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TELAS DE BENEDITO CALIXTO
Fundação de São Vicente

Veja também uma leitura dessa tela por um especialista em História e Arte

Como teria sido a fundação de São Vicente por Martim Afonso de Souza, em 1532, é o tema deste óleo sobre tela, que Benedito Calixto pintou sob encomenda da Prefeitura de São Vicente, em 1900, usando como referência documentos da época. A tela (de 65x100 cm) ficou exposta no Salão Nobre da Prefeitura de São Vicente (clique na imagem para ampliá-la):

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Imagem in CD-ROM Benedito Calixto -150 anos
editado em 2003 pela Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, Santos/SP

Esse quadro foi fotografado por José Marques Pereira em janeiro de 1902:

Fundação de S. Vicente - Quadro de Benedicto Calixto
Imagem publicada na edição especial da Revista da Semana/Jornal do Brasil de janeiro/1902, pág.15

Outra versão desse quadro, ligeiramente diferente (embora também pintado por Calixto), e bem maior (192x385 cm) é conservada pelo Museu Paulista (conhecido também como Museu do Ipiranga), na capital paulista (clique na imagem para ampliá-la):

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Imagem in CD-ROM Benedito Calixto -150 anos
editado em 2003 pela Fundação Pinacoteca Benedicto Calixto, Santos/SP

Note-se a posição diferente da caravela central, a posição da bandeira no canto esquerdo, mudanças nos galhos das árvores à esquerda e à direita, detalhamentos na base da cruz e no formato do monte no centro da imagem, entre outros detalhes:

Em 27 de julho de 1991, o Caderno de Sábado do Jornal da Tarde/O Estado de São Paulo publicou este artigo:

Fundação de São Vicente, de Benedito Calixto.
Óleo sobre tela, 1900. Acervo do Museu Paulista da USP
Laboratório Fotográfico do MP/USP - foto publicada com a matéria

MUSEOLOGIA

Pintura histórica: documento histórico?

Os museus históricos antigos estavam vinculados ao domínio estético, já que a arte fixa sínteses simbólicas de alto impacto e é eficaz para transmitir valores cívicos. Hoje, esse critério tornou-se impróprio. É que a noção de tema histórico alargou-se muito e abrange todos os agentes da vida social, incluindo os anônimos e as massas

Por Ulpiano T. Bezerra de Menezes (*)

Um visitante desprevenido, desejoso de saber com que outros documentos se faz História, além dos papéis dos arquivos, certamente ficaria confuso se se dirigisse a um museu histórico tradicional - e não só no Brasil. Com efeito, teria a impressão de que, nos museus, a matéria-prima do conhecimento histórico se constitui basicamente de móveis de aparato, porcelanas (de preferência brasonadas), armas vistosas e pinturas a óleo - retratos de personagens ilustres, cerimônias, cenas de batalha etc. Aliás, os museus históricos antigos podiam ser confundidos com museus de artes decorativas, categoria cuja natureza, hoje, tem suscitado discussões.

A vinculação destes museus históricos ao domínio estético não é mero acaso. Muitos deles, no modelo europeu, derivaram de museus de arte antiga. Além disso, o papel nobilitante das artes, para comunicar valores cívicos, sempre foi eficaz. No universo das imagens, especialmente, temos campo fértil para fixar sínteses simbólicas de alto impacto.

Não é de estranhar, assim, que o Museu Paulista da USP (Museu do Ipiranga) tenha acumulado, ao longo de sua trajetória quase centenária, ricas coleções artísticas. Foi, aliás, de seu acervo de pinturas oitocentistas que surgiu o núcleo original da Pinacoteca do Estado, inaugurada em 1905. Ainda na década de 50 se encaminharam várias telas à Pinacoteca, permanecendo basicamente aquelas que apresentassem "temas históricos".

Hoje, evidentemente, tal critério temático parece impróprio, seja porque a noção de tema histórico ampliou-se enormemente, abrigando todos os níveis e agentes da vida social (incluindo os anônimos e as massas), seja porque não é apenas o tema, numa obra iconográfica, que tem conteúdo histórico.

Mesmo, porém, que nos limitemos ao tema, os museus encontrariam dificuldade para explorar historicamente as obras de arte. Conviria, por isso, tentar um pequeno exercício de leitura temática de uma tela, por exemplo, para indagar qual seu valor documental para a História. Para tanto, Benedito Calixto pode fornecer excelente oportunidade. Esse importante pintor paulista (1853-1927), de sólida formação acadêmica, notabilizou-se como paisagista e pintor de temas religiosos, mas também percorreu os territórios da História.

A primeira menção, no Museu Paulista, a uma tela de Calixto é a aquisição, por dez contos de réis, da "Fundação de São Vicente", feita com verba da Comissão Comemorativa do IV Centenário do Descobrimento.

A tela, datada de 1900, retrata o desembarque de Martim Afonso de Souza, com centenas de companheiros, no futuro local de São Vicente, em 1532, onde fundaria oficialmente a primeira vila do Brasil.

Três aspectos sobressaem, se a examinarmos de um ponto de vista espacial. Em primeiro lugar, a enorme extensão de espaço que ela representa, e que articula terra, mar e céu. (Medindo 3,85 x 1,92 m, a obra dificilmente teria outro destino que não um edifício público).

A seguir, a estrutura bem marcada, mas muitíssimo simples, da paisagem, sobretudo na sua porção terrestre: planície em ligeiro declive, praia abrigada, riacho e barra, morros, vegetação rala rompida de vez em quando por intromissões da floresta. Nada de excepcional ou particular, contudo: a natureza desse mundo recém-descoberto nem é estranha ou ameaçadora nem paradisíaca.

Por fim, ampla distribuição de figuras (são quase 90 personagens), acompanhadas de suportes de atividade humana: malocas indígenas com os respectivos equipamentos, cruzeiro, caravelas, bandeiras etc. etc.

Este vasto espaço se caracteriza por dois atributos determinantes, cheios de implicações: extensibilidade e indiferenciação. Nenhuma fronteira o circunscreve, nenhum acidente da paisagem tem função demarcatória, nenhum sinal indica término.

Os figurantes se espraiam até o perímetro da tela, que é um corte aleatório, externo, e não impede a projeção da superfície e das ações para muito além de seus limites. Pelo contrário, impõe-se a extensão fora da tela: o mar e as caravelas incorporam a este espaço um espaço matriz transatlântico (Portugal); a presença dos índios - apenas homens e meninos -, assim como traços de assentamento semi-permanente, obrigam a pressupor outros territórios de ocupação.

Doutra parte, nenhuma compartimentação ou especialização hierarquiza o espaço. A óbvia alocação das naus ao mar, por exemplo, é necessidade funcional, mas não representa qualquer subordinação. Os figurantes não caracterizam áreas de concentração, embora se possam detectar vazios na baixada até a praia, à direita.

A ação não é dramática, concentrada, mas narrativa, incorporando situações diversificadas e ocupando todos os planos. Os indígenas comparecem em todos eles. E se nas extremidades, no primeiro plano, parece haver alguma tensão (um soldado português desembainhou a espada; olhando em sua direção, alguns índios se agitam), em todos os demais pontos há mescla de índios e europeus, em tranqüilidade e desenvolvendo variada gama de comportamentos: diálogo com a comitiva de Martim Afonso de Souza (que constitui a ação principal), ou com missionários mais adiante, ou ainda bem longe, à beira-mar, na orla da mata, ou, até mesmo, brincadeiras de curumins.

A preocupação com o detalhe preciso é evidente: transparece nas roupas e armas, nos adornos e outros artefatos de portugueses e aborígines, assim como no interior da maloca. Estaria nesta precisão o valor documental da pintura? Não, pois ela é, antes de mais nada, representação, reelaboração plástica. Basta atentar para o fato de que esta caracterização de personagens envolvidas na fundação de uma vila acentua apenas o nível simbólico.

Não há, por exemplo, nenhuma preocupação com assinalar a paisagem original ou algum traço físico do assentamento. É que aqui, a cidade (vila) não aparece, como tipo de assentamento, mas como modo particular, formalmente determinado e explícito, de apropriação simbólica do território. Daí a importância fundamental dos suportes de sentido: cruzeiro, bandeiras, estandartes, armas, indumentária, gestos e expressões etc.

Note-se que, por isso mesmo, a oposição mais forte entre brancos e índios não se dá ao nível da aparência corporal, dos equipamentos ou armas em geral. É verdade que aparecem alabardas e espadas metálicas diante de tacapes e flechas; vestimentas requintadas e volumosas diante de peles e plumas; naus, diante de uma modesta urna cerâmica funerária. Mas não se opõem valores, nem se acentuam as distâncias. Não há lugar para o exotismo, salvo uma ou outra menção fugidia, como os crânios-troféu espetados num tronco.

A diferença maior se estabelece no plano abstrato, da organização: é uma ordem social nova que a chegada do colonizador representa, emanada de uma instância emblematicamente presente e multiplicada - o Estado, a coroa - garantidora dessa ordem que se pretende estável e durável. (É sugestivo comparar, a propósito, o cruzeiro plantado em sólida base de alvenaria e a transitoriedade das choças indígenas).

Nessa visão, portanto, o presente e um passado tão remoto são radicalmente diversos e a única ponte que se pode estabelecer entre eles é a da evocação, procurando alguma forma que torne visíveis as referências de origem, nascimento, a fim de que seu significado, para o presente, possa ser afirmado, reafirmado e difundido.

Em suma, esta tela de Calixto é importante documento histórico, mas não relativamente ao século XVI. Na verdade, sabemos que a marca da colonização portuguesa não foi a ocupação de território, mas a exploração de recursos; o povoamento terá caráter eminentemente rural, de grande autonomia, e com um tipo de urbanização muitíssimo particular.

Em compensação, a tela nos remete aos tempos em que foi produzida e consumida. Ela é, sim, documento das necessidades simbólicas vividas por Calixto e sua sociedade, no final do século passado (N.E.: século XIX), procurando inventar uma história para a nação ainda jovem - e já superados os ressentimentos com a antiga metrópole.

A ocupação de território - ação expressa, em seu nível formal, como pacífica, nobre e tranqüila, feita sob a égide da fé cristã e da coroa lusitana - integra os novos espaços e seus habitantes a um mundo já definido e superior. As narrações (e representações) de fundações não precisam, por isso, explicar o início de alguma coisa; basta que assinalem o que, no início, constitui plenitude, modelo, mesmo que posteriormente o tempo tenha produzido outros frutos.

Uma tela como esta é fonte preciosa de informações para reconstruir e entender o imaginário de sua época.

(*) O autor é professor titular do Departamento de História da FFLCH/USP e diretor do Museu Paulista da USP.

A tela do Museu Paulista, fotografada com outra iluminação:


Imagem do acervo do Museu Paulista,
como apresentada no site Web do fotógrafo Gilberto Calixto Rios, bisneto do pintor