi, assim o declaram Lourenço Gomes Ruxaque e Manuel Dias, em seus testamentos (Inventários, vol. 2º, pág. 358 – vol. 11, pág. 23). Foram testemunhas do testamento de Lourenço Gomes Ruxaque, Baltasar Gonçalves, João de Santana, Braz Gonçalves, Manuel de Oliveira, João Paes e o capitão Martim Rodrigues (idem, pág. 360) e no de Manuel Dias, além de alguns mencionados no testamento de Ruxaque, Diogo Martins, Manoel de Oliveira.

Parece que essas pessoas, estando no porto do Rio Anhembi, como testemunhas dos testadores, que iam na companhia de Martim Roiz Tenório, também fizeram parte da sua bandeira.

Parece também que a maior parte dessa bandeira desapareceu, pois que ao se iniciar o inventário de Martins Rodrigues Tenório, alguns anos depois, o escrivão declara em 1612, "que ele era ido ao sertão e se dizer que era lá morto" (vol. 2º, pág. 5). Mais uma bandeira que o sertão consumia.

Sobre a entrada de Belchior Carneiro o seu inventário (vol. 2º, págs. 111 e seguintes) ministra algumas informações, e também as fornecem as atas da Câmara da vila de S. Paulo numa longa, se bem que muito confusa, vereança (Atas, vol. 2º, págs. 234 a 237).

Belchior Carneiro era, como já ficou dito, filho de Lopo Dias, português, e de sua primeira mulher, Beatriz Dias, filha ou neta de Tibiriçá.

Foi casado com Hilária Luiz Grou, filha de Domingos Luiz Grou e de Maria da Penha, que era filha do cacique de Carapicuíba.

Ele era meio sangue indígena e unido a meio sangue também indígena.

Foi cabo da bandeira que em 1607 entrou pelo sertão dos bilreiros a cativar índios a mandado de Diogo de Quadros, provedor das minas, a fim de arranjar mão-de-obra para uma fábrica de ferro que havia em Ebirapoeira, na qual se fabricavam coisas para resgate.

Belchior Carneiro tomou parte na entrada de Antônio de Macedo e de Domingos Luiz Grou, seu sogro, a qual na volta, fora desbaratada perto do rio Jaguari; fora um dos membros da companhia de Nicolau Barreto e, parece, fizera uma entrada por sua própria conta no sertão dos índios temiminós (Inv., vol. 2º, pág. 111).

Por estar de caminho para fora, Belchior Carneiro fez o seu testamento em 8 de março de 1607 e deixou-o em mãos de seu cunhado Belchior da Costa, que por muitos anos foi escrivão na vila de S. Paulo.

Era um experiente sertanista e por isso foi escolhido por Diogo de Quadros para buscar gente para o engenho de ferro. Levara em sua bandeira cunhas, escopros, facões, e mais ferramentas de ferro para resgatar com os índios (vol. 2º, pág. 198).

A bandeira de Belchior Carneiro, a mandado de Diogo de Quadros, com o fim ostensivo de descobrir minas de ouro, prata e mais metais, mas com o objetivo de cativar índios, era composta de 40 a 50 homens brancos e mais índios auxiliares [1].

Apesar de ter tomado diversas notas em um canhenho, que se acha junto aos autos do seu inventário, nada escreveu sobre o roteiro da expedição que dirigiu. Ninguém a tal respeito escrevia, porque essas entradas eram fatos corriqueiros na capitania. Essas notas se referem principalmente ao lado financeiro da entrada. Mas falam em créditos e débitos feitos para realizá-la, e designam vagamente lugares em que lá estiveram. Assim falam em um dom que deveria ser feito ao principal dos bilreiros, em um facão para comprar uma peça dos bilreiros; um soldado de bandeira apresenta-se credor do valor de 150 mãos de milho que lhe deu, quando estavam entre os bilreiros. A expedição fora resgatar com bilreiros. Bilreiros, segundo alguns cronistas (Simão de Vasconcellos, João de Laet), eram nomes portugueses que em tupi designavam os ibirajaras; porque usavam como armas paus ou lanças de madeira.

Segundo a carta do padre José de Anchieta (Cartas Jesuíticas, vol. 3º, págs. 79 a 83), os irmãos Pedro Correia e João de Souza, enviados aos ibirajaras, foram trucidados por esse gentio. Parece que essas tribos estavam então vizinhas dos carijós.

A bandeira de Belchior Carneiro teria ido, portanto, a resgatar ao Sul de S. Paulo.

Mas no inventário de Belchior Carneiro (Inv. e Test., vol. 2º, pág. 158) feito no sertão, se declara que foram entregues a seu cunhado, Mateus Luiz Grou, como curador, 26 peças do gentio temiminó que couberam a Belchior Carneiro, de suas partilhas, que juntas a seis de casa, faziam ao todo 32. Tal declaração parece indicar que o sertão em que eles estavam, era dos temiminós, e nessas condições poderia ter sido na bacia do Rio S. Francisco onde também povoaram os temiminós, em 1603, ao tempo da penetração da bandeira de Nicolau Barreto, bandeira da qual fez ele parte, e conhecendo, portanto, o roteiro. É possível também que esses temiminós, nômades, já vencidos, se tivessem retirado para o Sul da capitania de S. Vicente.

Nessa expedição Belchior Carneiro morreu no sertão a 26 de junho de 1608; mas não se declara qual a causa de sua morte; assumiu, então, o comando da bandeira Antônio Raposo, o velho, que mandou fazer, no mesmo sertão, o inventário dos bens encontrados aí de seu antecessor. Por esse inventário pode-se constituir a lista de alguns dos bandeirantes que lá estiveram, pelos diversos termos lavrados onde se encontram os respectivos nomes dos arrematantes e fiadores.

Em 29 de dezembro de 1608, já era conhecida a morte desse cabo, pois que seu cunhado Belchior da Costa apresentou ao juiz o inventário (vol. 2º, pág. 112) feito no sertão e nesse dia se iniciou o legal na vila de S. Paulo.

Há uma circunstância interessante a notar, que já constituía direito costumeiro na vila de S. Paulo, a qual se refere à garantia da liberdade dos índios. E é a ela que a viúva Hilária Luiz alude quando requer que as peças do gentio, pertencentes a seu marido, trazidas do sertão, sejam lançadas como peças forras, e partilhadas entre seus filhos. O governador d. Francisco de Souza, já de volta na terra a 4 de outubro de 1609, declara "que não se podem lançar em partilhas nenhumas peças por serem forras". O juiz de órfãos replica a esse despacho dizendo que os índios e serviços forros não se podem pôr em inventários nem partilhá-los, mas devem eles ser entregues à viúva para com eles sustentar seus filhos. O governador manda ouvir a respeito o juiz dos índios, Estevão Ribeiro, o dos órfãos, Gaspar Conqueiro, e ambos informam que é uso e costume da terra lançarem-se as peças em inventário e entregá-las à viúva para sustento dos órfãos. À vista desses pareceres, manda o governador lançar as peças no inventário (vol. 2º, págs. 163 a 165).

***

Em Madri, D. Francisco de Souza conseguira que o governo geral do Brasil fosse dividido em dois, continuando a sede do primeiro em Salvador na Bahia, e que o segundo fosse constituído pelas capitanias do Espírito Santo, Rio de Janeiro e S. Vicente, abrangendo as minas a descobrir, sua preocupação máxima, sob a denominação de Repartição do Sul. Desta foi ele nomeado governador, assim na administração da justiça, como da fazenda e das minas e imediatamente somente sujeito ao rei, com muitos privilégios e promessas de mercês. Havia convencido ao governo de Felipe III da certeza que nutria do descobrimento das famosas minas, que iriam abastecer o tesouro espanhol.

Fez-se de vela a 22 de janeiro de 1609, gastou 28 dias na viagem e aportou em Recife a 19 de fevereiro desse mesmo ano (C. de Abreu).

Acompanhado do escrivão de sua Câmara, João de Santa Maria, fez em Pernambuco, a 4 de março de 1609, trasladar a comunicação da divisão do governo-geral em dois, do qual seria ele o governador da repartição do Sul, e fez seguir a participação régia dessa divisão ao governador geral do Brasil, então d. Diogo de Menezes. Não tocou na Bahia. Quis evitar o encontro desagradável com o governador geral, cujos poderes ficaram diminuídos.

Pode-se seguir a sua viagem desde Pernambuco, na costa do Brasil, pelas atas da Câmara, que a foram registrando (Atas de janeiro de 1609). Em janeiro de 1609, a Câmara esperava a qualquer momento d. Francisco de Souza e o ouvidor-geral, e "mandou fazer o caminho do mar (vol. 2º pág. 232); a 25 de abril de 1609, ainda o esperava e o caminho do mar ainda estava por fazer (idem, pág. 242); a 26 de abril do mesmo ano, tiveram notícia certa de que d. Francisco de Souza já estava no Rio de Janeiro, e estavam todos moradores da Capitania apenados em fazer o caminho do mar (idem, pág. 243).

D. Francisco chegou afinal à capitania de S. Vicente, trazendo em sua companhia dois filhos, d. Antônio, o mais velho e d. Luiz, ainda menor.

A 3 de novembro de 1609 fez registrar nos livros da Câmara quatorze provisões régias que lhe davam na Repartição do Sul poderes idênticos ao do governador geral do Brasil, e mais os poderes de fazer fidalgos a quatro pessoas, a conceder o foro de cavaleiros da casa real a cem pessoas e o de moços da Câmara a outros cem, de conceder dezoito hábitos de Cristo, sendo doze com 20$000 de tença e seis com 50$000, podendo ainda nomear capitão e governador das minas, prover os ofícios de justiça, de provedor e tesoureiro, nomear mineiros e dar-lhes ordenado e ainda com ordem aos governadores do Rio da Prata e de Tucuman para o proverem de trigo e cevada. Todas essas provisões são dadas de 2 de março e 16 de junho de 1608 (Reg. Geral, vol. 1º, págs. 188 a 207).

***

D. Diogo de Meneses na Bahia conturbou-se e amargamente queixou-se ao rei de Espanha por ver separados do seu governo as capitanias do Espírito Santo e de S. Vicente, que incluía o Rio de Janeiro.

Julgou-se até afrontado, agravado e francamente manifestou os inconvenientes dessa separação, que dava a d. Francisco de Souza a administração de todas as minas a descobrir (Anais da Biblioteca Nacional, vol. 57, págs. 52 e 53).

Na confusão e ignorância geográfica, então existentes sobre as divisas entre as capitanias, as minas a descobrir poderiam estar situadas na parte do território do seu governo, o que causaria sérios conflitos administrativos, sem solução imediata e com grave prejuízo para todos. Esse era, sem dúvida, um grave inconveniente, mas condicional, dependendo do descobrimento das minas.

Mas o principal, e ele o acentuava, era que as três capitanias separadas eram pobríssimas, nada valiam por si, não poderiam se sustentar a si mesmas com governo próprio. Além disso o Rio de Janeiro era lugar desejado pelos franceses que, se o vissem fraco e debilitado pela separação, o acometeriam. E se não o fizessem aí estariam os rebeldes da Holanda e da Zelândia que o fariam. Dificilmente se acudiriam a tais ataques e mais difícil ainda seria desalojá-los se eles aí tomassem pé.

Esses dois graves inconvenientes eram indisfarçáveis, principalmente o primeiro tendo em vista a penúria, a miséria da terra que d. Francisco de Souza ia governar, mesmo que ela não fosse atacada por inimigos ou corsários. Essa repartição do Sul era, então, pobríssima. Essa era uma verdade incontestável.

D. Francisco de Souza, para a obra formidável, que trazia em mente, só poderia contar com os seus recursos pessoais, que eram sabidamente escassos, e com os subsídios de governador, que eram diminutos. Já havia sido substituído uma vez no governo, e o poderia ser ainda outra vez, o que sem dúvida enfraquecia a sua ação. Vinha ele a descobrir minas e a explorá-las, cujas despesas seriam enormes, cujas dificuldades seriam imensas, numa terra percorrida por índios selvagens, e habitada por mestiços desambiciosos ou por poucos reinóis ignorantes, sem mineiros experimentados, sem ensaístas capazes para achamento do ouro.

Só poderia contar com a confiança na sua ação, com a certeza inabalável de encontrar as minas, e com a audácia e experiência dos sertanistas no devassar o sertão; e esta mesma enfraquecida pelo escarmento das devassas anteriores ordenadas por Diogo Botelho e abalada pela propaganda dos jesuítas. Devia também esperar a manifesta má vontade de Diogo de Menezes, governador geral do Brasil, na repartição do Norte.

Nas poucas vilas, situadas na sua repartição, faltava tudo, até as comezinhas coisas para um viver frugal, rudimentar, já que não se podia pensar em conforto, no bem-estar que a vida exige, qualquer que ela seja.

As moradas dessas vilas eram na maior parte cobertas de palha, a Câmara não tinha casa própria onde fazer audiências, (Atas, vol. 2º, pág. 258 em 1610) nem a vila possuía a igreja paroquial (1. c. págs. 259, 273). O viver aí era duro e na própria alimentação havia privações.

A principal indústria da terra era a cativação do índio, em guerras perigosas, para cuidar das parcas criações de porcos e de gado, do plantio de algodão, de marmeleiros e de cereais para consumo local.

Os inventários dos principais da terra, feitos nesse tempo, demonstram à saciedade o desconforto, a pobreza, e miséria mesmo, dos habitantes desamparados da metrópole, ameaçados de cruéis guerras gentias, assolados continuamente por epidemias de varíola, de sarampo, de câmaras de sangue, sem médicos e sem farmácias que os curassem. Só tinham o amparo da religião dos padres jesuítas, cuja medicina consistia principalmente em sangrar.

A missão, que D. Francisco de Souza se tinha imposto, deveria fracassar, como fracassou.

Os documentos desse tempo, quer nos arquivos estaduais quer nos municipais, são silenciosos a respeito da ação de d. Francisco no governo da repartição do Sul da colônia. Guardam apenas vagas referências a ínfimas transações comerciais sobre trabalhos em minas e num engenho de ferro. O Registro Geral, durante esse período, acolheu apenas duas ou três provisões, para desaparecer em 1610 e só recomeçar em 1616.

Nesse seu segundo período governamental – 1609 a 1611 – nada fez ou pelo menos nada consta nos arquivos locais, cuja falta, nesse período, é sensível.

A 20 de maio de 1610, a seu pedido, a Câmara deu procuração a seu filho, d. Antônio de Souza, que ia a Portugal a "negociar e pedir algumas coisas a Sua Majestade para o bem deste povo" (Atas, vol. 2º, pág. 267) "sendo nessa ocasião portador de uma espada e de uma cruz de ouro, o que tudo os corsários no mar lhe tomaram", conforme relata frei Vicente do Salvador (H. B. pág. 419). E foi tudo que conseguiu nas minas dos arredores de S. Paulo.

"Nem o governador d. Francisco de Souza teve lugar de mandar outra com uma enfermidade tão grande que teve na vila de S. Paulo da qual morreu, estando tão pobre que me afirmou um padre da companhia, que se achava com ele a hora de sua morte, que nem uma vela tinha para lhe meterem à mão, si não a mandara levar do seu convento" (frei Vicente do Salvador, H. B., pág. 419).

Assim finou-se tristemente na pobríssima vila de S. Paulo, nos sertões de um quase deserto, um governador geral, hábil e pertinaz, um grande de Portugal, cuja casa ia por varonia até d. Afonso III, e que tornara ao Brasil, segunda vez, com poderes extraordinários, concedidos pelo monarca de todas as Espanhas. Não descobriu minas de ouro para seu rei, nem para si obteve o marquesado das Minas, tão ambicionado e tão prometido.

"A 12 de junho de 1611, na vila de S. Paulo, se ajuntaram na casa do conselho os oficiais da Câmara e sendo todos juntos, apareceu o senhor d. Luiz de Souza, filho que ficou do sr. Francisco de Souza, que foi capitão geral desta nova repartição do Sul e por ele foi apresentado um codicilo e nomeação, que o senhor seu pai lhe fizera em o deixar com adjuntos para que sirvam em ausência do senhor d. Antônio de Souza que ficava nomeado conforme provisão de Sua Majestade e que os ditos oficiais aceitaram por andar o povo alvoroçado e para evitar muitas inquietações que se aparelhavam sobre este caso". D. Luiz de Souza, ainda de menor idade, prestou o juramento sobre um missal (Atas, vol. 2°, págs. 291 e 292).

Assim lastimosa e melancolicamente terminou o segundo governo de d. Francisco de Souza na repartição do Sul das partes do Brasil.

Mas não terminaram as bandeiras, que continuaram e até recrudesceram mais tarde no Guairá, e que afinal descobriram as minas, como se verá adiante.


[1] Dela também fizeram parte, Antônio Raposo, o velho, Matias Gomes, Mateus Luiz Grou, Manoel Ribeiro Boto, João Moreira, Pascoal Delgado, Manoel Rodrigues, Luiz Ianes Grou, Estevão Raposo, o moço, Manoel Requeixo, Domingos Barbosa, Miguel Gonçalves e seu irmão Jeronimo Gonçalves; Lourenço Cabrera, Manoel Pires, Mateus Neto, Domingos Fernandes.