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TRILHOS (71)
Sociedade santista em 1900
Curiosidades, usos e costumes de uma Santos marcada pelos trilhos dos bondes, preparando-se para o surgimento do transporte elétrico, foram o tema desta matéria especial publicada na edição de 5 de setembro de 1954 do jornal santista A Tribuna:

 

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Título da matéria

Trens, bondes & burros, alegre "sociedade" do começo do século

Em 1900, o muar e o vapor constituíam a força motora dos transportes coletivos urbanos - Pachorrice e bom humor, passageiros fiéis dos bondinhos a burros - "Carros de praça", veículos ordinários, disputados pela elite - "Viagens" a São Vicente, causa de solenes bota-fora na estação do Itororó - Os bondes elétricos, soltando chispas sobre os trilhos, apavoravam muita gente

Francisco de Marchi

Muitos dos bondes que por aí se descosem em cada esquina, são personagens quarentões. E arrastam reboques ainda mais velhos, que já circulavam pela cidade no começo do século, quando o burro ou o vapor constituíam a força motora dos transportes coletivos urbanos. Tais reboques nos transportam ao tempo em que os bondinhos a tração animal reinavam soberanamente, sofrendo apenas a concorrência incolor da carruagem singela, puxada por magros cavalos. Concorrência modesta; poucos cidadãos podiam preferir a carruagem ao bondinho de tostão; reservava-se àquela, quase sempre, para os atos solenes: acompanhamentos de enterros ou de casamentos.

Acreditando que os leitores hão de achar interessante uma viagem À Santos daqueles tempos, procuramos apanhar o depoimento de velho funcionário da Cia. Docas de Santos, que, segundo nos confessou, foi entusiasta do antigo sistema de transportes. O sr. Lisardo Gonçalves Peres, atual fiel do armazém da grande empresa portuária, símbolo de constância - há 32 anos que presta serviços ininterruptos à Docas - foi taxativo: "Eram os bondinhos muito razoáveis. Neles, durante a viagem, tirávamos boas sonecas, embalados pelo batucar dos cascos dos irracionais sobre o chão".

Lisardo, então, fez-nos relato curioso daquilo que poderia ter sido o "S. M. T.C." da época, polvilhando-o ainda de jocosas referências aos costumes reinantes.

Revolução na General Câmara - Em 1900, as linhas de bondes, todas à tração animal, estendiam-se pelas ruas mais movimentadas da cidade (General Câmara, 15 de Novembro, Santo Antônio (do Comércio) etc. As mais longas obedeciam ao mesmo percurso das de hoje: alcançavam o José Menino, através da Vila Matias e a Ponta da Praia, via Boqueirão. A Avenida Conselheiro Nébias, ainda não calçada, possuía estação de bondes intermediária, à altura do Boqueirão, exatamente onde hoje se estende a Av. Epitácio Pessoa. Ali se efetuava a muda das parelhas de burros. A estação ficava nas proximidades de impenetráveis bambuais.

Na época, ninguém reputava morosa a marcha dos bondinhos. Havia muita pachorrice, muito bom humor, passageiros fiéis dos coletivos. Freqüentemente, o bondinho descarrilava e os passageiros, lestos, algumas vezes sob aguaceiros e soltando graçolas, repunham o trambolho sobre os trilhos. Os bondinhos recolhiam-se cedo, às 22 horas, mais ou menos. Não eram iluminados no interior; lampiões colocados à frente e à retaguarda do veículo serviam apenas para assinalar-lhe a presença dentro das tintas da noite.

E a iluminação das ruas? Corria à conta do gás de carvão, queimado em bicos grosseiros, em jatos de luz mortiça, idêntica à dos maçaricos sem pressão. As ruas, estreitas, vestiam-se de sombra. Não admira que, adotado o sistema de lampiões de camisas incandescentes - com melhor queima de gás e produção de luz mais viva - o povo se alvoroçasse e saísse em massa à rua, apinhando os bondinhos, para ver a nova maravilha.

A primeira rua a receber iluminação do novo tipo - oh! revolução! - foi a General Câmara. Os santistas ficaram entusiasmados, não faltando quem afirmasse, muito a sério, que "com maior número de lampiões, ter-se-ia luz capaz de empalidecer a do dia"...

O bondinho a tração animal, na Rua General Câmara, detêm-se em local próximo à
atual Rua Frei Gaspar. Um dos sobrados à esquerda, ainda existe;
as primeiras casas, à direita, correspondem hoje à área ocupada pela praça Rui Barbosa
Foto publicada com a matéria

"Negócio só pr'a inglês" - Dois homens - prosseguiu o sr. Lisardo - respondiam pelo andamento do bondinho: o cobrador e o cocheiro. Não usava farda o cocheiro; de especial, apenas o boné. Trazia sempre uma das mãos ocupadas pelas rédeas; a outra, descansava sobre a manivela do breque. À boca o clássico apito, trilado gaiatamente às esquinas... Acentue-se que passeios à praia tinham o gosto de fuga romântica. Banhos de mar? Somente sob prescrição médica, às 3 ou 4 horas da manhã, com as mulheres enterradas até o pescoço em roupas espessas. As praias viviam, sempre, muito desertas.

A própria Avenida Ana Costa, à altura da Praça da Independência, deixava-se atravessar por um riacho, vencido por tosco pontilhão. Mato por todo lado. Na orla do mar viviam muitos ingleses, o que passava por altamente exótico. Terreno para o mar era oferecido abertamente a Cr$ 20,00 o metro de frente, mas ninguém topava o negócio, embora o bonde raspasse as áreas postas à venda.

E nossos patrícios recusavam bons lotes, piscando os olhos com sabedoria: "Terreno na praia? É negócio só pr'a inglês"" Naquele período, jornaleiros não ancoravam nas bancas; iam oferecer, aos passageiros dos bondinhos, periódicos, que não iam além de quatro páginas e custavam cinco vinténs. A venda ficava entregue a rapazinhos de dez ou doze anos; depois de terem madrugado para colocar os matutinos, os coitados se ocupavam ainda, à noite, em vender os jornais chegados da Capital! Belo exemplo para os marmanjos de hoje, em hora alguma do dia querem saber do "batente".

O trenzinho - O burro - frisou o sr. Lisardo - era mesmo a alma do transporte urbano. Entretanto, quem não podia socorrer-se do fleumático bondinho, barato, a 5 vinténs por seção, tinha que apelar para o carro de praça, carruagem singela, de 4 rodas, quase sempre puxada por dóceis cavalos (às vezes eram atrelados aos carros burros gordos, reluzentes). O cocheiro viajava no alto, empoleirado na parte externa. Existia uma estação, ou melhor, uma cocheira de carros, na Rua Itororó, onde hoje estão erguendo o prédio do Sindicato dos Empregados no Comércio. Pontos de carros, diversos: na estação da estrada de ferro, Praça da República etc.

Os quadrúpedes não deixavam de ser personagens importantes em cerimônias alegres ou tristes. Nos casamentos, tiravam carros brancos, enfeitados com flores de laranjeiras, guiados por homens trajados de branco; nos funerais, carros negros, conduzidos por homens trajados de preto. Conforme a condição do morto, atrelava-se mais algumas parelhas de cavalos, ostentando vistosas mantilhas e longos penachos enlutados. É verdade que nem todo enterro era realizado em carruagem; existia um bondinho para o transporte de defuntos. Mas era reservado somente para anjinhos.

Houve época que os santistas se orgulhavam de outro gracioso tipo de transporte, um trenzinho ligava a cidade de Santos a S. Vicente, custando a passagem Cr$ 0,50. Nos dias de movimento, a locomotiva arrastava gôndolas abertas (algumas ainda rodam como reboques dos atuais bondes das linhas 17, 19 e 29). A partida do trenzinho se verificava da estação do Itororó, na esquina da Rua das Flores (hoje Amador Bueno), do prédio em que atualmente funciona uma agência de leiloeiro. Note-se que dito prédio, até hoje, não foi submetido a qualquer reforma, tendo recebido, apenas, simples caiações.

O sr. Lisardo Gonçalves Peres à A Tribuna: "Terrenos na praia, servidos pelos bondinhos, eram oferecidos a Cr$ 20,00 o metro de frente, mas ninguém topava a parada"
Foto publicada com a matéria

Os intrusos vencem a parada - À partida do trenzinho, criava-se atmosfera solene. "Viagens" a São Vicente constituíam, para certas pessoas, acontecimentos incomuns. Anunciavam-se aos conhecidos, com antecedência de dias, o propósito de se visitar o município vizinho. Por isso, não raro, compareciam à estação parentes e amigos dos viajantes; iam assistir ao bota-fora e formular aos que partiam votos de feliz excursão...

Foi em 1900 que o trenzinho teve, talvez, seu maior momento, funcionou sem parar, eis que se comemorava em S. Vicente o 4º centenário da descoberta do Brasil. Saía o trenzinho da estação do Itororó, tomava a Rua do Rosário (João Pessoa), alcançava o Largo do Rosário (que estava para ser alargado) e, ganhando a S. Leopoldo, obedecendo o mesmo trajeto da atual linha 1, rumava para o vizinho município.

A estampa da locomotiva bastaria para esfriar qualquer pretensão de se lhe contrapor o bondinho modesto, puxado por burros. Entretanto, nem todos pensavam assim e, um dia, verificou-se a instalação de nova linha de bondes, por tração animal, que, partindo do José Menino, passou também a fazer a ligação de Santos a S. Vicente, enfrentando o cartaz do trenzinho.

Mas o castigo veio - se me permitem a expressão, nesta história de bondinhos a burros - a cavalo. Não demorou que a atrevida concorrente fosse absorvida pela Cia. Viação Paulista, dona dos bondinhos a burros da Capital e dos de Santos, proprietária também do famoso trenzinho.

Devo também referir que o italiano dr. João Eboli, cujo nome está ligado a uma das ruas da cidade, chegou a adquirir o privilégio da exploração dos serviços de bondes na cidade, inclusive os de ligação com o Guarujá, feito por outro pitoresco trenzinho.

Contudo, delineava-se a intromissão de empresa mais poderosa no panorama dos transportes urbanos; concretizou-se, logo, com a passagem de todos os serviços à propriedade da Cia. City. Foi esta Cia. quem instalou na cidade, ali por 1910, os primeiros bondes elétricos. Os intrusos chegaram, rodaram e ganharam a parada; não demorou que o antigo sistema de transportes entrasse em rápida agonia. A última linha de bondes a tração animal a desaparecer - finalizou o sr. Lisardo - foi a da Rua Xavier da Silveira".

Sentido gaiato de uma palavra - Terminado o depoimento, ficamos a imaginar a importância do modesto bondinho de burros, numa cidade provinciana, a servir população livre das angústias que hoje nos massacram. Os bondinhos a burros, não há dúvidas, alegraram a cidade, numa época em que a lentidão de movimentos não constituía pecado capital. Tornaram mais deliciosos os acidentados piqueniques ruidosos e aproximaram inúmeras famílias.

Nos domingos, a voltinha de bonde pelas praias adquiria o sabor de uma aventura selvagem. Não admira que, à inauguração dos primeiros bondes elétricos, muita gente preferisse andar a pé, receosa do revolucionário melhoramento, esbugalhando os olhos com pavor, ao ver os novos mastodontes despedirem chispas sobre os trilhos.

A época, realmente, tinha atrativos e não podemos jurar que, de lá para cá, a melhoria tenha sido surpreendente. Dispomos hoje de ônibus, é verdade, fumarentos, que lavam de óleo as ruas da cidade; dizem até, os analistas da fumaça de tais veículos, que a mesma contém substâncias altamente nocivas para as vias respiratórias. E bondes de há quarenta anos, rebentados, ainda se arrastam por aí. Sumiram-se apenas os engraçados bondinhos de burros, que levavam 1 hora para alcançar a Ponta da Praia e quarenta minutos para surgir no José Menino.

Mas os bondes de hoje, teoricamente, não levam muito menos tempo para realizar os mesmos trajetos de outrora. Teoricamente, porque na prática, gastos pelo esforço de muitos anos, se desmancham pelo percurso e, não raro, ao invés de atingirem o ponto anunciado nos dísticos, vão dar com as sofridas carcaças nas oficinas, revelando, a todos, o sentido humorístico da palavra "PROGRESSO"...


Queriam que a próxima estação fosse a final. Felizmente, não foi...

Carlos Pimentel Mendes