Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0230b2.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 06/13/04 23:55:37
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - URBANISMO (B)
A ocupação da ilha (2)

Leva para a página anterior

Metropolização, conurbação, verticalização. Os santistas passaram a segunda metade do século XX se acostumando com essas três palavras, que sintetizam um período de grandes transformações no modo de vida dos habitantes da Ilha de São Vicente e regiões próximas.

É desse período esta série de matérias especiais, que  continuou a ser publicada no jornal santista A Tribuna em 24 de maio de 1982:


Com a implantação do parque industrial de Cubatão,
inicia-se a miscigenação nordestina para a Baixada

A era do desenvolvimento

(Industrialização, ocupação dos espaços, mudanças, expulsão da população carente...)

Texto de Lane Valiengo
Fotos: Arquivo A Tribuna

Vamos esquecer por instantes o vento Noroeste, que chega com cheiro de produtos químicos, e pensar um pouco: que tipo de desenvolvimento é este, que cria favelas com milhares de pessoas amontoadas, que não permite o acesso aos bens de uso comum à maior parte da população?

Santos possui uma qualidade de vida média bastante alta, uma das rendas familiares mais altas do Estado e do País, um parque industrial que oferece, teoricamente, oportunidade de emprego, um excelente sistema de saneamento. Mas é o suficiente?

"Se pensarmos em termos de que o desenvolvimento deveria contribuir para o bem-estar do povo, dar oportunidade para que a população de baixa renda possa ter acesso aos bens coletivos - a que qualquer cidadão, em tese, deveria ter -, perceberemos que tivemos apenas o desenvolvimento econômico da Baixada". A sentença é do arquiteto Célio Calestine, que realizou estudos detalhados a respeito da ocupação do solo da região.

O raciocínio é simples: toda a população que ocupa os morros, os mangues, os diques e outras áreas carentes, pode ser utilizada como mão-de-obra pelas indústrias. Mas não pode usufruir dos lucros advindos desta atividade.

Historicamente, nenhuma novidade, principalmente diante do processo de expulsão das populações de baixa renda das principais áreas habitacionais da Baixada.

Vamos ver como tudo aconteceu.


Como falar em desenvolvimento da Baixada, se há tantas favelas na região?

As indústrias estão chegando

Um pouco de história, que não faz mal a ninguém: até 1929, a economia brasileira dependia basicamente da produção agrícola, para exportação, com os ciclos da borracha, do açúcar e do café. Cada ciclo corresponde ao desenvolvimento vertiginoso das regiões produtoras.

Uma dúvida: Santos não produzia nada, como poderia sofrer influências? Não, não produzia, mas manipulava, exportava. E surgiu aqui um importante centro de negócios, além da expansão do setor terciário, todo um esquema de prestação de serviços. E a região era uma das mais ricas do Estado, sustentada pelo seu porto.

A crise de 1929 - a quebra da Bolsa de Nova Iorque, lembram-se? -, que se prolongou pelos anos 30, interrompe o ciclo do café, ao mesmo tempo em que representa fator de estímulo ao desenvolvimento industrial. Este grande País precisava ser colocado a caminho do seu destino, é claro, e encarar de frente os tempos modernos.

Na introdução de seu trabalho sobre a ocupação do solo na Baixada, o arquiteto Célio Calestine observa que até o fim da década de 40 a economia era dominada por "indústrias tradicionais, montadas com modesta aplicação de capital, baixo nível de tecnologia e com a produção voltada ao atendimento das necessidades mais elementares, já que a importação de bens manufaturados abastecia o mercado consumidor com produtos mais sofisticados".

A substituição das importações por produtos similares nacionais, no final dos anos 40, alteraria toda esta estrutura e a Revolução Industrial resolve dar seus primeiros passos no Brasil, mesmo que tardiamente.

A fase mais dinâmica do processo ocorre entre 1955 e 1961, com a produção nacional de bens intermediários, principalmente a indústria siderúrgica e os derivados de petróleo. Pronto: estava montada a base necessária para que os capitais estrangeiros descobrissem um novo Eldorado e criassem a indústria automobilística. É exatamente nesta época que surge o parque industrial de Cubatão.

Santos, então, apresentava indústrias tradicionais, voltadas para o mercado da própria Baixada, como as empresas alimentícias, do vestuário, ao mesmo tempo em que, em função da disponibilidade de matérias-primas e das vantagens para o transporte, existiam algumas voltadas para o mercado externo, como as indústrias de papel e vidro, principalmente. A Refinaria Presidente Bernardes e a Cosipa viriam marcar a diversificação de atividades e dar impulso ao surgimento de todo o parque industrial.

A criação deste complexo teve efeitos importantes sobre toda a economia da região, especialmente sobre Santos, pois as indústrias passaram a utilizar o setor de prestação de serviços, já estruturado em função do porto, promovendo também o incentivo à expansão do próprio comércio.

Além disso, Santos vai fornecer a mão-de-obra - em todos os níveis - ao parque industrial, recebendo e abrigando também toda uma população que procurava um emprego em Cubatão.

E nunca mais conseguiria livrar-se destes encargos.


O Porto passou por várias transformações em suas atividades, 
acompanhando as mudanças econômicas

A riqueza, ao alcance de poucos privilegiados

Tragédias não faltaram nos anos 30, principalmente nos extremos: a Grande Depressão (ocorrida em 29, mas que espalhou suas conseqüências desastrosas por toda a década seguinte) e a Segunda Guerra Mundial, bem no final.

Vamos de um lado ao outro do Atlântico: por aqui, existia dinheiro de sobra. Mas, como sempre, nas mãos de alguns poucos privilegiados. Em função da implantação das indústrias em São Paulo, começa a surgir um acúmulo de capital, além de uma nova configuração política.

Vamos ouvir o sociólogo e jornalista Paulo Sérgio Pinheiro: "O período de 30 a 37 foi da caminhada para uma nova configuração do poder, na qual ficará cada vez mais patente o enfraquecimento político e econômico das antigas classes dominantes agrárias. A crise dos anos 20 e o clímax de 20 (N.E: 1929, não "20"), com seus efeitos econômicos e especificamente políticos, terão sido um dos anéis da longa cadeia de mediações por meio das quais se desfez o 'equilíbrio' da 'Política dos Governadores' e se abriu o bloco do poder a novas classes (a burguesia industrial) e a novas alianças, propiciando a transformação do Estado".

Mas nem tudo que reluz é ouro: Getúlio Vargas dominou o País, incluindo o Estado Novo, o golpe que transformou o Brasil em uma ditadura. Stalin promoveu os expurgos e dirigiu a União Soviética com punho de ferro; Roosevelt fez o que pôde e até o impossível para salvar os Estados Unidos da Depressão; as nações latino-americanas endividadas até o pescoço; milhares de funcionários públicos brasileiros ficam desempregados, da noite para o dia; surgem, nas ditaduras do terceiro mundo, programas políticos radicais, com propostas reformistas nacionais, incluindo a legislação trabalhista e a reforma agrária; inicia-se a ascensão de Hitler; apesar de tudo, nasce o American Way of Life, o ideal de lazer americano, e acentuaram-se as disparidades entre os países ricos e pobres.

Mesmo antes da Guerra, a face do mundo estava transfigurada. Mas qual a relação de Santos com tudo isso?

Vamos ver com calma: o capital acumulado pela burguesia industrial precisa ser aplicado em alguma coisa, em algum lugar. A propaganda contribui, e cria-se a necessidade do lazer. Como as praias estavam bem perto, dá-se a ocupação da orla santista por esta mesma burguesia paulista, substituindo definitivamente os barões do café.

Mas a verdadeira ocupação da Ilha de São Vicente surgiria mesmo com o parque industrial de Cubatão, principalmente a partir de 1956. E os problemas agravaram-se, como mostra o estudo de Célio Calestine: "Neste processo de migração intenso, na década de 50, começam a surgir outros pólos de ocupação da população que não tinha oportunidade de ocupar a ilha, pelo alto preço da terra". Os diques e os morros santistas já estavam tomados, e surge Vicente de Carvalho, que passa por um processo de crescimento bastante rápido.

Ah, os anos 60...

O porto tem suas atividades diversificadas, pela substituição, em volume, da exportação dos produtos agrícolas pela importação de matérias para as indústrias de Cubatão. Na verdade, tudo se transforma: as greves operárias, os movimentos políticos, a tendência para a esquerda, a inflação, acabam servindo como motivo para a Revolução de 64. E, com ela, a perda da autonomia de Santos e Cubatão, de efeitos profundos e desastrosos.

A necessidade de exportar cada vez mais provoca novo surto de incentivo à indústria, atraindo novos empregos. Mas, a valorização do preço da terra faz com que gradativamente aconteça a expulsão da população de baixa renda, não só na parte plana da ilha, como observa Calestine, mas inclusive nos próprios morros (Nova Cintra passa a ser alvo de preservação, para projetos ecológicos. Ou coisa que o valha). "Mas a grande parcela desse novo migrante que passa a vir não tem mais alternativa de ocupação do morro, não tem alternativa de habitação, e passa a ocupar o mangue, passa a ocupar os mangues não só em Santos, como também em Cubatão, e ocupa Vicente de Carvalho de uma forma marcante. Para ter uma idéia, basta dizer que 60 por cento da população de Guarujá, cidade de 90 mil habitantes, mais ou menos, é favelada. E desses, estão em Paicará cerca de 70 mil".


De antigo porto canoeiro, Santos transformou-se em centro de negócios e de serviços

Visão assustadora - Depois deste processo de ocupação, o que aconteceu com a Baixada Santista? Aquela mesma burguesia industrial, que antes ocupava a orla santista nos fins de semana, prefere ir para Guarujá, em busca de ambientes mais selvagens e tranqüilos e, numa segunda etapa, para o Litoral Norte.

"Santos, tendo em vista que não apresenta periferia - a periferia de Santos são os outros municípios da Baixada - detém a maior renda familiar do Estado, uma qualidade de vida que podemos considerar excelente. Mas não há alternativa de acesso da população de baixa renda".

Calestine continua: "Cubatão, com seu programa de desenvolvimento industrial, dentro de uma política de coação a mais selvagem possível, se depara com um problema: oferece o maior número de resíduos industriais, considerado como um dos espaços mais poluídos do mundo, ao ponto de determinados setores do Governo estabeleçam que Cubatão não deve mais ser uma área ocupada por habitantes. Vila Parise transforma-se em centro de discussão mundial, e aí começam a surgir as contradições: o morador da Vila Parise não pode viver lá, pois a área é poluída, temos crianças defeituosas etc. Mas o trabalhador pode permanecer dentro da Cosipa, por exemplo, durante oito, 12 horas seguidas. Então, começamos a sentir que este desenvolvimento não é assim tão desenvolvimento".

O raciocínio é lógico, embora assustador: a população de baixa renda pode servir como força de trabalho, mas não pode receber os benefícios do acúmulo de capital gerado em função dessa industrialização, dessa produção.

"Há simplesmente um desenvolvimento econômico da Baixada, em função da implantação das indústrias de base, a maioria estatal. Se não estatal, dentro de uma coligação da alta burguesia, multinacional e o próprio capital estatal, que não reverte à população os benefícios desta industrialização".

E o espaço tomou formas bem definidas, na Baixada:

1) Santos caracterizando-se principalmente como um centro de prestação de serviços, dentro de um processo de especialização das áreas médicas, educacionais, de capital financeiro, bancária etc., E sem locais disponíveis para novas habitações: já está saturada.

2) Cubatão: predominantemente industrial, e não parece surgir outra alternativa, principalmente diante da política de expulsão da população. São cerca de 60 mil favelados (Calestine comenta: "Se bem que toda a população de Cubatão é favelada, praticamente. A população alta e média trabalha lá mas vive em Santos").

3) Samaritá (Distrito de São Vicente), surgindo como uma alternativa de expansão para aquela população carente. Mas, hoje, Samaritá já apresenta preços da terra também incompatíveis com o nível de renda desta mesma população (informação correlata: de acordo com o Censo, 80 por cento da população da Baixada Santista apresenta renda familiar abaixo de cinco salários mínimos. E nenhuma família nestas condições tem acesso aos programas habitacionais do BNH ou Cohab. O pior: desses 80 por cento, 60 por cento situam-se na faixa inferior a dois salários).

4) Praia Grande caracterizando-se cada vez mais como área destinada ao turismo de massa da Grande São Paulo.

5) Guarujá, ainda o centro de lazer da alta burguesia paulista, embora a altíssima burguesia já esteja no Litoral Norte.

6) Vicente de Carvalho, a principal área de habitação da população fixa de Guarujá, e tendo ainda possibilidades de expansão.

7) São Vicente também surge como área de expansão residencial para a população de baixa e média renda, ainda com espaços a serem ocupados.

8) E Bertioga, tão longe de tudo, recebendo a partir de agora a população operária de baixa renda de Mogi das Cruzes e municípios vizinhos. Um grande potencial, que continua inexplorado.

Uma conclusão: Santos necessita, urgente, de um processo de renovação urbana, de renovação de suas estruturas. Mas, diante da qualidade de vida bastante aceitável, é improvável que isso aconteça, pois poucos olhos estão pousados no futuro desta ilha.


O trabalhador não tem possibilidade de usufruir do lucro gerado

Leva para a página seguinte da série