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BENEDITO CALIXTO
Calixto e as Capitanias Paulistas - 21


Clique na imagem para ir ao índice da obraAlém de refinado pintor, responsável por importantes telas que compõem a memória iconográfica da Baixada Santista, Benedicto Calixto foi também historiador e produziu várias obras no gênero, como esta, Capitanias Paulistas, impressa em 1927 (segunda edição, revista e melhorada, pouco após o seu falecimento) na capital paulista por Casa Duprat e Casa Mayença (reunidas).

O exemplar, com 310 páginas, foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 249 a 265):

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Capitanias Paulistas

Benedito Calixto

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Imagem: cabeçalho de página da obra (página 249)

CAPÍTULO XVII

Massacre dos "oitenta homens mandados ao sertão". - Desânimo e desilusão de Martim Afonso, pela notícia desse morticínio. - Ataques de índios à Vila de S. Vicente, capitaneados pelos castelhanos de Iguape e Cananéia. - O capitão Ruy Garcia de Moquêra. - Fortificações e meios de defesa, em S. Vicente e Itanhaém, iniciados por Martim Afonso. - Regresso de Martim Afonso ao reino, após a chegada de João de Souza. - O início da "caça aos índios" e a destruição das aldeias do litoral. - A arte pré-histórica no Brasil. - Considerações etnográficas sobre os habitantes das duas Américas.

stavam as coisas neste pé quando, ao governador e a toda sua colônia, chegou a triste e alarmante notícia do desastre sofrido pela expedição dos oitenta homens mandados ao sertão, do porto de Cananéia.

Dos "40 besteiros e 40 espingardeiros", inclusive o chefe Pedro Lobo, nenhum só havia escapado ao horrível massacre!

O trágico desfecho desse empreendimento, no qual o futuro donatário e todo o seu séqüito depunham tantas esperanças, quanto ao desenvolvimento do almejado tesouro, veio - como é dado julgar - desorientar e abater o ânimo de Martim Afonso.

Só então é que ele compreendeu a sua situação, de reconquistador e de povoador, em relação aos castelhanos que já dominavam um boa parte do litoral e sertão, desde Iguape até Santa Catarina, e mesmo além da Lagoa dos Patos.

O massacre desses soldados, os mais destemidos de sua tropa de defesa, tinha sido executado e planejado, não restava dúvida, por esses aventureiros espanhóis e "portugueses-degredados", já domiciliados e firmados na região da costa, fazendo causa comum com as tribos de Tupiniquins e Carijós, cujos chefes - seus aliados - os auxiliavam já nos resgates de escravos e hostilidades aos portugueses. Estes índios, instigados por tais aventureiros, é que tinham sacrificado o pessoal da expedição de Cananéia.

Serão estes mesmos "conquistadores do litoral" que virão, em breve, à Vila de São Vicente, saquear e incendiar os papéis do nascente arquivo e o livro do Tombo da Paróquia, conforme rezam os documentos da Câmara vicentina dessa primeira época.

O historiador Ruidias de Gusmán, no seu livro Conquista y Población del Rio de la Plata, 1612, narra, com pormenores, o ataque e saque da Vila de São Vicente, em 1534, por esses aventureiros castelhanos e portugueses residentes em Iguape, capitaneados pelo célebre Ruy Garcia de Mosquêra. Antes de Martim fonso se retirar para Europa, ordenara a Ruy Pinto e ao capitão Pero de Góes que, com um troço de índios flecheiros e homens d'arma, de sua colônia, fossem, por mar e por terra, expulsar os espanhóis que ali se tinham domiciliado, com o tal bacharel e outros lusitanos, sobre os quais recaia a suspeita de "traição e morte dos oitenta homens perecidos no sertão". Estes castelhanos haviam se apoderado, à traição, de um navio francês que ali aportara em busca de víveres. Foi com a artilharia e mais munições de guerra desse barco que os espanhóis se entrincheiraram na barra do Icapara, e prepararam uma emboscada, ao terem conhecimento do ataque que iam sofrer dos vicentinos. Logo no primeiro encontro foram estes derrotados, com grandes perdas pelos espanhóis, que aprisionaram e feriram gravemente o capitão Pero de Góes.

Eis como o historiador castelhano, ao terminar a narração, descreve o epílogo da vitória de Mosquêra e a retirada desastrosa da gente de São Vicente: "Continuando los castellanos la victoria (em Iguape), y por no perder la occasión llegaron, de vencida, á la villa de San Vicente, donde entrado en las ATARZANAS DEL REY las saquearon y robaron cuanto habia en el puerto.

"Hecho este desconcierto, volvieron a su assiento con algunos de los mismos portuguezes, que al disimulo los favoreceron, donde metidos em dos navios, desampararon la tierra, y se fueron a la Isla de Santa Catalina, que es ochenta legoas mas para el Rio de la Plata, por ser reconocidamente demarcacion y territorio de La Corona de Castilla, y ali hicaron asiento por algunos dias, hasta que el Capitan Gonzalo Mendoza encontró con ellos, como adelante se dirá.

"Pasó este sucesso el año del 1534, el cual entiendo fue el primero que hube entre cristeanos en estas partes de las Indias Occidentales".

Serão esses mesmos índios tupiniquins Carijós, capitaneados ainda pelo próprio Ruy Mosquêra e o tal bacharel de Cananéa, que hão de martirizar e assassinar os dois missionários jesuítas Pedro Corrêa e João de Souza, companheiros do padre Leonardo Nunes (o abarébebê), logo ao início das Missões Evangélicas em nossas plagas, não obstante as providências de defesa e as ordens do futuro donatário de São Vicente, antes de seu regresso a Portugal, conforme ficou provado.

De fato: antes de sua volt ao reino, Martim Afonso, reconhecendo o perigo que corria a sede de sua colônia, não só deu ordem de expelir e guerrear estes espanhóis e portugueses degenerados, bem assim as tribos indígenas que os auxiliavam, como tratou imediatamente de fortificar, não só a vila de São Vicente, como a povoação de Itanhaém, fundada por ele, que, assim fortificada e guarnecida, seria um ponto estratégico "ou posto avançado no litoral", em defesa da sede da sua futura donataria.

Até então tinha ele descurado de tal medida, por ter estado em paz com os castelhanos e com os índios.

As circunstâncias atuais, porém, obrigaram-no a mandar levantar um baluarte de defesa no Porto das Naus, em frente ao porto de Tumiaru, artilhar a "muralha natural" da boca da Barra de São Vicente, em frente à primitiva vila e Ilha do Sol [59], e guarnecer com artilharia a Barra do Rio Itanhaém, instalando os canhões no outeiro de Nossa Senhora da Conceição sobre a "Pedra Grande" na qual, do lado do Sul, já estava erguida a tradicional "Ermida" sob a mesma invocação [60].

Como também, já nessa ocasião, os índios tamoios das aldeias de Ubatuba estivessem iniciando suas hostilidades aos colonos de São Vicente, devido à maneira desabrida e cruel com que se estava fazendo o tráfico com estes e com as demais tribos do litoral, do Sul e do Norte, ordenou Martim Afonso que se fortificasse também a barra de Bertioga.

Os principais baluartes, nesse porto, só foram, porém, levantados, quando o donatário já se achava na Europa. Foi Braz Cubas quem, por sua ordem, iniciou a construção desse forte, conforme se depreende de documentos incontestáveis, como se verá da citada memória As Fortificações do Porto de Santos.

Havendo, pois, urgente necessidade de levantar esses propugnáculos, a fim de defender a vila de S. Vicente, tão ameaçada, ordenou o chefe da colônia que o pessoal de povoadores residente em Piratininga abandonasse a povoação ali fundada e regressasse ao litoral, e que, conforme consta das crônicas da época, nenhum colono fosse ao planalto da serra "regatear com os índios".

Esta ordem expressa de Martim Afonso só foi, em parte, revogada mais tarde, por sua mulher d. Anna de Pimentel, quando ele já se achava na Índia.

Grande parte desses colonos, porém, verdadeiros aventureiros que se tinham embrenhado no sertão em procura de minas e no intuito de arrebanhar escravos, incitados pelos primeiros mamelucos e índios seus aliados, que já moviam guerra aos míseros íncolas do sertão, não obedeceu às terminantes ordens de Martim Afonso de Souza, e por lá ficou.

Tais aventureiros, como é bem sabido, desde o tempo da descoberta, ou como degregados, ou mesmo voluntariamente, abandonavam as naus - conforme relata Pero Lopes, no trecho já citado, do seu Diario -, deixavam o convívio com os demais colonos, nas povoações e feitorias já fundadas e "afundavam sertão a dentro", fascinados pela atração dos tesouros e pela vida nômade!

Era por isso que el-rei, desde 1511, proibia que o comandante da nau Bretoa deixasse "ir à terra firme" os tripulantes da dita nau, destinada a uma ilha, nas proximidades de Cabo Frio.

Nas Cartas Jesuíticas, principalmente naquelas que tratam do início das Missões em São Vicente, como as de Leonardo Nunes, Pedro Corrêa e outros, são relatados os modos de vida desses aventureiros que "abandonavam seus patrícios embrenhando-se pelos sertões, durante anos, para viver com os íncolas, tornando-se tão selvagens ou mais que os próprios filhos das selvas".

Alguns desses colonos, reconduzidos aos povoados cristãos, pelos missionários, "já haviam perdido não só o idioma português como toda a noção de moral e civismo, tornando-se até antropófagos". Isto, entretanto, não se dava só com os lusitanos, mas também com os castelhanos, franceses etc., não só em São Vicente, como nas capitanias do Norte.

Eram, principalmente, as regiões banhadas pelas grandes artérias fluviais, os grandes estuários que, de preferência, os atraíam pela fácil penetração. Gente "sem eira nem beira, mesmo os fidalgos de nata estavam sujeitos a tais aventuras" [61].

"O Rio São Francisco fascinou Duarte Coelho, primeiro donatário de Pernambuco, que, para devassá-lo e arrancar-lhe as riquezas apregoadas, apenas esperava a hora de Deus, segundo sua grave expressão", escreve Capistrano de Abreu, ao se referir às penetrações do sertão setentrional. A mesma fascinação experimentaram os dois futuros donatários de São Vicente e Santo Amaro, bem como os demais colonos aventureiros ao visitarem as zonas dos estuários de Cananéia, Superagi, Morpion e os cursos da Ribeira de Iguape, Anhembi, Paraíba etc.

Além desses estuários e caudais, o que mais lhes interessava, seriam as regiões do litoral em que existiam caminhos de penetração, por onde os índios se comunicavam com o planalto e interior do sertão, os caminhos de Parati pela Serra do Facão, que conduziam o vale do Paraíba e às serras de Cataguazes [62], bem como os de Ubatuba e Caraguatatuba (as terras dos Tamoios), que estabeleciam, a estes indígenas, comunicações com o mesmo vale do Paraíba e Paraibuna, onde tinham povoações.

Os índios da Bertioga, já quase extintos nessa época, tinham seu "caminho do sertão" pelo rio Tutinga e serras que se estendem até as proximidades de Mogi das Cruzes e Paraíba. De Jurubatuba (porto de Santos) havia outra via de comunicação para Mogi, a qual se melhorou no tempo de Braz Cubas, conforme é ainda conhecido pelos vestígios existentes nas respectivas serras.

Em Santos e São Vicente, além desses dois caminhos - Tutinga (da Bertioga) e Jurubatuba - bem como de outras veredas que iam ao Alto da Serra e Borda do Campo -, existia ainda o célebre "caminho velho" (Pissaguéra) que do Rio Uruguai seguia, margeando a cachoeira, até a Grota-Funda, e dali até o alto (Rio Grande e Campo Grande), donde se dirigia para Santo André e São Paulo de Piratininga [63]. O caminho do Cubatão, depois aberto e melhorado, no tempo de Anchieta, por ordem de Mem de Sá, onde hoje trafegam os automóveis e é conhecido por Caminho do Mar, já existia nessa época e só era trilhado pelos índios.

Foi pelo caminho velho (Piassaguéra) que Martim Afonso, seu séqüito e os primeiros missionários jesuítas, Leonardo Nunes, Diogo Jacome e Pedro Corrêa, penetraram nos campos e sertões de Piratininga, antes de 1553.

São estes, aliás, fatos incontestáveis, como se podem provar, com documentos só agora conhecidos.

Além do caminho de Piassaguera e do caminho do Cubatão, no mar de Santos, que são até hoje bem conhecidos, existiam o Sul do lagamar de São Vicente, outros "caminhos do mar", que comunicavam com os sertões do interior e foram percorridos pelos primeiros povoadores e missionários.

Entre estes, os mais notáveis são: o que da aldeia de Imbohy (ou Mboy) e Santo Amaro se dirigia a Itanhaém, conhecido por Caminho do Gado, do qual as sesmarias do tempo de Martim Afonso e os velhos documentos da Câmara daquela vil nos dão notícia [64].

Essa antiga "estrada" foi ainda melhorada, após a Independência, pelo engenheiro Porfirio, a mandado do governo provincial; mais tarde, 1885, o deputado dr. Cunha Moreira, residente e proprietário em Itanhaém, por verba votada pela mesma Assembléia Provincial, mandou também melhorar o caminho da serra, desde o alto até o Porto Velho, à margem do Rio Branco.

Foi por esse caminho do mar, de Itanhaém, que o célebre caudilho, Bartholomeu Bueno de Faria, súdito da capitania de Itanhaém, residente em Jacareí, desceu em 1710, com o seu troço de índios e tropas de muares para tomar a Praça de Santos e levar o carregamento de sal, para abastecer as povoações do interior, como é bem conhecido. Foi ainda nessa mesma "estrada", perto de Praia Grande, que a escolta, vinda de Santos, o prendeu - oito anos após o crime por ele praticado [65].

E ainda por este "caminho do gado", que os moradores do ALto da Serra, do distrito de Santo Amaro e Itapecirica, desciam e descem, com animais, para Conceição e Praia Grande.

No meio da praia de Peruíbe (Paraná-mirim) existe ainda um caminho de penetração, partindo do porto de Piaçaguera (porto velho), que se dirigia para o sertão, em rumo de Noroeste, conforme se nota no mapa geral da Comissão Geográfica, dessa região de Itanhaém.

Este "caminho velho" faldeava as serras do Bananal e Cahêpupú até o entroncamento com a cordilheira marítima (tapera do Índio Roque), dirigindo-se dali para os sertões de Sorocaba, Araçariguana, Araritaguaba etc. Era nessa região, cortada pelos dois caminhos - do gado e da aldeia velha (Paraná-mirim) - que estavam situadas as minas de Araçoiaba e as legendárias terras auríficas de Botucavarú, Lagoa Dourada e outras, das quais os aranzéis (roteiros antigos) nos dão notícias. O morro e cachoeira do Mineiro, nas proximidades de Mongaguá, entre Aguapeí e Rio Branco, indicam ainda, na nomenclatura geográfica de Itanhaém, a preocupação constante dos seus primitivos povoadores.

As serras dos Itatins - no litoral de Itanhaém - entre Guaraú, Una do Preldo, Pagaoçá e Juréia e os afluentes do Juquiá, São Lourencinho, Itariri e Guanhnhã, tinham "fama de ocultar tesouros", como é bem conhecido. Nesses rios ainda hoje se extraem pequenas parcelas de "ouro de lavagem" e outros minerais.

A ribeira de Iguape, com seus numerosos afluentes, como tentáculos sugadores, estendidos em todas as direções, foi, nesta região da Capitania de Itanhaém, a parte que mais atraiu a cobiça dos povoadores e principalmente dos primeiros aventureiros, ávidos de "ouro e de escravos".

São também conhecidos os caminhos de penetração, que, desde o tempo da descoberta, se dirigiam para o sertão do Noroeste, pelo Juquiá, até as vertentes do Paranapanema. As vias fluviais e as "veredas indígenas", que da Xiririca (N.E.: atual cidade de Eldorado/SP), Iporanga, Apiaí, se encaminhavam para Itapeva da Faxina e sertões do Avaré, em Paranapanema, eram também muito afamadas em notícias de minas auríferas. O morro de Vutupoca, as Grutas Calcárias e as Minas de Chumbo no Iporanga; as minas de Apiaí - o morro do ouro! - e tantos outros indícios que já se manifestavam nos primeiros dias do povoamento, deviam, como já se disse, fascinar os lusitanos e castelhanos dessa primeira época.

O "mar pequeno de Cananéia", a ligar-se com o estuário de Superagi (Paranaguá), com seus caminhos para as terras dos Carijós, passando por Curitiba, Umbotuva, em direção aos cursos do Tibagi, Cinzas e Paranapanema, ou ainda, do lado oposto, com o Iguaçú e seus tributários, era também, nesse tempo, um ponto do litoral em grande evidência, para os "sonhadores de tesouros e caçadores de índios".

Foi, como já se disse, nas serras de Paranaguá, próximo a Antonina, "o local onde se extraiu o primeiro ouro no Brasil", conforme indica o citado mapa que se acha no Instituto Histórico de São Paulo, publicado pela primeira vez na memória Capitania de Itanhaen. Nesse mesmo mapa antigo, na seção que trata da topografia da vila de Guaratuba, estão bem indicados os lugares em que se extraía o ouro, bem como o Posto do Registro onde se fiscalizava o rendimento das minas da Capitania de Pero Lopes de Souza.

O nome de Serra da Prata, dado a essa zona orográfica, conforme se vê do dito documento, demonstra que também houve ali indícios desse metal precioso.

Os espanhóis e portugueses encontrados por Martim Afonso, nesta parte do litoral, já conheciam todos esses pontos e faziam resgates com as tribos desses sertões.

Pedro Corrêa, Francisco de Moraes Barreto e outros, apresadores e vendedores de escravos, haviam já destruído as aldeias de índios situadas ao Sul de Itanhaém, quando Martim Afonso - depois de seu regresso de Piratininga - tratou de fundar ali uma povoação, com seu respectivo propugnáculo [66].

Antes de aportarem a estas plagas os primeiros descobridores, já todo o litoral, desde Cabo Frio a Santa Catarina (nesta região), estava povoado de aldeias, que pouco a pouco se foram extinguindo, pela devastação operada pelos conquistadores.

Os núcleos indígenas de Bertioga e São Vicente, onde dominavam os grandes chefes Piquerobi, Caubi e outros, foram logo destruídos pelos invasores.

No local da extinta aldeia de Tumiaru, residia nesse tempo, 1532, o português Antonio Rodrigues, parceiro de João Ramalho. Rodrigues estava vivendo maritalmente com a filha do chefe Piquerobi, que não se quis aliar aos portugueses, como fizeram Tibiriçá e Caubi. A prova mais cabal da existência e desaparecimento do grande núcleo indígena, em Tumiaru, são os objetos de arte indigena - igaçabas, ídolos e mais utensílios de cerâmica encontrados nas escavações antigas e recentes que ali se têm feito, no prolongamento da antiga Rua do Porto e Rua Capitão-mor Aguiar.

Parte desses túmulos indígenas, igaçabas e mais artefatos de cerâmica, foram recolhidos pelo major Sertório, há trinta ou quarenta anos, para o seu museu particular, transferido depois para o do Ipiranga. Das últimas escavações que ali se têm feito, para os lados de Sambaetuba, pudemos recolher ainda alguns fragmentos dessas igaçabas e escudelas, com belos ornatos, que conservamos em nosso estúdio.

Guardamos também, com extremo carinho, fragmentos de armas e ídolos, em cerâmica, recolhidos das escavações praticadas na base do morro, próximo ao porto de Tumiaru. O outro importante núcleo de aldeamento primitivo era o que estava situado á margem esquerda da foz do Rio Itanhaém, no mesmo local onde surgiu a terceira vila fundada por Martim Afonso de Souza.

Esse grande aldeamento e outros que lhe ficavam ao Sul, em Paraná-mirim, Peruíbe, Guaraú e Una da Aldeia (já na foz da Ribeira de Iguape) foram todos devastados pelos régulos e aventureiros, conforme já ficou dito.

Diz o autor da citada Memoria sobre as Aldeias da Provincia de São Paulo que o capitão Francisco de Moraes Barreto, companheiro de Martim Afonso, "levou a ferro e fogo os indígenas que ali - em Itanhaém - deparou, subjugando os que não puderam fugir e com estes, sob a mísera condição de escravos, erigiu a aldeia que foi conhecida com o nome de Itanhaém, derivada da tribo que anteriormente tivera por solar aquele território".

Se este capitão, que deu predicamento à vila de Itanhaém, como governador de São Vicente, assim procedia para com os índios do litoral, que se poderia esperar de seus subordinados?

Do que foi o aldeamento de Itanhaém, antes da descoberta e povoamento, pelos lusitanos, poder-se-á hoje fazer uma idéia pelas igaçabas e mais artefatos de cerâmica encontrados nas escavações ali procedidas ultimamente, no perímetro das novas edificações e mesmo na parte antiga, edificada há perto de quatrocentos anos.

São realmente admiráveis as ornamentações - gregas e arabescos - grafadas nesses túmulos e vasos de cerâmica que guardam ainda os despojos dos grandes chefes indígenas, dos quis Anchieta nos dá notícia. Nas cartas do taumaturgo, referentes à catequese em Itanhaém, encontram-se minuciosas referências de alguns desses antigos pajés, por ele catequizados nessa vila, e reconduzidos do sertão, alguns com mais de cem anos de idade. Eram os remanescentes do "antigo povo".

O que mais se admira nesses vasos pré-históricos são o brilho intenso do colorido, principalmente do vermelho-pompeiano, cuja conservação é perfeita, as camadas de tinta-esmalte-branco, resistentes à umidade e à ação corrosiva dos séculos; a nitidez e delicadeza dos traços, a habilidade com que foram delineados os belos e caprichosos ornatos, principalmente o estilo a que obedecem, o qual tanto tem de grego, de árabe ou egipciano; tudo isso enfim é simplesmente admirável?!

Tais artefatos, tão dignos, tão importantes, como as belas coleções de "Cerâmica de Marajó" avaramente guardadas no Museu Goeldi do Pará - estão infelizmente sendo espatifados, aqui em São Vicente e em Itanhaém, pela inconsciência do almocreve e do alvião e dispersas em mãos de curiosos, sem que os poderes públicos, competentes, lhes liguem a mínima importância, não obstante as nossas reclamações [67].

Não se alegue que os museus de São Paulo e RIo de Janeiro estão já enriquecidos com coleções de artes etnográficas dos nossos aborígines, não, pois que os túmulos encontrados em São Vicente e Itanhaém, como os que porventura se encontrem ainda, no local da aldeia de Tibiriçá, em Piratininga ou alhures, representam, mais que tudo, a arte pré-histórica do primitivo povo sul-americano e têm valor idêntico aos monumentos da "arte pré-colombiana" do México e Peru, ou pelo menos, da "Cerâmica da Ilha de Marajó", que alguns arqueólogos supõem ser um produto da civilização das "tribos andinas" - incas e astecas - descidas pelo Amazonas.

São pois esses artefatos indígenas as únicas relíquias que nos restam dos primitivos habitantes dessas aldeias, destruídas pelos primeiros povoadores.

Os atos tão pouco humanitários dos colonizadores lusitanos e de seus sucessores, os bandeirantes paulistas, na caça dos índios e na destruição de aldeias, não constituem, afinal - para essa época -, motivos de grandes recriminações. Era a conseqüência fatal do meio e da própria expansão colonial "a lei da absorção do mais forte contra o mais fraco", que ainda hoje se põe em prática. O desbravamento da Amazônia pelos cearenses, no correr do último terço do século XIX, fato dos mais notáveis da nossa expansão, foi feito à custa do sacrifício dos índios. No alto Acre não restam nem vestígios deles.

Não devemos portanto maldizer, nem condenar, a ação dos lusitanos e bandeirantes, pois os castelhanos do Rio da Prata e principalmente os do Paraguai, bem assim os povoadores das costas do Pacífico, desde o Chile, Bolívia, Peru até o México, foram ainda mais cruéis para com os aborígines dessas regiões, do que os nossos antepassados.

Sabemos bem quais foram as atrocidades, praticadas contra os índios, principalmente depois da expulsão dos missionários jesuítas, quando essas reduções passaram para a administração civil dos célebres comendatários.

Essas crueldades para com os indígenas do novo mundo não constituem privilégio da raça latina; os anglo-americanos praticaram-nas com mais requinte.

Conforme o relato de alguns historiadores americanos que se ocupam da colonização em seu país, existiam em voga, entre os povoadores, aforismos populares como estes: "O índio é mau - o melhor índio é o índio morto".

"Matar um índio é tampouco um assassinato como matar, com a unha, uma pulga, um piolho ou bicho-de-pé".

"Pode-se, sem hesitar, afirmar que na história da colonização - diz outro historiador - em parte alguma, as raças indígenas foram tão maltratadas como nos Estados Unidos. Nos Estados Unidos gastaram-se não menos de quinhentos milhões de dólares nas guerras contra os índios" [68].

Esta luta de extermínio contra os heróicos peles-vermelhas e outras tribos durou quase até nossos dias, como é bem conhecido.

Em 1836, rompendo (outra vez) a guerra entre os índios cheroqueses nos Estados de Alabama e Georgia, J. A. Adams, então presidente da república, assim se exprimia: "A causa da guerra que agora nos vemos forçados  sustentar, contra os cheroqueses, não é outra senão a nossa própria injustiça em sancionar as atrocidades de Alabama e Georgia. Hoje a política que seguis, a respeito de índios, cifra-se em arrancá-los todos da terra que pisam" [69].

Assim, os míseros remanescentes dessa raça indiana eram extintos ou repelidos para além do Mississipi, Missouri e Arkansas.

Um "homem de Deus" - pregador da seita metodista - com o posto militar de major, assim respondeu aos soldados que queriam "dar perdão os índios prisioneiros": - "Anátema seja lançado a todo aquele que tiver compaixão dos índios!" - e acrescentou: - "não quero fazer prisioneiros...".

Assim praticavam os puritanos, enquanto os missionários católicos eram presos e desterrados da república anglo-americana, por "tentarem catequizar e proteger os índios"!

Na América do Sul fazia-se o mesmo!

Hoje, o governo dos Estados Unidos da América do Norte procura emendar suas faltas e expiar suas culpas, formando grandes parques, onde manda erigir estátuas monumentais em honra desses chefes indígenas e seus missionários! Ainda bem!

Oxalá o Brasil e principalmente São Paulo o imitassem!


[59] Vide Villa de São Vicente e As Fortificações do Porto de Santos, por Benedicto Calixto.

[60] Villa de Itanhaen, do mesmo autor.

[61] Em 1587 escrevia Gabriel Soares a respeito dos franceses que "muitos se amancebaram na terra, onde morreram, sem se quererem tornar para a França, e viveram como gentios com muitas mulheres, dos quais, e dos que vinham todos  os anos à Bahia e ao Rio de Sergipe, em naus da França, se inçou a terra de mamelucos que nasceram, viveram e morreram como gentios; dos quais há hoje muitos seus descendentes, que são louros, alvos e sardos, tidos por índios tupinambás, e são mais bárbaros que eles".

[62] Este caminho da Serra do Facão, bem como os de Ubatuba e Caraguatatuba, foram melhorados no tempo da Capitania de Itanhaém; era por aí que se estabelecia então o comércio das Minas dos Cataguazes (Gerais) com o litoral da mesma Capitania. Vide obra citada.

[63] Hoje estação da São Paulo Railway.

[64] Na sessão de vereança da Câmara de Itanhaém, de 2 de outubro de 1838, leram-se dois ofícios do cap. João A. de Paula Oliveira, inspetor das Obras Públicas da mesma vila, comunicando à Câmara - que tinha concluído a abertura da picada que comunicava aquela vila com a Capital, pela vila de Santo Amaro.

Em outra vereança desse mesmo ano, o respectivo presidente - José Pedro de Carvalho - dizia que "se desse cumprimento à portaria do exmo. sr. presidente da Prov., ordenando a fatura da mesma estrada do mar".

[65] Ao tratar de Villa de Itanhaém nos ocupamos detalhadamente deste notável episódio ocorrido no tempo da "carestia do sal".

[66] Conforme consta da obra de Gabriel Soares, do Quadro Historico da Provincia de S. Paulo, de Machado de Oliveira, da dita Memoria sobre as aldeias de indios da Provincia de S. Paulo, bem como da Noticia Racionada sobre as mesmas aldeias, do mesmo autor etc. (Ver a Villa de Itanhen, ainda inédita, parte que se refere às aldeias, no litoral da mesma vila, antes de sua fundação).

[67] O dr. Florence, engenheiro do Estado, recolheu ultimamente um belo fragmento desses vasos artísticos em Itanhaém, no intuito de o levar ao Museu Paulista. O sr. Emygdio de Souza, ao construir uns alicerces para sua casa, na Avenida Condessa de Vimieiro, encontrou um desses túmulos, ultimamente, e o conserva em sua residência em Itanhaém.

[68] Indianer and Anglikaner, Braunschuieg - 1900, pág. 35 - Frederici G.

[69] Smiths, Catlin, pág. 881.

Imagem: adorno da página 265 da obra