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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (C)
A qualidade de vida em questão (4)

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Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas. É desse período esta série de matérias especiais, que continuou sendo publicada no jornal santista A Tribuna em 27 de maio de 1981:
 
A questão da qualidade de vida, tema da série de reportagens que termina hoje, foi discutida em mesa-redonda por quatro pessoas ligadas aos problemas ambientais. Concluiu-se que, de certa forma, a qualidade de vida em Santos é boa, se a isolarmos do contexto em que está; na Baixada Santista. Mas, em termos de conjunto, a qualidade de vida é má, como entendem os participantes. Os trabalhos se desenvolveram sobre essa conclusão, dentro de um esquema em que os jornalistas Álvaro de Carvalho Júnior e José Carlos Silvares apenas conduziram os debates, procurando não influir no pensamento de cada um.

Participaram: Sérgio Sérvulo da Cunha, advogado, professor de Direito Civil e presidente da seção Santos da Ordem dos Advogados do Brasil; Luís Carlos Gottsfritz, geógrafo; Célio Calestine, arquiteto, professor de Urbanismo na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo de Santos, e que durante 10 anos participou dos projetos da Prodesan; e Carlos Eduardo Lins da Silva, jornalista e membro do Centro de Estudos Ecológicos de Santos.


A mesa-redonda foi realizada no miniauditório de A Tribuna
Foto: Rafael Herrera

A qualidade de vida em questão

Luís Carlos - Quando cheguei a Santos, a primeira coisa que me impressionou foi o calor. Como ele me incomodava, comecei a prestar atenção no porquê desse calor. E cheguei à parede de edifícios junto à praia, uma realidade que salta à vista. Depois, notei que os edifícios estão se pulverizando ao longo dos bairros, moderadamente arborizados.

Comecei a examinar a legislação, a história, as dificuldades com que vinha esbarrando no decorrer do trabalho, e a maior disparidade que observei foi que a Cidade possui um plano diretor bem feito, realista, mas tem uma lei que não reflete nada desse plano. Uma lei antiga, defasada. Devem existir pressões por trás disso; talvez o poder imobiliário exerça alguma forma de pressão. A alguém não interessa cercear o crescimento vertical da Cidade.

Cruzei certas informações: a temperatura média anual, por exemplo, aumenta 2,5 graus a cada 10 anos, dado o crescimento da massa edificada. Santos já é extremamente quente no verão, a ponto de precisar criar microclimas locais para poder sobreviver. O índice de umidade é elevado, e o calor, com a umidade, gera um tipo de panela de pressão. Não se tem ventilação que carregue o vapor exagerado, então o santista fica sendo cozido por aquele vapor, lentamente. E a massa edificada continua crescendo...

Outro aspecto é o da circulação de veículos. Acredito que com a inversão de dinheiro isso possa ser minorado, e muito. Hoje, o custo social que se paga num semáforo de Santos é altíssimo. Há semáforos de até três minutos, sendo 50% desse tempo ocioso em relação à outra corrente de tráfego. Se acresce também a incivilidade da população, que estaciona em qualquer lugar. Não há um senso de vida em comunidade...

 

"Não há senso de vida em comunidade"

 

Calestine - A qualidade de vida, no meu entender, tem dois aspectos: o físico e o sócio-econômico. No físico, concluo que em Santos ela é muito boa. Isso no Município, espaço fechado, dentro de uma região maior, que é a Baixada Santista. Se se mantiver essa qualidade de vida num espaço de 10, 20 anos, a Cidade permanecerá adequada à vida humana.

Podemos então discutir os fatores determinantes da deterioração urbana. Por que uma cidade, num determinado estágio do desenvolvimento do País, entra em processo de deterioração? E saímos do físico para discutir outras determinantes, numa cidade capitalista. Por que cidades capitalistas de países dependentes começam a passar por um processo de deterioração quando entram num estágio chamado de desenvolvimento? Um país como o Brasil, tachado de país em desenvolvimento, tem suas cidades com qualidade de vida em decadência.

Começamos a pensar em Santos em termos de Baixada Santista, que acaba englobando todos os usos urbanos comuns nas cidades brasileiras: o uso industrial, em Cubatão; o uso tipicamente residencial, em São Vicente e em Vicente de Carvalho; turismo de massa, em Praia Grande; turismo de classe média alta, em Guarujá; e centro de serviços especializados para toda a região, em Santos.

Começamos a perceber que a qualidade de vida do conjunto não é tão boa. A partir de que momento essa qualidade começa a entrar em decadência? Década de 50, quando se implantou a refinaria em Cubatão. A partir daí, houve toda uma mudança na própria evolução de Santos, nos interesses em torno de Santos, Baixada Santista.

O acúmulo de capital da população de São Paulo, gerado pela industrialização, no pós-guerra, fez com que a burguesia industrial passasse a ter sua segunda residência em Santos, com vista para o mar. E o setor imobiliário percebeu a possibilidade de ocupar a orla, dentro dos padrões da época, de construção e aproveitamento máximo do solo.

Na época, havia até um certo pânico, porque se dizia que Santos poderia afundar. Isso determinou uma altura de edifícios, e o plano diretor físico acata isso. Determinou 14 pavimentos junto ao mar e 10 pavimentos para uma zona turística. Mas hoje já se encontra 10 pavimentos em qualquer ponto da Ilha. O plano diretor entrou num processo de alteração...

Luís Carlos - Eu apresentei uma visão técnica da questão. Claro que as raízes são bem profundas. A explicação está na história. O aspecto que coloquei se dá numa fatia, numa proporção da Cidade, que não reflete o total da Ilha de São Vicente. Santos é privilegiada em termos de renda, devido à forma como se distribuem fisicamente essas populações. Temos a baixa renda dividida pelos morros, e a população privilegiada para cá do morro (praia), onde o sonho permanece.

Para ela, não é problema criar microclimas, porque a renda é suficiente para comprar o ar condicionado. Para lá do morro, a situação é outra. A nível regional também a qualidade de vida é outra: Cubatão, o problema de Vila Parisi... É uma situação absurda. O tipo de suporte físico da Baixada Santista é muito ruim, insalubre. São solos hidromorfos, onde não há fluidez de água. É preciso conquistar terreno. Aliás, a Ilha hoje não tem mais nada. Você tem que verticalizar...

Calestine - Mesmo assim, a qualidade de vida é boa.

Luís Carlos - Eu não acho. Se se colocar em termos de percentuais de população, você vai ver que, afora os privilegiados, o resto tem dificuldade de transporte, habitação precária, falta de infra-estrutura de serviços...

Calestine - Falando de Santos (ilha) como um espaço fechado, colocado em limites bem determinados, os indicadores vão determinar boa qualidade de vida. Mas se discutirmos a periferia, vamos entrar com indicadores que passam a ser negativos: qualidade do ar e de habitação em Cubatão, qualidade de serviços em Vicente de Carvalho, qualidade de transporte em Samaritá. Então, na Baixada Santista, a qualidade vai para um índice abaixo do normal...

Outro componente de deterioração é o político. Hoje não existe nenhuma possibilidade de participação da população nas decisões, porque não há legitimação de alguns governos na Baixada santista. Não há possibilidade de a população decidir aquilo que é melhor para o espaço onde ela vive. Existe um plano diretor ultrapassado e existe outro, o Plano Diretor de Desenvolvimento Integrado (PDDI) que não é usado. E por que não é usado? Ele tem uma proposta de viabilidade a verticalização... mas não foi levado à discussão popular. Aí vem o problema da decisão do Governo Central, que hoje centraliza toda a questão da renda nacional, inclusive empobrecendo os municípios...

 

"A população não decide sobre o que é melhor para o espaço onde ela vive"

 

Carlos Eduardo - Parece que a questão da qualidade de vida está limitada por uma questão do regime que a gente vive. Pela experiência, sabemos que existem duas vertentes no movimento ambientalista. Uma  que quer ver o ambiente melhor, para a minoria. Por exemplo, se a praia está poluída porque as pessoas vão lá e jogam detritos, é melhor fechar a praia e cobrar ingresso. Só vai entrar gente fina, que não vai deixar detritos...

A outra vertente, ainda minoritária no movimento ambientalista, à qual me filio, procura ver o problema sob um prisma político-econômico, e dentro desse prisma existe uma crise das cidades capitalistas dependentes, da qual eu acho que a gente só sai com a mudança do regime. É evidente, por exemplo, que só vamos ter democracia na universidade, quando houver democracia no Pais; só vamos ter uma qualidade de vida melhor, quando houver um regime democrático no País. Mas não é por isso que se vai deixar de agir de alguma forma.

Dentro dessa linha de agir, a minha preocupação é eminentemente política. Não tenho nada a ver com técnicos. Acho que temos que operacionalizar determinados instrumentos que possibilitem essa participação que não existe, da qual o Célio fala.

Por exemplo, não sei como a gente pode continuar calado diante de um plano de se gastar 30 bilhões de dólares em algumas usinas nucleares, numa região onde sobram cinco milhões de quilowatts, que não estão sendo utilizados. Usinas abandonadas pelos próprios países que a produzem, como a Alemanha e os Estados Unidos. Não há como permanecer com esse gasto. É o nosso dinheiro. Na Baixada Santista, há uma grande percentagem da população sem água, sem esgoto, sem transporte, sem geladeira, sem televisão, sem coisa nenhuma. Não tem cabimento se gastar 30 bilhões de dólares em energia nuclear, e isso só no projeto de Angra dos Reis.

Não é possível continuar tolerando coisas como a expulsão dos moradores de Vila Parisi, em nome dos interesses nacionais, quando a gente sabe que todas as empresas são multinacionais. Então, os interesses nacionais são os interesses das multinacionais?... Que fazer? Me parece que se deve fortalecer as entidades democráticas, desde os partidos políticos até as entidades ambientalistas que existem e que estão surgindo. E também remodelar determinados órgãos como o Conselho Municipal de Defesa do Meio-Ambiente (Comdema), órgão que supostamente seria um canal de representatividade da população. Também os partidos devem ter a questão do meio-ambiente como meta prioritária nos seus programas.

Sérvulo - Acho que esse tema é muito amplo. Nós não definimos o que seja a qualidade de vida. Eu queria enfocar o tema do ponto de vista do espaço vital, espaço de vida que a gente dispõe. E percebo uma certa distorção, porque falamos de Santos como se fosse apenas a ilha. Estamos esquecendo que a ilha, perto de toda a área do Município, é um nada. Temos Bertioga. Temos toda essa área não aproveitada. Existem razões para isso? Podemos ver depois.

Outro problema é que não podemos falar de Santos em uma perspectiva regional. Então, a solução desses problemas estaria num planejamento regional. Na metropolização da Baixada Santista. Não se pode pensar em transporte só aqui em Santos, sem pensar em transporte regionalizado, abrangendo Cubatão, São Vicente etc. Sob esse ponto de vista, como advogado, enxergo, na solução para esse problema, alguns entraves que decorrem de nossa legislação.

Em primeiro lugar, o estatuto da propriedade urbana não permite o planejamento da sociedade, o aproveitamento comunitário do solo. O estatuto de nossa propriedade é o estatuto da propriedade tal como existia no Direito Romano, a propriedade individualista. Existe um artigo da Constituição dizendo que a sociedade (N.E.: propriedade) tem uma função social. Mas como se entende a função social da propriedade? Aquele que é proprietário ou que tenha sua casa, ou que tenha muitos imóveis, poderia ser contra qualquer socialização da propriedade. Vai perder o que tem. Mas não é isso. O estatuto que temos prejudica inclusive o proprietário, que era aquele que tinha uma bela casa, com bom quintal e foi obrigado a vendê-la. No lugar dessa casa foi construído um prédio de apartamentos. Então, é um tipo de estatuto jurídico que não atende aos interesses mesmo daqueles que poderiam ser proprietários.

Acho que, apesar do pequeno nível aquisitivo da população, dada nossa extensão territorial, e as possibilidades que temos de transportes, de organização e de aproveitamento, todos poderiam ter uma casa, um lugar onde morar. No que diz respeito especificamente a Santos, não vejo como até hoje não se pensou no aproveitamento de Bertioga. Isso para mim é um escândalo que existe em Santos. O que está acontecendo lá? Uma área enorme, onde não se encontra terra para comprar. Por quê? Porque existem grandes proprietários que detêm a propriedade do solo e não vendem, ou vendem a preços astronômicos.

O mesmo acontece do outro lado do estuário, para onde está prevista a construção do Distrito Industrial do Quilombo. Os proprietários dessas terras estão esperando que o poder público crie condições de urbanização, de aproveitamento industrial urbano dessas terras, para aí então poderem vendê-las a preço alto. Então, o que vai fazer o poder público? No dia em que houver transporte, possibilidade de acesso para a área continental, quem quiser adquirir um pedaço de terra vai pagar caríssimo. Temos que pensar numa forma de esses proprietários receberem vantagens decorrentes do acréscimo do valor de suas áreas e prestem a justa retribuição para os cofres públicos, por meio de instrumentos que podem existir, como a contribuição de melhorias.

Há inúmeros exemplos da aplicação correta desse tipo de tributo. Mas ninguém está pensando nisso. Se raciocina como se Santos fosse apenas a ilha, quando está sobrando lugar em Santos. Não houve prefeito que aproveitasse Bertioga. Vamos precisar de uma cidade universitária, quadras de esportes, núcleos de trabalhadores. Poderiam ser lá. Tudo com planejamento. Senão, vai ocorrer uma urbanização indiscriminada, caótica, como é a que temos hoje, decorrente do estatuto da propriedade, que é individualista.

 

"A solução estaria na metropolização da Baixada Santista"

 

Calestine - Tenho uma observação. Quando participei do plano para Bertioga, na Prodesan, percebi que Santos tem uma carência cada vez maior de espaços para a construção de escolas e de programas de saúde e de recreação. Nós teríamos uma necessidade imediata de fazer reservas de terra. Fizemos a proposta: existiam vários terrenos considerados de utilidade pública, aqui em Santos (ilha), para a abertura de ruas. Mas analisamos e concluímos que eles não tinham nenhuma importância como via urbana. Poderiam se transformar em escolas, em áreas de lazer. mas foram transformados em ruas. Existem em Santos algumas praças mas a maioria é contemplativa. Como são contemplativos, de enfeite, os jardins da praia...

Carlos Eduardo - Basta comparar os jardins de Santos com o aterro do Flamengo, no Rio. Lá se usa os jardins. Aqui não se usa, porque é proibido pisar na grama.

Calestine - Aí, quando se resolve instalar uma concha acústica na praia, o pessoal critica. É uma concha acústica, onde a Banda Carlos Gomes vai se apresentar para o povo.

Sérvulo - Não acredito que a concha acústica tenha sido construída para a banda.

Calestine - Falo da banda porque gosto dela. Falo de um espaço pequeno. Quando projetei o Ginásio de Esportes da Ponta da Praia, era um ginásio para se desenvolver o esporte a nível de bairro. Mas o transformaram em ginásio municipal, para mil pessoas, sem estrutura nenhuma para isso. Deveria ser um ginásio de bairro, como se pretendia que fossem outros a serem construídos na Zona Noroeste, na Areia Branca, em Aparecida etc. O que fizeram não tem cabimento. Transformaram o ginásio de bairro em ginásio municipal.


Sérgio Sérvulo da Cunha, advogado

Célio Calestine, arquteto

Fotos: Rafael Herrera

Sérvulo - Já que você tocou nesse ponto... eu movi uma ação popular contra a concha acústica...

Calestine - Eu sei... (risos).

Sérvulo - Por duas razões. A principal delas é o precedente perigoso. A gente sabe que o poder municipal é absolutamente irresponsável no aproveitamento de nossos esforços. Fez aquela plataforma criminosa no José Menino, está acabando com a praia de São Vicente. Bem, eu preferiria  que ela fosse construída em outro lugar, e não em cima do jardim.

Em segundo lugar, eu não vejo nada no que diz respeito a uma programação cultural. Onde está o Conselho Municipal de Cultura? Onde está o arquivo municipal? Outro dia eu soube que foi criminosamente desmontado e transferido para o Centro de Cultura, onde está jogado. Um trabalho valioso feito por uma professora aqui de Santos. Então, esse arquivo foi mudado apenas para que se pudesse colocar na sua direção um apaniguado político do senhor prefeito municipal. Tirou-se das mãos de um técnico para colocar alguém lá. Não estou, absolutamente, fazendo acusação pessoal nenhuma. Não vejo nenhum plano ou contexto em que isso se integre. De modo que não vejo aspectos positivos sobre o aproveitamento dessa coisa. E, eventualmente, a gente poderia até aceitar.

Calestine - A concha acústica deveria estar inserida num contexto maior, e discutida. Isso sim. Sou favorável à colocação de equipamentos na praia, para não ficar aquele jardim somente contemplativo, que consome uma verba incrível de manutenção, o ano inteiro.

Sérvulo - De preferência, sem prejuízo da praia...

Calestine - É claro. Que o plano seja realmente seguido. Mas acontece que todo governo começa cheio de idéias. Depois, entra um outro prefeito com idéias maravilhosas, com um grupo diferente, e muda tudo.

Luís Carlos - É a falta de representatividade. A partir do momento em que você tem o povo vigiando, o sujeito tem que vender alguma coisa para o eleitorado. As pessoas vão votar nele porque está vendendo idéias, que satisfazem à maioria. Quando não existe isso, ele precisa criar idéias a partir de uma visão tecnocrata. Reúne uma elite de planejadores, monta um programa de governo e implanta 15 por cento dos planos. O resto são papéis gerados.

 

"O não aproveitamento de Bertioga é um escândalo"

 

Calestine - Aí é que está. Ele procura legitimar-se através do respaldo técnico, mas, nesses grupos de idéias, quem participa é a pequena e grande burguesia. o proletariado não participa. A verdade é que a periferia, que eu tenho visitado para um trabalho da escola, não acredita nos próprios planos do Governo. E não acredita porque não tem respaldo.

Carlos Eduardo - Bem, já que definimos que Santos é região, queria falar de Vila Parisi... E pegar dois aspectos que saíram aqui. Primeiro, o do precedente. Vila Parisi me parece um precedente muito perigoso. Em nome da qualidade de vida, com a qual o poder público nunca se preocupou nos vinte e cinco anos que ela existe, está se pretendendo expulsar uma comunidade de uma região onde já tem raízes; onde está estabelecida, bem ou mal; ao invés de urbanizar aquela região e dar melhor qualidade de vida para seus habitantes. Pretende-se mandar todo aquele pessoal embora, para que as empresas possam instalar-se. Assim, como está ocorrendo com Vila Parisi agora, pode ir um bairro mais adiante.

O outro aspecto é a questão da falta de credibilidade; não só dos poderes públicos, como dos pesquisadores, universitários, professores, jornalistas e tudo mais. Acho que essa falta de credibilidade geral está criando um descrédito de grande parte da sociedade civil, que, inclusive, está querendo lutar junto.

Calestine - Inclusive, há uma questão que se deve levantar. É quando se fala de ocupação de todo o estuário. O uso do estuário como expansão do porto. Está se pensando seriamente na questão dos mangues. De repente, descobriram que é economicamente viável transformar o mangue em área ocupável para a indústria ou o porto. Nós temos ao longo de todo o cais, até chegar na Cosipa, uma grande área de mangue. Quem descobriu essa área para uso foi o favelado. Depois de instalada, vamos ver essa população sendo despejada em detrimento do avanço do porto. Acho até que o porto deve avançar, mas acho que se deve ver como ele vai avançar.

É a questão da Vila Parisi. Uma área de terrenos residenciais com valor bem inferior à de terrenos industriais. Houve até uma corrente em Vila Parisi que aceitava a desapropriação se o valor da terra fosse industrial, pois com o dinheiro os moradores teriam condições de construir uma casa em outro lugar. Mas a área não tem esgoto, água, a qualidade de vida é péssima. Quem quer comprar? Ninguém. Quanto custa? Custa zero. O problema deve ser discutido com representação de toda a população: representantes de sociedades amigas de bairros, grupos ecológicos, partidos políticos etc. E que a partir daí fosse então decidido quais os caminhos para a ocupação de um determinado espaço urbano.

A população deve participar inclusive como técnico. Quando na Vila Rica estoura um cano qualquer, imediatamente vai o serviço público e conserta. Se a população do morro tem um problema idêntico, o serviço vai lá e dá uma manilha para que eles instalem no fim de semana. Isso é a discriminação na distribuição de renda pública. Por que o serviço público não vai lá também instalar a manilha? Discriminação até mesmo dentro de um espaço público.

 

"O arquivo municipal foi criminosamente desmontado e jogado nas mãos de um apaniguado do prefeito"

 

Luís Carlos - Voltando ao assunto do porto, ele está movimentando 23 milhões de toneladas/ano, e pretendem chegar aos 100 milhões. Como esse pessoal que está no poder, ou o pessoal dominante, imagine um porto desse tamanho, sem analisar a estrutura internacional? Está certo, o porto vai crescer, mas até um determinado limite, porque não acredito que de um certo ponto em diante a gente vá conseguir competir com a atual compressão de salários e os problemas sociais que estão dentro das indústrias. Se projeta uma coisa, se fala em mais uma usina de gás de carvão, e que essa usina vai gerar gás para a economia de combustível...

Carlos Eduardo - Acho que é o mesmo caminho da usina nuclear, que está na região de Santos. Uma fonte absolutamente insuspeita, que é o professor Eduardo Calestine - ninguém pode acusá-lo de subversão ou coisa parecida - diz que, no momento, na Região Sul, sobram três milhões de quilowatts; em 85, sobrarão 5 milhões, e a gente está investindo em mais geração de energia nuclear nessa região. Mas não está investindo nada, por exemplo, em torres de transmissão para as áreas do País onde está faltando energia. Portanto, a imprevidência é muito grande.

Luís Carlos - Mas eu entendo isso aí. O problema da energia nuclear não é o problema da energia nuclear em si. É o problema da geração de plutônio, que vai gerar a bomba. Temos a Argentina, por exemplo, que tradicionalmente traz toda uma tecnologia do átomo. Os argentinos estão muito na frente em termos de bomba. Para se conseguir essa bomba, a gente está ainda vários passos atrás. Agora, não adianta a gente ter população, território e poderio econômico, se a gente não puder dispor de uma arma dessas.

Carlos Eduardo - Bem, mas poderiam ficar com apenas uma usina, suficiente para gerar o plutônio deles e deixar o resto em paz...

Sérvulo - Eu não sei os dados que eles consultam para a construção dessas usinas e grandes terminais são apenas dados de interesse econômico ou geográficos. A população não é considerada, nem a qualidade de vida, porque isso não significa números, dinheiro, a não ser que se apresente como força de trabalho...

Carlos Eduardo - Mas não foi isso que o Rubens Vaz da Costa disse em Vila Parisi? Textualmente: "Não vou deixar de atender os interesses nacionais para atender os interesses de uma pequena comunidade".

Sérvulo - Mas quais são os interesses nacionais?

Carlos Eduardo - São os interesses das multinacionais...

Luís Carlos - Acho que é preciso haver uma revisão da consciência nacional. Amanhã, os árabes decidem aumentar os preços do petróleo e se altera todo o processo. Como é que podemos garantir que o porto chegará aos 100 milhões de toneladas? Eu não acredito. Não acredito mais no desenvolvimento do País. Ele vai continuar, mas esse movimento capitalista periférico que se está implantando aqui, na base de multinacionais, vai de roldão nas próximas décadas. Agora, há a necessidade de se rever esses parâmetros.

Sérvulo- Essa definição contém implicitamente um tópico muito sério, que corresponderia à implantação de qualquer planejamento. Pelo menos em termos micrométricos, a gente deveria continuar a exercitar o planejamento. Não há nada que nos impeça de rever o estatuto da propriedade urbana.

 

"Área, na Vila Parisi, custa zero"

 

Calestine - Tenho uma sugestão: devemos discutir educação, alimentação, vestuário, que também fazem parte do indicador da qualidade de vida. Então, a gente vê a aplicação de investimentos violentos em projetos faraônicos; atingir os 100 milhões de toneladas, que viriam não sei de onde; e chega-se à conclusão que a cesta de consumo, de gêneros de primeira necessidade, está cada vez mais vazia.

Carlos Eduardo - Pela primeira vez na história do País, o consumo de alimentos caiu.

Calestine - É um índice indicador negativo da qualidade de vida, e que conseqüentemente vai gerar um indicador negativo de qualidade de saúde. E é uma degringolação total daquilo que a gente está tentando conceituar de qualidade de vida. Ninguém abre de ter uma boa casa, uma boa escola, e que se deve discutir a questão cultural. Para nós, que fazemos parte dessa classe dominante, cultura é aquilo que emana da gente, nós é que fazemos cultura. Mas cada vez mais se vê a destruição da cultura popular deste País, quando 80 por cento da população brasileira é o povão proletariado. Só a nossa é válida? E o morro, sem respeito algum de qualquer manifestação cultural que possa existir lá?

Carlos Eduardo - Os migrantes nordestinos concentrados na Baixada Santista têm a sua cultura destroçada. Não é apenas o aspecto artístico, não é a falta do forró; é a cultura de como enfrentar o mundo. Eles vêm numa concepção de mundo dependente de determinados laços familiares, determinadas instituições primárias e se vêm enfrentando numa metrópole onde tudo isso está sendo destruído, ou está literalmente destruído. Como ele poderá sobreviver culturalmente numa cidade dessas?

Acho importante colocar isso, para que a gente abra um pouco mais a dimensão de cultura. Cultura também é qualidade de vida. E se depara com um alto índice de alcoolismo entre os migrantes nordestinos na Baixada Santista.

Calestine - Trata-se da desintegração dessa população diante de uma nova estrutura, pois eles vêm de uma estrutura agrária e são agredidos por uma estrutura industrial.

Sérvulo - Cada pessoa tem direito à sua visão do mundo, e essa visão ocorre à medida que ela possui laços ou vínculos com o ambiente e com determinados indivíduos. Não se pode desassociar Santos de uma região. Você (Carlos Eduardo) tocou no problema dos migrantes. Muito bem, são 40 milhões de pessoas neste País sem raízes.

Carlos Eduardo - E aí a gente está diante de Vila Parisi. Depois de 25 anos, quando eles conseguem restabelecer algumas das relações, mandam o cara embora, e recomeça tudo de novo.

 

"A questão da energia nuclear é diretamente 
ligada à bomba que se quer ter"

 

Luís Carlos - Isso é a ruptura, e está ocorrendo na América Latina toda. É o problema do país periférico. Fico pensando nesse modelo concentrador que surgiu a partir de Getúlio. O processo é mais antigo, mas se pode ir a partir dele, trazendo a indústria pesada, que Juscelino selou. Isso foi a maldição que acabou rompendo o desenvolvimento cultural. O modelo é de concentração, e trouxe os problemas urbanos que estamos discutindo aqui, num processo de descaracterização que ocorre com o índio e com o caiçara do Litoral Norte. Nossa cultura está em frangalhos.

Calestine - Acontece a ruptura social, numa população que chega e não tem espaço para a manifestação cultural dela, a não ser que de repente se torne moda.

Luís Carlos - Numa região como Santos e São Vicente, onde há quase 50 por cento de migrantes, cada um trazendo pequenos fragmentos de uma memória esquecida lá atrás, já pensou como é difícil estabelecer lazer cultural para essa gente?

Calestine - Você colocou bem. Como deve ser difícil para nós, técnicos, promover ou criar espaços para essas manifestações. Tem que haver um grande cuidado com o que a gente acha que tem na cabeça. Esses migrantes não estão precisando de agasalho, nem de pracinhas bonitas, nem de ar mais perfumado. Eles estão precisando é de ter a cabeça aberta e canais de reivindicação.

Sérvulo - Mais: eles não têm condições nem de pensar em cultura e lazer, porque estão preocupados com o amanhã, com o comer e com o vestir.

Calestine - Não. Eles não têm nossa necessidade de cultura e lazer. Domingo é dia de ir à missa, e eles vão. Esse é o lazer deles.

Sérvulo - Aí é que está o lazer. Aí é que rompeu...

Calestine - Exato. Mas precisamos tomar cuidado, como técnicos, como membros de uma classe dominante, de não querer colocar para eles aquilo que nós achamos que eles devem fazer.

 

"Nossa cultura está aos frangalhos..."

 

Luís Carlos - Na verdade, somos dotados de um grande ranço por causa do nível de preocupação que estamos tendo. A preocupação deles é menor do que isso. É no dia de amanhã: habitação, roupa, alimentação. como é que vamos discutir cultura, lazer, dentro de uma realidade que é uma renda familiar ultra-baixa, na maior parte das famílias da Baixada Santista?

Carlos Eduardo - Eu acho que, mesmo passando fome, o sujeito tem lazer.

Luís Carlos - Mas o lazer dele é a televisão...

Carlos Eduardo - Tudo bem. Então vamos dar a televisão. Você pode pegar uma programação de televisão, alienante como é, e, com um pouquinho de trabalho, discutir com a população e criar nessa gente o espírito crítico, usando o programa no sentido inverso do que ele quer passar. A televisão tem que ser usada. Não podemos desprezá-la. Se pudermos fazer televisão, muito bem. Se não, temos que trabalhar em cima dos programas junto com a audiência. Fazer dessa programação um lazer produtivo.

Sérvulo - Não sei se estou fugindo do tema. Parece que o grande problema da época que estamos vivendo é que passamos de um tipo de civilização para outro tipo. Passamos de um universo regionalizado para um universo concentracionário. Até que ponto, nesse universo, será permitido o acesso ao pluralismo? Até que ponto se vai poder descer a um padrão?

Luís Carlos - Minha grande preocupação é que as verdades básicas mais primárias da necessidade do homem estão sendo agredidas no dia a dia. Acho que ainda existem verdades a se apegar. Existem verdades que são universais ao homem e que não estão sendo respeitadas.

Calestine - Vamos falar em termos de qualidade de vida. Morar, comer, respirar, praticar lazer, se educar bem. Vamos pegar esses indicadores. Se na Baixada Santista uma grande parcela da população come, mora e pratica lazer, então a qualidade de vida é boa. Se uma pequena parcela usufrui desses bens e uma grande parcela não, então a qualidade de vida não é boa.

Sérvulo - Até que ponto esses indicadores são absolutos, e até que ponto são relativos?

Calestine - Vamos colocar em termos absolutos. Se você come bem, se veste bem...

Sérvulo - Mas isso é relativo...

Calestine - Quem come bem dentro das duas classes do nosso sistema? Temos duas classes, uma burguesa e outra proletária.

Sérvulo - Mas se você for usar normas de nutricionistas, vai ver que uma parcela ínfima da população da Baixada come bem.

Calestine - Vamos colocar assim: existe uma parcela que tem e outra que não tem acesso a esses bens. Se a maioria passa a ter acesso a eles, então a qualidade de vida é boa. É um referencial que se coloca. Quando tivermos programas habitacionais coerentes, ar respirável, lazer, sistema educacional e alimentação coerentes, que atendam a um  mínimo... A partir do momento que haja o direito a isso, nós não vamos ter problemas com a qualidade de vida, a não ser que aconteça uma bagunça na estrutura geral.

 

"Os migrantes precisam é de ter a cabeça aberta e canais de reivindicação"

 

Sérvulo - Parece-me que as instâncias políticas, decisórias, não concentram todo o poder de decisão de uma sociedade. Elas estão num desaguadouro de uma porção de correntes especiais. De modo que, se o poder de condução dos fatos sociais é relativo, a pressão que  essas forças decisórias poderão exercer em sentido contrário a esse caudal social será menor, na medida em que essa sociedade seja organizada, em que haja uma consciência crítica dessa sociedade, em que haja grupos organizados dessa sociedade.

Tenho sustentado o ponto de vista de que quem pode, faz. Acho que conduzir toda a ação política - não político-partidária - no sentido apenas de reivindicar dessas instâncias estatais, não é o mais correto. Porque na medida em que o povo estiver organizado, e portanto possa, ele vai ter como fazer e vai ter como impor. O pessoal precisa se organizar, agir e impor. Não basta dizer que há poluição, se uso carro, acendo cigarro, desperdiço alimentos e energia. Há um problema de conscientização que diz respeito ao comportamento individual de cada um, e de um comportamento político ou comunitário de cada um.

 

"Quem pode, faz"

 

Carlos Eduardo - Eu sigo essa linha do Sérgio, só que acho que o fim dessa organização política das pessoas deve ser o domínio do poder público. Parece-me que a solução de todos os problemas está no momento em que se ocupa o poder. Então, tomar o poder do Estado parece-me que é a solução básica dos problemas. Mas é claro que, enquanto isso não ocorre, há as soluções paliativas.

Por exemplo, o movimento de creches, que é um problema de qualidade de vida: as mães não podem trabalhar porque não têm onde deixar os filhos; a importância dos movimentos ambientalistas de um modo geral; a ocupação dos espaços institucionais existentes, como o Comdema.

E a luta pela autonomia política da Cidade. Parece-me que o problema da qualidade de vida também passa por aí. Pode-se ter qualidade de vida melhor, quando se tiver organização, representação e o poder do nosso lado.

Luís Carlos - A gente precisa de uma representatividade que venha lá de baixo. De modo que se sinta que a decisão tomada, apesar de errada, faz parte de um todo, mesmo que ela desrespeite uma contingência básica do ser humano. Mas ela foi tomada em conjunto. E isso faz com que a sociedade cresça. Não vejo outra saída, senão a afirmação dessa representatividade.


Luiz Carlos Gottsfritz, geógrafo

Carlos Eduardo Lins da Silva, jornalista

Fotos: Rafael Herrera

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