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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE - BIBLIOTECA - Na Capitania de S.V.
Washington Luís e a capitania vicentina (13)

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Além de governador paulista e presidente do Brasil, Washington Luiz Pereira de Souza foi escritor e historiador, sendo responsável pela construção dos monumentos históricos do Caminho do Mar, na subida da serra entre Santos e São Paulo, em 1922, para comemorar o centenário da Independência do Brasil.

Uma das suas mais importantes obras foi esta, Na Capitania de São Vicente, publicada em 1956 (um ano antes da morte do autor) pela Livraria Martins Editora, da capital paulista. Com 341 páginas mais 7 introdutórias, a obra foi impressa pela Empresa Gráfica Revista dos Tribunais, também de São Paulo.

O exemplar de número 956 foi cedido a Novo Milênio para digitalização, pela Biblioteca Pública Alberto Souza, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. Páginas 165 a 179, com ortografia atualizada:

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Na Capitania de São Vicente

Washington Luís

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Capítulo XII - As entradas ao sertão

Tomé de Souza, nomeado governador geral do Brasil construiu a cidade do Salvador. Com a pequena ajuda que esperava dos donatários, aos quais foram vagamente deixadas as suas doações, mas sobre as quais deveria e teria de influir poderosamente, foi ele uma espécie de donatário de legado amovível da capitania da Bahia, que depois da morte de Francisco Pereira Coitinho, voltara ao senhorio total do rei.

Pequena foi a sua ação na capitania de S. Vicente; mandou inspecioná-la em 1550, e a ela foi em 1553. Pouca coisa há a dizer sobre ele, bem como sobre os demais governadores, exceto D. Francisco de Souza e Mem de Sá, tendo em vista o limite imposto a este estudo que tem por objeto a Capitania de S. Vicente.

Como quer que seja, com o estabelecimento do governo geral se manteve a integridade do imenso território, e sob ele se ia fazer penosa e demoradamente o povoamento do Brasil.

Mas o rei de Portugal, não obstante o seu absolutismo, não tinha forças militares suficientes nem dinheiro sobejo para socorrer os donatários, que fizera, ou os governadores que nomeara, nem para defender as costas do Brasil, nem tampouco gente para nelas fazer o povoamento.

Companhia de Jesus, Realeza de Portugal, Administração Portuguesa não passariam de quase sombras impotentes que, isoladas, não poderiam formar e civilizar um Brasil.

O governo geral, em nome de d. João III, os donatários com as doações feitas pelo rei de Portugal, trouxeram as leis portuguesas, "as Ordenações do Reino", os usos e costumes de Portugal na administração e na justiça, impuseram a língua portuguesa. Os jesuítas se dedicaram à catequese cristã do gentio e os colonos – degredados ou espontâneos – fizeram a mestiçagem com a aborígine e arrotearam a terra com o indígena vencido.

Na América Portuguesa, foram esses cinco elementos – rei, administração portuguesa, jesuítas, colonos e índios – que, juntos nesses primeiros tempos do século XVI, constituíram o Brasil territorial, moral e econômico. E esse povoamento e civilização foram feitos, não obstante a animosidade entre eles, quase inconscientemente, por assim dizer, à revelia do governo de Portugal.

Como em todo o Brasil, mas principalmente na Capitania de S. Vicente em que se constituiu o Estado de S. Paulo, houve, em conseqüência, uma obra coletiva, embora nela nem sempre os seus elementos primordiais andassem de acordo, e, ao contrário, se hostilizassem, e por vezes se oprimissem violentamente, visto que os fins imediatos por eles visados eram bem diferentes, como adiante se verá.

O trabalho dos jesuítas foi incontestavelmente imenso na civilização brasileira; mas dela não foi o único elemento. Houve também outros e valiosos, sem os quais ele não se realizaria [1].

Os jesuítas se devotaram ardentemente à catequese do gentio, cuja cristianização iniciaram. Se o seu propósito exclusivo triunfasse, S. Paulo seria uma cidade de tupis.

Os colonos imigrantes queriam trabalhadores para as lavouras, que abriam, e só os encontravam nos índios, cuja cativação haviam começado; e se eles aí estivessem sozinhos, não tivessem embaraços da catequese cristã, S. Paulo seria apenas um pequeno povoado mestiço de obsoletos proprietários. A ação dos colonos não seria completa sem o auxílio moral da religião.

Se somente houvesse a proteção política da administração portuguesa nas terras do Brasil, continuariam S. Vicente e S. Paulo no mesmo atraso, e por muitos anos, como feitorias para tráfico de escravos.

O rei, na terra da América, ambicionava a manutenção de seus senhorios, nos quais seus capitães-mores procuravam minas de ouro; e se os seus intuitos fossem inteiramente realizados, S. Paulo ficaria pouco mais que um decaído posto avançado no sertão americano, de que só restariam ruínas. Se esses elementos falhassem, o Brasil continuaria terra de selvagens ou cairia nas mãos de outra nação mais forte. Em qualquer desses casos, não seria a nação atual. Mas o choque entre essas forças, por vezes violento, seguido de cooperação, nem sempre previdente, mas inevitável para a sua existência, criou essa terra sadia e dadivosa, o S. Paulo atual, que é obra antiga, e não individual.

A colonização do Brasil, entretanto, não procedeu de um sistema, concebido por aplicação de um plano metódico, e em seguida executado obedecendo a um intuito único e previdente; foi-se formando com atos sucessivos, sem íntima ligação entre si, determinados por circunstâncias ocasionais, para remediar ou cortar males do momento.

Cativando e cruzando-se, os colonos faziam dos vencidos seus aliados. E como essas tribos indígenas se guerreavam continuamente, fácil foi aos colonos levar os seus aliados a combater, matar ou aprisionar os seus inimigos tradicionais.

Às vezes esses aliados se revoltavam; matavam os colonos, incendiavam-lhes as fazendas, ameaçando destruir a colônia; mas com as derrotas sofridas, ou eram exterminados ou se submetiam e tornavam-se também soldados das bandeiras. Foi o que fez Roma com os Sabinos e com todos os outros povos da Itália.

Em todas as bandeiras, a maior parte dos combatentes eram tropas auxiliares compostas dos índios aliados e amigos.

Na carta do Padre Ruyer, de que extratamos dados para recompor a batalha do Mbororé (nota da pág. 328 deste), se vê que os brancos e mamelucos eram 300 e que os tupis eram 800.

Na carta de Domingos Jorge Velho da qual transcrevemos trechos (vide pág. 295) se verifica que os índios constituíam a maior parte das expedições, e que eram valentes e destemidos quando dirigidos pelos brancos contra os outros índios.

A exterminação a princípio e depois a cativação do selvagem boçal foi o primeiro passo para a sua civilização. A liberdade só pode existir para os que a sabem conquistar, defendê-la, mantê-la e dela usar.

Os próprios jesuítas faziam os índios trabalhar nas suas fazendas, castigavam-nos com rezas de joelhos nas igrejas e faziam com que eles se açoitassem em penitências até fazer sangue cruamente em procissões pelas ruas (Cartas Jesuíticas, vol. 1º, pág. 181 e vol. 3º, pág. 39).

Incontestavelmente o sistema dos jesuítas era mais brando, mais humano; mas eles mesmos reconheceram que, sem o auxílio da força, pouco poderiam fazer. Em vista disso, tentaram ensinar as crianças indígenas.

Não obstante as ligações com os portugueses, os indígenas, salvo algumas exceções, estiveram algumas vezes em luta com os invasores. Atas da Câmara de Santo André já referem providências e medidas tomadas para se defenderem dos ataques dos índios. No princípio, quando os desgarrados náufragos ou desertores se adaptavam ao viver do indígena, e vendiam os cativos vencidos, alguns permaneceram em relativa tranqüilidade pessoal. Depois, porém, que eles quiseram obrigar os aborígines a trabalhar, a situação mudou e a luta entre invasores e invadidos começou e continuou sempre até o extermínio ou a domesticação.

Mesmo a catequese, por mais brandos que fossem os meios empregados, era sujeição incômoda e penosa para quem estava habituado ao viver solto e indômito das selvas. As próprias cartas dos jesuítas dão disso notícias, como faço notar nos extratos.

Estabelecida a Igreja de S. Paulo, no planalto em 1554, os próprios índios amigos e compadres (assim são chamados nas Atas os tupiniquins), em 1562 atacaram a nascente colônia e o próprio colégio e quase os destruíram. Nóbrega e Anchieta fizeram, em 1563, as pazes com os tamoios; e pouco depois esses precários pactos foram quebrados, atribuindo uns a culpa à avidez dos colonos, outros à volubilidade dos índios, mas com certeza devido a ambos esses motivos.

É evidente que conhecidos todos "os mares nunca dantes navegados", encontrados novos e desconhecidos continentes, explorados estes em todas as suas costas, examinados em todos os seus contornos, teriam eles que ser penetrados fatalmente em todos os seus recantos, para o reconhecimento dos territórios em suas minúcias, de cursos d'água, de planícies, de montanhas, de possibilidades de riquezas. O devassamento do sertão foi a conseqüência natural do descobrimento do continente.

Mais que a curiosidade aventureira e ávida, a necessidade imprescindível de, pela ocupação efetiva, pela posse, assegurar os descobrimentos feitos, iriam impulsionar com ardor insaciável as expedições audacíssimas através dos desertos selvagens ou inimigos.

Os navegadores temerários e tenazes seriam substituídos pelos sertanistas atrevidos; as bandeiras iriam ocupar na atenção da História o lugar das frotas. Era natural, lógico, fatal, pois, o esquadrinhamento do interior dessas terras, e as entradas ao sertão teriam que aparecer. O ciclo das navegações seria substituído pelo ciclo das bandeiras em Portugal.

As bandeiras, pois, teriam que se formar, que se organizar, teriam que entrar ao sertão, estendendo "a costa do Brasil" (como então se dizia), desde o oceano até o interior desconhecido, revelando os seus territórios, ou então a colonização portuguesa no Brasil teria desaparecido sem deixar vestígios, como a esteira pouco rumorosa de uma canoa solitária, que sulca águas dormentes.

Esse devassamento traria as inevitáveis guerras com o gentio.

As guerras ou o abandono da colônia: o dilema se apresentava inexorável. Diante dessa alternativa, os moradores da capitania de S. Vicente preferiram duramente, violentamente permanecer, e para isso era necessário escravizar ou exterminar, "conquistar ou ser conquistado; era preciso optar entre essas duas condições extremas, não restando nenhum partido intermediário" (como pensaria Taine – Origines de la France Contemporaine, Le Regimem moderne, tomo 1º, pág. 67). Mas os portugueses encontraram ainda um partido intermediário, o cruzamento.

As bandeiras devassadoras, cativadoras ou exterminadoras, iam-se fazer, e com os mamelucos, para serem proveitosas. As bandeiras, porém, não se formaram antes, nem logo após a chegada da esquadra expedicionária a S. Vicente, em 1532.

A partida de 81 homens em direção ao Paraguai – 40 besteiros e 40 espingardeiros, determinada por Martim Afonso, comandada por Pero Lobo e guiada por Francisco Chaves – não foi uma bandeira no sentido paulista, foi uma expedição organizada com elementos da guarnição da esquadra de d. João III, foi uma expedição formada militarmente, tendo por fim escoltar os 400 escravos carregados de ouro, prometidos por Francisco Chaves. Foi toda ela aniquilada pelos índios carijós, quase na foz do Rio Iguaçu no Rio Paraná. Não teve continuadoras imediatas.

O próprio Martim Afonso de Souza, quando em S. Vicente, esperando o resultado dessa expedição, aí soube que ela havia sido totalmente trucidada, não tentou vingá-la. Daí se retirou para Lisboa, determinando a Pero de Goes e a Ruy Pinto que fossem contra os carijós, exterminadores dos seus soldados, determinação que não foi cumprida. Talvez não dispusesse Martim Afonso de forças militares para esse castigo, indispensável para impor ao gentio o respeito ao rei de Portugal. Com a sua retirada para o reino, menores seriam ainda as forças de seus prepostos, que não ousaram tentar a aventura (Atas da Câmara de S. Paulo, vol. 1º, pág 276).

As bandeiras evoluíram, da feitoria de S. Vicente às entradas, até o Rio Paranaíba e até as nascenças do Rio S. Francisco, percorreram o Rio Paraíba, e pelo Tietê até as reduções do Guairá até o rio Uruguai, aprisionando escravos, até o descobrimento do ouro das Minas Gerais, do Cuiabá, de Goiás, varando todo o centro do Brasil até o Amazonas.

A conquista – posse e povoamento da terra – já havia começado com os primeiros homens que "Martim Afonso achou quando cá veio" afeiçoados ao viver do gentio. A feitoria pré-afonsina já traficava em escravos, como se vê na informação de Diogo Garcia (R. I. H. G. B., vol. 15, pág. 9).

Começou depois ela a tratar com o gentio do sertão mais distante, e assim iniciou-se o chamado resgate com o gentio. Era a civilização que começava, e duramente, como se sabe.

Resgate, palavra então de significação larga e vastíssima, e, por isso mesmo, equívoca, era corrente nos sertões da capitania de S. Vicente nos fins do século XVI e começos do século XVII. As vereanças da Câmara de então a ele se referem e, por vezes, o proíbem.

Resgate era o trato do europeu invasor, ou de seus descendentes, com o aborígine nômade. Consistia em trocas, por parte dos colonos, dando bugigangas, miçangas, espelhos, machados, foices, facas, e semelhantes, recebendo, por parte do gentio, os inimigos sobrantes da antropofagia, incluindo também, por vezes, os parentes e até os próprios filhos. Para esse fim. os colonos faziam entradas ao sertão.

Odiando a civilização, que os obrigava a trabalhar, mesmo abominando a própria catequese, que impunha sujeição aos deveres e às obrigações de uma vida metódica, e ainda pelo próprio instinto de conservação, os índios resgatavam, mas resistiam e repeliam o invasor. Este não desistia. A repulsa ou resistência do gentio ocasionava as chamadas guerras, declaradas justas quando o gentio vinha atacar povoadores e povoações e depredavam fazendas e gado.

As leis da metrópole especificavam os casos de guerras justas e defendiam no papel a liberdade do indígena sob graves penas. Mas essas leis eram defraudadas na prática e as guerras tornavam-se inevitáveis, ofensivas. Os próprios tupiniquins, entre os quais viviam os portugueses, já se revoltavam e também atacavam, como em 1562, e já se aliavam às outras tribos, atacando e destruindo, ameaçando a existência da própria colônia, como de 1585 em diante.

Os sertões foram talados. Vencidos os índios, homens e mulheres, eram aprisionados para o cativeiro e para a mestiçagem. E, então – também pelo extermínio –, alargavam-se cada vez mais a conquista e a posse portuguesas na América do Sul.

A pobreza de recursos pecuniários e de gente fizera andar vagarosamente a ocupação, povoamento e colonização do Brasil. A morte de d. João III, em junho de 1557, trouxe mais uma causa ao desenvolvimento da colônia americana, com grande influência na administração, pois que o governo do reino foi parar nas mãos de uma regência.

D. João III deixara a coroa de Portugal a seu neto d. Sebastião, ainda na infância, e como regente do reino, durante a menoridade, sua viúva, a rainha d. Catarina, espanhola e irmã de Carlos V.

Começaram em Portugal as intrigas políticas para dar a regência ao cardeal d. Henrique, o que se conseguiu em 1562. Esse irmão de D. João III foi o regente até a maioridade de d. Sebastião e, depois de morto este sobrinho-neto, rei até 1580.

D. Sebastião, rei, cavaleiro e anacrônico, logo preparou a campanha da África, onde, com o povo válido de Portugal e a maior parte de sua nobreza, pereceu em Alcacerquibir, sucedendo-lhe o cardeal d. Henrique que governou dois anos, no fim dos quais a descendência legítima masculina da dinastia de Aviz se extinguiu indo Portugal parar às mãos de Filipe II das Espanhas, herdeiro pela linha feminina e que do reino se apoderou pela força em 1580.

Esse período de 23 anos (1557-1580), de regências sempre fracas, de rei cardeal e inquisidor-mor, sem herdeiros diretos, fazendo ponto final de uma dinastia, depois da morte de d. Sebastião em África, as hesitações políticas e indecisões administrativas, pressagiando e produzindo perturbações sérias de toda a natureza, esse período, não pequeno para uma terra nascente, deveria refletir-se e se refletiu, na América portuguesa, sem forças para por si só caminhar.

Não é possível fazer a História do Brasil colonial sem acompanhar, ainda que de longe, a História dos países europeus.

Na Europa, por fim, Filipe II consolidou o seu domínio sobre Portugal, anexando-o às Espanhas. Durante um período de 60 anos (1580-1640) o Brasil será espanhol, gozando de muitas vantagens e sofrendo alguns sérios prejuízos.

Incontestavelmente, a Espanha daquele tempo, ainda que críticos hodiernos achem que ela já ameaçava ruína, era uma das poderosas nações do mundo e aspirava à monarquia universal; e, para isso com guerras dispendiosas, lutou dentro da França contra os Valois, contra as Províncias Unidas da Holanda com opressão violenta, tendo que prover a Itália, organizou a Invencível Armada, desbaratada nas costas da Inglaterra, a quem queria subjugar, integrando em suas mãos as Índias orientais portuguesas e quase todo o continente americano, então chamado Índias ocidentais.

A Espanha não teria também muitas forças para colonização. Suas guerras ocasionavam ataques ao Brasil, então colônia espanhola, por parte de seus inimigos europeus.

Em religião mais fanático, em administração mais centralizador que d. João III, Filipe II tudo queria gerir de seu gabinete de Madri.

Mandou fazer o Código Felipino, que regulou e consolidou no seu império as relações de família, de propriedade, de obrigações, de recursos, o qual no livro 3º, Título 75, §1º, declara que o rei é lei animada sobre a terra, e que, quem faz as leis, pode desfazê-las se tal convier.

As suas esquadras foram, porém, bem mais poderosas que as de d. João III e viajavam o Atlântico para proteção de seus domínios americanos, passavam o estreito de Magalhães para navegar o Pacífico e protegiam o produto das minas do Peru, o ouro do México, e também as costas do Brasil. Mas atraíam também para essas costas os corsários ingleses, holandeses e franceses, seus inimigos que, quando não podiam nelas se estabelecer, procuravam enfraquecer, arruinar e destruir os estabelecimentos portugueses e espanhóis.

Desse tempo datam os ataques de Cavendish, que, saqueando, incendiaram S. Vicente. Desses tempos das regências data também o estabelecimento dos franceses na baía do Guanabara, aliando-se aos tamoios. Também desse tempo datam as maiores organizações bandeirantes, como adiante se verá.

***

Se as bandeiras se organizaram em todas as Américas, e, de todas as partes tomaram todos os rumos, foi em S. Paulo do Brasil que elas primeiro se criaram, culminaram e se impuseram à História, legando-lhe o nome, que os dicionários recolheram, dando-lhe uma significação própria, mas diferente e que a nobiliarquia local venerou.

Tendo sido, em todas as Américas, idênticos os métodos e análogos os processos de devassar, apossar a terra, foram em S. Paulo que se organizaram as maiores e as mais numerosas bandeiras, e, por isso, bandeira tornou-se nome local e bandeirante ficou sinônimo de homem paulista. Mas nelas tomaram parte homens das outras vilas da capitania, das outras capitanias e da metrópole.

Uma bandeira se organizava quase sempre sob a direção de um dos principais homens da capitania por seus bens, pelo número de arcos de que dispunha, pelo número de índios escravos ou administrados, ou serviços forros (palavras sinônimas nesse tempo) pela experiência e prática do sertão, e se compunha de número vário de homens, conforme a importância do descobrimento ou o prestígio do cabo ou chefe.

Houve bandeiras oficiais, houve bandeiras pequenas e houve importantes. Em regra, nela o chefe reunia seus filhos maiores e algumas vezes os menores, os seus parentes, os seus apaniguados, e milhares de índios auxiliares, aliados ou escravizados, inimigos das tribos que eles esperavam encontrar e combater. Nelas não havia propriamente hierarquia ou disciplina, como hoje compreendem os militares. E chefe era o mais respeitado, sendo por vezes nomeado pelo capitão-mor.

A obediência dos bandeirantes a seus cabos não era imposta pela força ou em virtude de regras pré-estabelecidas; mas aceita voluntariamente por todos como condição para o bom êxito da empresa, na qual todos eram interessados, tendo em vista a existência individual e a própria existência coletiva. Uma espécie desse instinto coletivo que une todos, quando todos sentem que trabalham perigosamente para o interesse comum.

Quando entravam pelo sertão, iam armados de arcabuzes, escopetas, mosquetes, espadas, como armas ofensivas, as melhores da época; e, como armas defensivas, iam com acolchoados de algodão, com que se revestiam, úteis contra as setas indígenas que neles se amorteciam.

Os índios auxiliares só dispunham de arcos e flechas, e muitos deles só serviam para transportar pequenas cargas, como ferramentas, e, talvez, algum pouco mantimento para os primeiros dias. Levavam também grilhões para aprisionamento do índio vencido.

Nessas guerras, que os índios faziam ou que se faziam aos índios, até quando declaradas justas, nessas guerras em regra não havia combates ou batalhas, não se cogitava de tática ou de estratégia, não podiam mesmo ser classificadas de guerrilhas, eram elas lutas de expediente, com ciladas e perfídias, de parte a parte, nas quais os europeus levavam vantagens pela superioridade das armas e da inteligência, mas nas quais eram também, às vezes, vencidos em emboscadas e devorados depois.

Nos meados do século XVI, as bandeiras se compuseram, nos primeiros tempos, sob a chefia principalmente de portugueses do continente, adventícios e ousados chefes, e, depois, desses mamelucos, portugueses da América que mais tarde foram cabos enérgicos e incontestados.

Muitas bandeiras foram comandadas por portugueses reinóis, como as de Antônio Raposo Tavares na destruição da província do Guairá, e mesmo algumas o foram pelos capitães-mores dos donatários, como as de Jerônimo Leitão, Nicolau Barreto e de Jorge Correia, e outras por chefes nomeados pelo governador geral, como as de João Pereira de Souza e de André de Leão. Outras foram capitaneadas por paulistas sem mescla de sangue indígena, como a de Fernão Dias Pais Leme; mas grande parte o foi por mestiços, em diversos graus, como as de Antônio de Macedo, de Belchior Carneiro, André Fernandes, os dois Anhangüeras etc.

Esses homens não se diziam bandeirantes, nem às expedições chamavam bandeiras. Faziam entradas ao sertão e eram sertanistas. Seus adversários ou inimigos, e eles tinham muitos, denominavam-nos mamelucos, e à terra, donde partiam, alcunhavam de Biserta ou de Nova Rochela (Atas, vol. 1º, pág. 383).

Nas citações de seus serviços, a fim de obter das Câmaras modestas datas de terras, ou dos donatários sesmarias no sertão, eles se diziam conquistadores e povoadores, que prontos sempre estiveram para a defesa da terra com suas pessoas, bens, mantimentos e armas (vide tais declarações nas Sesmarias e Atas da Câmara).

Nos fins do século XVI e princípios do século XVII, nos documentos coevos – Atas e Registro Geral da Câmara de S. Paulo, Inventários e Testamentos, – nas cartas dos jesuítas, ou nos livros espanhóis e franceses, referentes às incursões paulistas, não se encontram as palavras bandeiras e bandeirantes [2].

Mais tarde, quando das entradas ao sertão resultaram a formação territorial do Brasil e o descobrimento de minas, o bandeirismo deixou de ser uma profissão para ser um título de glória, e da riqueza. Mas conservei as expressões, porque já consagradas, exprimem perfeitamente o que se quer dizer e analisar.

S. Paulo, estabelecida no interior do continente sul-americano, situada um pouco abaixo do trópico de Capricórnio, a uns 70 quilômetros do Atlântico, no planalto central, tem uns 750 a 800 metros de altitude, acima do nível do mar.

Desde a vista do mar, o planalto se inclina para o interior das terras, às vezes com socalcos abruptos; e os rios, que por lá nascem, abrindo a rota com penosos esforços, se afastam do oceano, e correm todos para o sertão, a alimentar e a formar os grandes e altos afluentes do Rio da Prata, que encachoeiram os seus cursos em bruscos saltos e imensas quedas, que dificultam e, por vezes, impedem a navegação.

Só o Tietê, que até o Paraná era a principal avenida fluvial de saída, está eriçado de corredeiras e de cascatas, e tem dois majestosos saltos, o Avanhandava e o Itapura.

Mas havia, por todo o continente sul-americano veredas e trilhos freqüentados pelos índios, depois conhecidos dos sertanistas, que das costas do mar iam até os grandes afluentes do Rio da Prata, até os Andes, até a planície do Amazonas.

Rios e trilhos constituíam um sistema rudimentar de viação fluvial e terrestre através de campos e da brenha entrelaçada, sombria, úmida e mortífera. De uns e de outros falam crônicas e roteiros. De ambos se serviam os bandeirantes, que partiam de S. Paulo, em seus itinerários atrevidos, revelando uma geografia até então desconhecida.

Com a continuada freqüentação da selva, a certa distância dos rios, nas proximidades das veredas e trilhos, na ida, faziam os sertanistas roças de mantimentos para colherem na volta, nas demoradas expedições que faziam. No sertão inimigo não havia estalagens e os sertanistas se alimentavam dos peixes dos rios, dos frutos das árvores, das caças do mato e dessas roças, que nem sempre lhes eram prestadias porque roedores vorazes se antecipavam às colheitas. Esses homens, que compunham as bandeiras, não recebiam paga dos chefes nem soldo das municipalidades ou do rei.

Ao vesperar das expedições os bandeirantes faziam compras de armas e mais apetrechos para "a entrada em que ora vai o cabo X" assim declaravam nos seus escritos (títulos de dívida) juntos aos inventários, a créditos pagos na volta em mercadorias, como caixas de marmelada, carne de porco salgada ou em peças do gentio escravizado. Os mais abastados concorriam com os seus escravos, com os seus bens, contando todos com os despojos opimos, os índios, que iriam trabalhar nas suas lavouras.

Lembravam-se também, então da vida futura, faziam os seus testamentos em que regulavam o viver de suas famílias, com longas e minuciosas disposições, principalmente espirituais. Em muitos dos testamentos há expressas referências à próxima entrada para descobrimento de minas de ouro e pedras preciosas, referências ostensivas com que pretendiam se resguardar das penas criminais, quando estavam proibidas as guerras e era punida a escravização dos índios. Essa escravização, em certo tempo, foi o fim principal das expedições.

Tais testamentos, quando feitos em povoado, eram deixados em poder das mulheres, que mantinham o lar e guardavam os filhos infantes, porque os maiores de 14 anos, em geral, numa iniciação que enrijava e endurecia, acompanhavam os pais.

Áspera e perigosa era a vida no sertão. Árida era a vida de família. Assim se formaram as matronas paulistas e os homens fortes de S. Paulo.

Os inventários, os feitos no sertão, eram depois processados na vila de S. Paulo, provida de juízes e escrivães e mais ofícios judiciais, e na volta, os iniciados no sertão eram apensados aos inventários legais.

Quando na mata intérmina, ou no descampado sem fim, acontecia morrer o bandeirante, de "frechada de índio" ou de "moléstia que Deus lhe dava", o que era comum, o cabo da bandeira, que se arrogava todos os poderes, civis e judiciários, determinava o arrolamento dos poucos bens encontrados, quase sempre armas, nomeava escrivão, avaliadores, fazia leilão desses bens para serem arrematados pelos companheiros, a prazo, dando fiadores ao pagamento em povoado, sendo tudo reduzido a escrito, assinado pelos interessados, ou a seu rogo, datado do lugar em que se achavam, quase sempre na margem de um rio, num cabeço de morro, numa maloca de tribo selvagem.

Esses arrolamentos feitos no sertão mostram que os bandeirantes, na sua diminuta bagagem, levavam papel, pena e tinta e que alguns eram os que sabiam ler e escrever. É verdade que o papel por lá não abundava. Serviam-se de qualquer um, e, muitas vezes, escreviam no verso de folhas já escritas. É assim que um arrolamento feito nos sertões de Goiás, por 1616 (Inventário de Pero de Araújo – Inv. e Test., vol. 5º, pág. 173) foi lavrado em uma folha de papel em cujo dorso já estavam escritas duas ou três estâncias de Camões, as primeiras do Canto V dos Lusíadas. Em tais circunstâncias os bandeirantes declaravam que S. M. el-rei desculparia o papel usado em tais lugares e mandaria cumprir o testamento. As estâncias dos Lusíadas foram sem dúvida alusivas à longa e incerta expedição que faziam, porque é nelas que Vasco da Gama, em caminho para a Índia, narra a um rei africano "a sua travessia de longa e incerta via".

O poema de Camões teve a sua primeira edição em 1572, e poucos anos após, já os sertões de Goiás o conheciam.

Esses inventários demonstram também a pobreza dos bandeirantes, tal a mesquinhez e insignificância do acervo descrito e avaliado, quer no sertão, quer no povoado. Era uma profissão o bandeirismo, mas não era de rosas e a ninguém enriquecia. Só no século XVIII, bem mais tarde, encontram-se alguns paulistas ricos, e de uma riqueza relativa, e isso depois da exploração das minas, e esses não foram os desbravadores do sertão.

Mas o principal valor, o valor histórico desses inventários, arrolamentos e testamentos, aparece agora incontestável, porque com os nomes do cabo, do escrivão, do morto, dos avaliadores, dos arrematantes e seus fiadores, dos distribuidores dos índios aprisionados, dos padres que os acompanhavam, todos neles apontados, pode-se recompor a bandeira descobridora com todos ou com muitos dos seus membros; e, pelos lugares em que são datados, podem-se determinar a época e os diversos pontos do sertão atingido, marcando-se assim os sucessivos descobrimentos e posses, que formam o território atual da nação.

Assim, as bandeiras foram firmando a sua rota no continente desconhecido com violências e crueldades, com traços de sangue, com sinais de morte.

Mas fixavam-na também com sinais de vida, nas roças que plantavam. Muitas dessas roças tornaram-se pousos habituais, sempre indicados nos roteiros escritos ou orais; tais pousos se tornaram arraiais e estes se transformaram em povoações e depois em vilas, estabelecendo-se por essa forma a posse efetiva do território, que se alargava cada vez mais, fincando marcos indiscutíveis para os futuros tratados diplomáticos, quando se demarcassem as fronteiras internacionais.

No Brasil, isso começou cedo, e durou muito tempo, sendo longa a fermentação. No Brasil, como já fiz notar, os capitães-donatários tinham pouca força e nenhum dinheiro, resultado algum auferiam de suas capitanias; os reis de Portugal e de Espanha, quando não eram pobres, estavam sempre absorvidos e ocupados com guerras européias, que muito de perto os interessavam, prestando apenas à colônia americana uma atenção distraída de administração longínqua e difícil.

Aliás, em todas as terras da América, cuja colonização foi realizada com povos europeus, quer portugueses, quer filhos de outros países, foi ela começada com a cristianização ou com o extermínio ou com a escravização ou com esses métodos simultaneamente. Isso foi assim no Brasil; mas isso foi assim em todas as mais partes de todas as Américas.

Chamaram-se conquistas, e conquistadores quando os seus membros como Fernan Cortez apoderaram-se dos territórios dos astecas e dos maias e dominaram o grande México; ainda conquistas e conquistadores quando Pizarro assaltou as terras dos incas e suas riquezas, e assenhoreou-se do Peru, ambos na orla do Pacífico.

Foram penetrações quando Hudson navegou o rio e a baía, a que deu o seu nome.

Foram expedições, quando De Sotto e sua gente subiram o Mississipi, onde, já de volta, esse chefe encontrou a morte.

Foram ainda expedições, quando, partidas das margens dos grandes lagos, foram encontrar os altos afluentes do Mississipi, amarrando pelo interior o Oceano Atlântico ao Golfo do México. Destas basta referir aquela de que fez parte o pe. Marquette da Companhia de Jesus, no último quartel do século XVII. Já vivia ele há muito tempo no Canadá e aí catequizava e aí procurava civilizar os naturais. Conhecia seis ou sete línguas indígenas, entendidas nas margens dos grandes lagos e no S. Lourenço, conhecia a região, os habitantes, os seus hábitos e costumes, mais ou menos nômades. Os índios respeitavam-no, como uma espécie de Pajé, o grande homem preto, assim designando-o por causa da batina negra, que ele usava.

O governador de Quebec, mr. de Frontenac, suspeitava que desses lagos, pelos rios que aí desaguavam ao Sul, se poderia talvez chegar ao Oceano Pacífico. Foi então organizada uma expedição, cuja parte militar foi confiada a Jolliet e a parte religiosa e diplomática pertenceu ao padre Marquette, se é que se podem dar tais qualificativos a tratos com índios selvagens e bravios. Tal expedição chegou às alturas do Arkansas, onde teve notícia da penetração de De Sotto que, vindo do Sul em 1541, já havia aí arribado em nome de Castela. Voltou a bandeira canadense, mas sabendo que o Mississipi ia desaguar no Golfo do México.

Os fatos se repetiram na América do Norte como já se haviam desenrolado na América do Sul. Frontenac foi uma espécie de d. Francisco de Souza, governador do Brasil; Jolliet teria sido um Nicolau Barreto e Marquette o Nóbrega do Canadá.

No Brasil, as entradas ao sertão partidas de S. Paulo se fizeram aproveitando talvez as indicações fornecidas pelos náufragos, semeados pelas armadas anteriores, soçobradas nas costas do novo mundo, os quais, já familiarizados com o gentio da terra, teriam dado sem dúvida os primeiros e incertos roteiros para a procura das riquezas, que a ávida imaginação dos europeus criava ou exagerava desmesuradamente.

Essas bandeiras, na faina insaciável do escravo e do ouro, mas trilhando, descobrindo, cruzando, revelando novos territórios em todas as direções, partiram durante largos anos.

De algumas delas, quase todas já estudadas, se darão em seguida algumas notícias sobre os seus cabos, sobre a sua composição, sobre os lugares por elas atingidos, com as suas datas, tanto quanto permitirem os arquivos locais.

A primeira entrada, esta oficial, partida da Capitania de S. Vicente, segundo os documentos municipais, falhos e truncados, foi a comandada por Jerônimo Leitão. E digo primeira, porque é sobre ela que se encontra documentação oficial nos arquivos locais.


[1] Houve também outras ordens religiosas e o clero secular que concorreram para a civilização.

[2] Entretanto, no Registro Geral da Câmara de S. Paulo, V. 1º, pág. 323-4, se encontra escrito que Martin de Sá, servindo de capitão-mor de S. Vicente, nomeou a Ascenso Ribeiro capitão da infantaria e ordenança da vila de S. Paulo, o qual tinha debaixo de sua bandeira quarenta soldados em.... de dezembro de mil seiscentos e vinte e um (1621). A provisão foi registrada por ordem da Câmara, cujos oficiais foram os vereadores Pedro Taques e João de Brito Cação, o juiz Bartolomeu Bueno, e o procurador João Rodrigues de Moura, que funcionaram no ano de 1621 (Atas, vol. 2º, págs. 465 a 472).

No mesmo Registro Geral, às págs. 469-70, Álvaro Luís do Valle determina que todos os homiziados venham acudir a seus capitães e "bandeiras", em 15 de março de 1625.

D. Luís de Céspedes y Xeria, num relatório de 1628, declara que os habitantes de S. Paulo levantavam bandeiras.