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HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
Um processo dos tempos coloniais

Texto do historiador A. de Toledo Piza, escrito na capital paulista em outubro de 1899 e publicado na edição especial de Commemoração do IV Centenario do Descobrimento do Brazil em S. Vicente, do jornal Vicentino de 3 de maio de 1900 (Ano II nº 31, São Vicente/SP - exemplar conservado na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio - SHEC), com ortografia atualizada nesta transcrição (páginas 14 e 15):

Imagem: capa da publicação original

CRÔNICAS DOS TEMPOS COLONIAIS

O Processo Vimieiro-Monsanto

Entre os papéis deixados pelo tenente-general José Arouche de Toledo Rendon e existentes em meu poder encontrei um curioso manuscrito, um tanto estragado por água e muito devorado por traças, com o seguinte título:

RELAÇÃO

DOS

Capitães loco-tenentes que governaram a capitania de S. Vicente, uns nomeados pelos verdadeiros donatários e outros pelos intrusos.

O manuscrito não traz data nem assinatura e não tem as páginas numeradas, entretanto verifica-se pela leitura do texto que não lhe faltam folhas.

Nas primeiras páginas vem a relação dos capitães-mores de S. Vicente, numerados todos desde o primeiro até o último, porém com um salto sem explicação de sete números, do 41º ao 48º, quando não há intervalo de tempo suficiente nem para um só capitão-mor com a jurisdição ordinária de três anos.

Segue-se a lista dos capitães-mores da capitania de Itanhaen, nome que tomou a donataria de S. Vicente durante o longo litígio havido entre os herdeiros de Martim Afonso de Sousa pela posse das donatarias de Santo Amaro e de Itamaracá depois da extinção da família de Pedro Lopes de Souza, primeiro proprietário destas duas donatarias.

Vêm depois algumas páginas em branco seguidas de quarenta e três Notas Avulsas, bastante interessantes para a história colonial de S. Paulo e de grande valor para consulta, e termina o manuscrito com o rascunho de uma árvore genealógica de Martim Afonso e Pedro Lopes, grosseiro e obscuro, mas de não pequeno valor para o estudo da história do litígio havido entre os seus herdeiros.

Este resumo basta para demonstrar a importância do manuscrito e justificar a sua inclusão na exposição de objetos curiosos relativos à história da vila de S. Vicente.

Logo na primeira página, tratando de Gonçalo Monteiro, que foi o primeiro capitão-mor de S. Vicente, diz o autor do manuscrito que é filho de d. Anna de Siqueira de Mendonça. Esta simples e aparentemente obscura declaração é suficiente para se descobrir que foi esse autor.

A família Siqueira de Mendonça era tão numerosa e importante que mereceu servir de assunto para um capítulo especial da Nobiliarchia Paulistana, de Pedro Taques; porém, este capítulo, como muitos outros daquela grande obra, está perdido e dele só se encontram referências nos capítulos publicados. Entretanto, como a família era importante, entrelaçou-se por casamentos com muitos outros da capitania e alguns dos seus membros figuram na parte publicada da Nobiliarchia Paulistana.

No volume 35 da Revista do Instituto Histórico Brazileiro, correspondente ao ano de 1872, à pág. 319 e seguintes, se lê, com referência à família dos Leme, que Ana de Siqueira de Mendonça, filha de Luiz Dias Leme, casou com Cypriano Tavares, que mais tarde foi capitão-mor de S. Vicente e figura na relação com o número 53º, e que teve cinco filhos, dos quais destaco José Tavares de Siqueira, que era o terceiro em idade e casou em Santos com Isabel Maria da Cruz, natural de Portugal.

Deste casal nasceram quatro filhas e um filho, sendo Anna de Siqueira de Mendonça a primogênita. Esta nasceu em Santos em 1692 e ali casou, em 17y12, com Domingos Teixeira de Azevedo, bisneto de Amador Bueno da Ribeira - o aclamado. Vivia ainda em 1767 e era nessa data mãe de seis filhos, entre os quais se conta Gaspar Teixeira de Azevedo, que mais tarde tomou ordens sacras, tornou-se monge beneditino e fez-se notável como escritor nacional com o nome de frei Gaspar da Madre Deus, falecido no ano de 1800.

Nas suas Memórias para a História da Capitania de S. Vicente, à pág. 39, § 63, frei Gaspar conta que é filho de Anna de Siqueira de Mendonça e, falando da fazenda Santa-Anna, emprega quase as mesmas palavras usadas no manuscrito, quando trata do capitão-mor Gonçalo Monteiro.

O manuscrito, portanto, é obra de frei Gaspar e o seu valor histórico aumenta consideravelmente por isso, sendo para notar a precisão com que são citadas as datas e as páginas dos livros de registros de S. Vicente, lugar da sua residência. Nas Notas Avulsas são mencionados fatos até do ano de 1783, época em que ele ainda estava em estado de entregar-se a estudos históricos, tanto do seu gosto e inclinação.

***

Fala o autor do manuscrito em capitães-mores não somente da capitania de S. Vicente, mas também da capitania de Itanhaen, e como esta capitania de Itanhaém foi coisa que nunca teve existência legal, parece-me útil entrar em uma pequena divagação histórica para explicar o emprego daquela expressão e colocar o estudante da história paulista em condições de entendê-la na sua verdadeira significação e de apreciar as origens do "Processo Vimieiro-Monsanto".

***

Pelos grandes serviços prestados por Martim Afonso de Souza e seu irmão Pedro Lopes de Souza, foram eles recompensados pelo rei d. João III com a doação de vastos territórios no Brasil, inteiramente despovoados de gente branca e quase desconhecidos no tempo daquela doação.

Martim Afonso recebeu terras na extensão de cem léguas de costa marítima, divididas em duas grandes seções, sendo a primeira seção de cinqüenta e cinco léguas desde o rio Corupacé ou Juqueriquerê, pouco além de S. Sebastião, para o Norte até Macaé, e a segunda seção de quarenta e cinco léguas de S. Vicente para o Sul até doze léguas além de Cananéia.

Pedro Lopes de Souza somente recebeu oitenta léguas de terras ao longo da costa e estas divididas em três seções, sendo a primeira de dez léguas contadas do Rio Corupacé para o Sul até encontrar terras de Martim Afonso em S. Vicente; a segunda seção de quarenta léguas, medidas de doze léguas além de Cananéia para o Sul até a Laguna, em território de Santa Catarina, e a terceira de trinta léguas nas costas de Pernambuco [1].

Estas concessões régias, feitas aos dois irmãos, abrangiam os respectivos sertões, para o poente, até encontrarem os domínios espanhóis, e eram chamadas donatarias, nome que convém conservar de preferência à capitania, e os seus proprietários eram chamados donatários. A donataria de Martim Afonso chamava-se S. Vicente e as duas seções do Sul da doação feita a Pedro Lopes tomaram o nome de donataria de Santo Amaro.

A razão justificativa desta aparentemente extravagante e caprichosa divisão das donatarias em seções intercaladas umas nas outras já foi dada por um ilustre escritor e se baseia no fato de ser conhecida pelos dois irmãos a notícia da existência de minas de metais preciosos no interior e da divisão assim feita evitar a possível injustiça de ficarem essas minas incluídas em uma só donataria, se esta fosse contínua.

Martim Afonso fundou logo a vila de S. Vicente para servir de cabeça da sua donataria e tomou sem demora diversas providências para o seu povoamento, enquanto seu irmão Pedro Lopes, mais interessado no comércio do pau-brasil da sua seção de Pernambuco, descurou inteiramente das duas seções do Sul, que ficaram por muitos anos em abandono até sua morte.

Crescia tão vagarosamente a donataria de Martim Afonso ou de S. Vicente, não obstante todos os esforços empregados para desenvolvê-la, que em fins do século XVI só existiam nela quatro vilas, pequenas e pouco prósperas, que eram S. Vicente, Santos, S. Paulo e Conceição de Itanhaém, cujas respectivas fundações datam de 1532, 1546, 1554 e 1561, e serra acima as conquistas dos portugueses não iam além de Parnaíba e Cotia, cerca de trinta e cinco quilômetros ao poente da cidade de S. Paulo [2].

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Pelos anos de 1610, quando havia já muito tempo que eram falecidos Martim Afonso e seu irmão Pedro Lopes, suscitou-se entre os seus herdeiros um grave litígio pela posse de S. Vicente, Santos e S. Paulo, oriundo da má compreensão das linhas divisórias das duas donatarias.

Entendiam os herdeiros de Martim Afonso e seus delegados em S. Vicente que a seção de dez léguas da donataria de Pedro Lopes, sendo medida ao longo da costa, da foz do Rio Corupacê ou Juqueriquerê para o Sul, não passava aquém da barra da Bertioga e não podia, portanto, abranger Santos e S. Vicente, que estavam cerca de quinze ou dezesseis léguas mais para o Sul, nem alcançar S. Paulo, que não ficava no seu respectivo sertão [3].

Os herdeiros de Pedro Lopes [4], pelo contrário, entendiam que os termos das concessões das donatarias não podiam ser tomados muito ao pé da letra, porquanto, correndo a costa marítima logo ao Sul da foz do Rio Corupacé quase diretamente para o poente, a concessão das dez léguas de costa com o respectivo sertão se tornava inteiramente ilusória porque este sertão não passaria de uma estreitíssima tira de terra até as fronteiras dos domínios espanhóis, e para que o sertão pudesse ter dez léguas de largura, de acordo com o espírito da doação régia, era necessário que se tomasse a projeção da costa sobre o meridiano da foz do Rio Corupacé e sobre este meridiano se medissem as dez léguas para o Sul, de modo que a donataria ficasse contida entre dois paralelos de latitude distantes dez léguas um do outro.

Isto seria realmente mais conforme ao espírito das concessões que o rei d. João III fez aos dois irmãos, mais justo e eqüitativo; porém, sendo assim resolvida a disputa, não somente as vilas de Santos, S. Vicente e S. Paulo, mas também a de Itanhaém, ficavam todas contidas na seção de dez léguas da donataria de Pedro Lopes e perdidas para os herdeiros de Martim Afonso, porque as dez léguas assim medidas desceriam para o Sul até Peruíbe ou ainda além.

Durou dezenas de anos o litígio e por mais de meio século estiveram os herdeiros diretos de Martim Afonso privados da posse de Santos e S. Vicente, porque como divisa estava considerada a barra de S. Vicente, é a terceira ao Sul, em vez da barra da Bertioga, que é a terceira ao Norte; e para não deixarem de ter na sua donataria uma povoação que lhe servisse de capital e sede das autoridades, enquanto durava aquela demanda, deram eles esta regalia à vila de Itanhaém, e dai veio chamar-se capitania de Itanhaen aquilo que não era mais do que a mesma donataria de S. Vicente, somente despojada de algumas vilas durante o longo processo sobre as suas divisas.

***

Frei Gaspar, nas suas Memórias para a História da Capitania de S. Vicente, mais se parece com um advogado analisando as peças de um processo do que com um cronista historiando os fatos acontecidos na capitania; o seu sistema é o da exclusão, e tanto ele exclui que quase nada resta da história colonial de S. Paulo.

É antes um polemista do que um historiador. Na página 41 daquelas Memórias confessa ele que nunca se aplicou ao estudo de genealogias e que, por isso, os seus conhecimentos sobre esta matéria eram muito limitados. Não admira, portanto, que o esboço da árvore genealógica de Martim Afonso e Pedro Lopes, desenhado por ele, seja tão grosseiro e imperfeito que precise de modificações e correção para servir de auxílio ao estudante na descoberta da verdade sobre o litígio entre os herdeiros dos donatários.

Essa árvore genealógica, intercalada na Relação dos capitães-mores de S. Vicente e Itanhaém, está geralmente de acordo com o que o mesmo frei Gaspar escreveu nas suas Memórias, mas não se conforma com o que diz o cronista Pedro Taques na sua História da Capitania de S. Vicente, quando trata da grande demanda entre os herdeiros dos primeiros donatários.

O próprio Pedro Taques, que fez da genealogia o objeto de estudos especiais durante mais de cinqüenta anos e escreveu a Nobiliarchia Paulista, verdadeiro monumento de paciente trabalho e de profundos estudos históricos, é obscuro e incompleto, quando, na História da Capitania de S. Vicente, trata das relações de parentesco entre os herdeiros de Martim Afonso e de Pedro Lopes. Diz ele, por exemplo, que d. Diogo de Faro e Souza, sexto donatário de S. Vicente, cedeu e trespassou esta capitania em dote de casamento ao conde da Ilha do Príncipe, e cita um documento firmado por este conde, no qual se lê a seguinte declaração   [5]:

"Dou poder a Luiz de Lima para por mim tomar posse da capitania de 100 léguas pela renúncia do sr. d. Diogo de Faro e Souza em parte do dote da condessa sua prima e minha muito prezada e estimada mulher..."

Aqui não se disse donde vem o parentesco de d. Diogo de Faro com a condessa da Ilha do Príncipe, que são primos segundo afirma o próprio conde, seu marido, no documento acima copiado por Pedro Taques; entretanto, frei Gaspar, na lista dos capitães-mores de Itanhaém, dá Roque Roballo como tendo sido confirmado no posto de capitão-mor de Itanhaém porque ele foi indicado para este cargo por d. Diogo de Faro e Souza como tutor do seu sobrinho menor, Francisco Luiz Carneiro, filho de sua irmã, a condessa da Ilha do Príncipe.

Estas duas afirmações são contraditórias e, entretanto, não havia motivo para um tal desacordo, porque Pedro Taques e frei Gaspar eram parentes e íntimos amigos, dedicavam-se ao estudo da história paulista, comunicavam entre si as suas idéias e opiniões e até sujeitavam os seus escritos a uma recíproca apreciação.

A História da Capitania de S. Vicente, de Pedro Taques, foi escrita em 1772 e frei Gaspar só faleceu em 1800, devia tê-la lido para evitar de dizer que a condessa da Ilha do Príncipe era irmã de d. Diogo de Faro e Souza, quando é o próprio conde, marido daquela senhora, quem nos diz que era prima. Na árvore genealógica de frei Gaspar a condessa e d. Diogo de Faro figuram também como irmãos.

Há duas hipóteses aqui a presumir: ou Pedro Taques errou na cópia do documento firmado pelo conde, tomando por prima a palavra irmã, ou frei Gaspar entendeu que não era natural que um primo dotasse uma prima com uma vasta capitania e daí concluísse que d. Diogo e a condessa eram irmãos. O fato é que a condessa assinava-se Mariana de Faro e Souza e pelo nome mais parece ter sido irmão do que prima de d. Diogo de Faro e Souza. De um confronto das duas histórias da capitania de S. Vicente se coliga que neste desacordo de afirmações é frei Gaspar quem está com a razão e a verdade.

O fato em si não é de somenos valor, 1º, porque afeta e altera a árvore genealógica, que é muito importante; 2º, porque na proximidade do parentesco está em grande parte baseado o direito de herdar; esse parentesco foi que deu origem ao litígio, e o litígio afetou profundamente a história colonial de S. Paulo.

Nenhum destes dois ilustres escritores se lembrou de incluir na sua história da capitania de S. Vicente a escritura da doação feita por d. Diogo de Faro, a d. Mariana, de todo o território das donatarias de Santo Amaro e de Itamaracá, escritura essa que elucida a matéria, declarando que são irmãos como afirma frei Gaspar, e não primos como diz Pedro Taques. Possuo uma cópia dessa escritura, extraída dos arquivos da Vila de Angra dos Reis por Balthazar da Silva Lisboa, e não a transcrevo aqui por ser muito longa e nada mais adiantar sobre a questão.

***

Diz ainda frei Gaspar, nas suas Memórias, que os condes de Monsanto, conquanto fossem descendentes de Martim Afonso, não contestavam os direitos dos condes de Vimieiro sobre a capitania de S. Vicente, porque pertenciam à linha feminina, quando os Vimieiros descendiam da linha masculina, que era a proprietária do direito do morgado segundo o sistema feudal.

Martim Afonso de Souza teve um casal de filhos, a saber: Pedro Lopes de Souza [6], ramo masculino de que descendiam as condessas de Vimieiro e da Ilha do Príncipe, e d. Ana de Pimentel, casada com d. Antonio de Castro, ramo feminino que deu origem à família dos condes de Monsanto e marqueses de Cascais. Não havia, portanto, dúvida alguma entre as duas famílias relativamente à posse das cem léguas contidas na donataria de S. Vicente, porque os Monsanto-Cascaes reconheciam os direitos dos Vimieiro sobre estes extensos territórios.

Porém, tendo-se extinguido a descendência de Pedro Lopes de Souza, irmão de Martim Afonso e proprietário das oitenta léguas das donatarias de Santo Amaro e de Itamaracá, a sua neta e última descendente, d. Isabel de Lima, legou seus direitos sobre estas duas donatarias ao seu primo-segundo Lopo de Souza, neto de Martim Afonso pela linha masculina e terceiro donatário de S. Vicente, ficando assim concentradas nas mãos deste Lopo de Souza cento e cinqüenta léguas contínuas de costa marítima, desde Macaé até a Laguna, e mais trinta léguas em Pernambuco, tudo com os respectivos sertões até as fronteiras dos domínios espanhóis. Era a maior propriedade territorial que jamais esteve concentrada em mãos de um particular.

A esta sucessão de d. Izabel de Lima foi que se opôs d. Luiz de Castro, conde de Monsanto, filho de d. Anna de Pimentel e neto de Martim Afonso pela linha feminina, alegando que a sucessão neste caso não devia ser pela linha masculina, de conformidade com o morgadio, mas por parentesco e primogenitura; que ele era mais velho do que o seu primo Lopo de Souza e que, como este, era também primo em segundo grau de d. Izabel de Lima. A ele, portanto, deviam caber a herança desta senhora e a posse das donatarias de Santo Amaro e de Itamaracá.

Começada a demanda neste terreno, faleceu Lopo de Souza sem deixar herdeiros legítimos e diretos e na posse de sua herança entrou sua irmã d. Marianna de SOuza da Guerra, condessa de Vimieiro. Com esta continuou a demanda, que passou ao seu filho d. Sancho de Faro e ao seu neto d. Diogo de Faro e Souza. Não tendo este último herdeiro direto, passaram as donatarias e o litígio a d. Marianna de Faro e Souza, condessa da Ilha do Príncipe, que Pedro Taques disse ter sido prima de d. Diogo de Faro e que frei Gaspar afirma ter sido irmã.

Com o falecimento de d. Luiz de Castro, o iniciador da demanda, foi esta continuada por seu filho d. Álvaro Pires de Castro e depois por seu neto d. Luiz Álvares de Castro, que ao seu título de conde de Monsanto juntou o de marquês de Cascais. Este venceu a questão e ficou senhor das donatarias questionadas, sendo as suas seções do Sul anexadas à coroa portuguesa em 1711, mediante a indenização de quarenta e quatro mil cruzados que recebeu o marquês de Cascais.

Sem liquidar a questão de limites entre as donatarias de S. Vicente e Santo Amaro, o governo português considerou a barra de S. Vicente como linha divisória e, portanto, as vilas de S. Vicente, Santos e S. Paulo ficaram de fato incluídas na compra feita ao marquês de Cascais e anexadas aos domínios da coroa. Mais tarde, o marquês de Pombal, por atos de 1753-54, resgatou também a donataria de S. Vicente e anexou-a aos domínios reais, e assim desapareceram as duas antigas donatarias e as questões sobre a sua posse e divisas.

***

Termino com uma pequena retificação histórica.

Azevedo Marques, que, apesar de todos os erros e lacunas, é ainda uma das melhores autoridades sobre a história paulista, dá nos seus Apontamentos Historicos uma lista dos capitães-mores de S. Vicente e de Itanhaém, que não se conforma com a lista organizada por frei Gaspar. É verdade que Azevedo Marques não garante a inteira veracidade da relação que apresenta, pela confusão em que ficaram as donatarias e pela existência simultânea de vários capitães-mores; porém é também verdade que ele próprio confundiu as donatarias ainda antes do litígio e deu como capitão-mor de S. Vicente a Antonio Rodrigues de Almeida, que exerceu esse cargo na donataria de Santo Amaro e não na de S. Vicente.

Até o fim do século XVI não tinha havido, como vimos, questão alguma entre os herdeiros de Martim Afonso e de Pedro Lopes sobre a posse das donatarias e suas divisas. A donataria de S. Vicente começou logo a ser povoada pelos esforços do donatário e seus agentes; porém a de Santo Amaro permaneceu por muitos anos em abandono e esquecimento. Na primeira havia já as vilas de S. Vicente, Santos e S. Paulo, quando d. Izabel de Gamboa, viúva de Pedro Lopes, pensou seriamente no povoamento da segunda.

É verdade que em 1542 nomeou ela seu procurador a Christovam de Aguiar, que já era capitão-mor de S. Vicente como delegado de Martim Afonso de Souza; porém, acumulando este cargo nas duas donatarias, o mesmo Christovam de Aguiar só velou dos interesses da de S. Vicente, onde residia, e pouco ou nada fez pelo desenvolvimento da de Santo Amaro. Só em 1557 foi que d. Izabel de Gamboa deu poderes de capitão-mor ou loco-tenente a Antonio Rodrigues de Almeida, fidalgo português, que viera a S. Vicente em 1547 e havia regressado ao reino, em 1556, em busca de sua família que lá tinha ficado.

Não encontrando na donataria de Santo Amaro, que lhe era confiada, um lugar apropriado para sua residência, porque era ainda um deserto só povoado por ferozes tamoios e animais bravios, veio Antonio Rodrigues de Almeida se estabelecer em S. Vicente e daí concedia sesmarias e praticava outros atos de jurisdição naquela donataria, porém nunca foi capitão-mor de S. Vicente, como supõe Azevedo Marques. O mesmo se pode dizer de Gonçalo Afonso, que serviu o cargo de ouvidor da donataria de Santo Amaro e não era capitão-mor de S. Vicente.

Também, durante o longo processo judiciário sobre a posse e divisas das donatarias houve alguns capitães-mores cujos nomes Azevedo Marques não dá, mas que figuram na relação de frei Gaspar. Creio ter, com este ligeiro esboço, contribuído com um pouco de luz para a elucidação de um ponto importante para a história da capitania de S. Vicente, que, como disse um ilustre escritor, é a chave da história geral do Brasil.

S. Paulo, outubro de 1899.

A. de Toledo Piza.

Imagem: trecho final da publicação original


[1] Vide História da Capitania de S. Vicente, por Pedro Taques de Almeida Paes Leme, vol. 9 da Revista do Instituto Historico Brazileiro, pág. 172. A seção de Pernambuco tomou o nome de donataria de Itamaracá.

[2] Vide S. Paulo no fim do século XVI, pelo dr. Theodoro Sampaio, vol. IV da Revista do Instituto Histórico de S. Paulo.

[3] Vide História da Capitania de S. Vicente, por Pedro Taques, vol. 9 da Revista do Instituto Historico Brazileiro, pág. 172.

[4] Herdeiro de Pedro Lopes aqui não quer dizer seus descendentes, mas aqueles que herdaram seus direitos sobre as suas donatarias depois da extinção de sua família na pessoa de d. Izabel de Lima, sua última descendente.

[5] Vide Revista do Instituto Historico Brazileiro, vol. 9, páginas 301-302.

[6] Deve o leitor ter sempre em lembrança que houve dois Pedro Lopes de Souza - um irmão de Martim Afonso de Souza e primeiro donatário de Santo Amaro e de Itamaracá, e outro filho de Martim Afonso e 2º donatário de S. Vicente.

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