Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/bondee.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/21/00 17:45:34

O poeta das viagens de bonde

Na edição dupla 8/9, de dezembro de 1922/janeiro de 1923, o mensário de arte moderna klaxon, editado em São Paulo, publicou este poema de Mário de Andrade, na forma abaixo reproduzida:

Poema Abulico

A Graça Aranha

Imobilidade aos solavancos.
Mário, paga os 200 réis!

Ondas de automóveis
              árvores
              jardins...
As maretas das calçadas vêm brincar a meus pés.
E os vagalhões dos edifícios ao largo.
Viajo no sulco das ondas
                              ondulantamente...
Sinto-me entre mim e a Terra exterior

TERRA SUBCONSCIENTE DE NINGUEM

                     Mas não passa ano sem guerra!
             Nem mês sem revoluções!
Os jornaleiros fascistas invadem o bonde, impondo-me a leitura
dos jornais...
         Mussolini falou.
             Os delegados internacionais chegaram a Lausane.

Ironias involuntárias!

Esta mulher terá sorrisos talvez...
         Pouca atracção das mulheres sérias!
         Sei duma criança que é um Politeama de convites, de atracções...

As brisas colorem-me os lábios com as rosas do Anhangabaú.
Sol pálido chauffeur japonês atarracado como um boxista.

                Luz e fôrça!
Light & Power

Eu sou o poeta das viagens de bonde!
Explorador em busca de aventuras urbanas!
Cendrars viajou o universo vendo a dansa das paisagens...
Viagei em todos os bondes de Paulicéa!
Mas em vez da dansa das paisagens,
contei uma por uma todas rosas paulistanas
e penetrei o segrêdo das casas baixas!
 

Oh! quartos de dormir!...
Oh! alcovas escuras e sáias brancas de morim!...
Conheço todos os enfeites das salas de visitas!
Almofadas do gato preto;
lustres floridos em papel de seda...
Tenho a erudição das toalhas crespas de crocê, sobre
o mármore das mesinhas e no recôsto dos sofás!
Sei de cór milhares de litografias e oliogravuras!
Desdémona dorme muito branca
Otelo, de joelhos, junto ao leito, põe a mão no coração.
Have you pray'd to-night, Desdemona?
E os bibelôs gémeos sobre os pianos!
A moça está de azul
Ele de cor de rosa...
Valsas lánguidas de minha meninice!


Em seguida: Invasão dos Estados Unidos.
Shimmyficação universal!
O fox-trott é a verdadeira música!
Mas Liszt ainda atrái paladares burgueses...
      Polónias interminavelmente escravizadas!
             Paderewski desiludiu-se do patriotismo e voltou
aos aplausos internacionais...
                    Como D'Annunzio.
                     Como Clemenceau.

Os homens que foram reis hão de sempre a-

cabar fazendo conferéncias?!...
Mas para mim os mais infelizes do mundo
são os que nascem duvidando si são turcos ou gregos...

franceses ou alemães?
Nem se sabe a quem perten-

ce a Ilha de Martim Garcia!...

HISTORIA UNIVERSAL EM PEQUENAS SENSAÇÕES

                             Terras-de-Ninguém!...
                        ... como as mulheres no regime bolshevista...
No entanto meus braços com desejo de pêso de corpos...
Um tôrso grácil, ágil, musculoso...
Um tôrso moreno, brasil...
Exalação de seios ardentes...
Nuca roliça, rorada de suor...
Uns lábios uns lábios preguiçosos esquecidos n'um beijo
de amor...
Crepito.
E uma febre...
Meus braços se agitam.
Meus olhos procuram de amor.
Sensualidade sem motivo...
E´o olor ólio das magnólias no ar voluptuosos desta rua.

Dezembro - 1922

MARIO DE ANDRADE.


A revista klaxon, iniciada em 15/5/1922 e encerrada justamente com essa edição dupla em homenagem a Graça Aranha, foi filha direta da Semana de Arte Moderna de 1922, que agitou profundamente o panorama artístico brasileiro. Além de Mário de Andrade, freqüentaram as páginas desse mensário nomes consagrados como Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Oswald de Andrade, Tácito de Almeida, Rubens Borba de Moraes e Antônio Carlos Couto de Barros. Junto com os textos, reproduções de Brecheret, Di Cavalcanti, Alberto Cavalcanti, Zina Aita, Anita Malfatti, Yan de Almeida Prado, John Graz e Tarsila do Amaral, e até uma partitura musical de Vila-Lôbos.

No Poema Abulico, logo após a citação dos delegados internacionais em Lausane, havia um verso mais, eliminado pelo autor em razão do falecimento, pouco antes, do tribuno e político baiano Rui Barbosa:
"Naturalmente, o Brasil vai mandar Rui Barbosa", citava o verso.

Eis um trecho da análise do poema feita por Mário da Silva Brito e publicada em 1976 com a reedição especial da revista (co-edição Livraria Martins Editora/Secretaria da Cultura, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo):

"Os modernistas eram irreverentes, mas diante da morte, tornavam-se respeitosos, se bem que o morto de então fosse um dos alvos preferidos dos seus ataques, dado que nele viam um representante do passado, e especialmente, o responsável por um purismo de linguagem de que queriam se libertar, linguagem amarrada aos cânones gramaticais portugueses, que destruíam com jovialidade e pertinácia, procurando dar ao idioma entre nós praticado mais plasticidade, a desenvoltura que veio a ter.

"Nesse caudaloso poema urbano - o único que o autor fez questão de datar em klaxon -, composição de versos libérrimos, alguns de sabor prosístico, em que o lirismo finca raízes no quotidiano e está inundado de sensualidade, o poeta, valendo-se de recursos simultaneístas e de sugestões instigadas pelo subconsciente e pelo consciente, recompõe o meio que o cerca e as coisas em que pensa.

"Nele estão em contraponto, ou propositadamente confundidos, a rotina paulistana, os hábitos e gostos de certas camadas de sua população, representados pela música de Liszt, que ainda atrai paladares burgueses, pelos enfeites costumeiros das casas de São Paulo - as toalhas de crochê sobre o mármore das mesinhas e recostos de sofá, e, notadamente, pelas litografias e oleogravuras, expressões de uma predileção pela arte acadêmica, predileção tratada zombeteiramente no poema. Contrastando com essas ideações de altritempi, as novidades introduzidas no panorama citadino e social de então: o automóvel, e, dentro dele, o japonês, imigrante novo num Estado em que predominam a imigração italiana, a Light & Power, que vem promovendo a substituição dos velhos lampiões de gás pela claridade ofuscante da luz elétrica, o shimmy e o foxtrot, a música dos almofadinhas e melindrosas, o box, para lembrar alguns símbolos.

"É a paisagem que o poeta entrevê ao passear de bonde - veículo ronceiro diante do automóvel modernizante. Passeio que realiza como explorador em busca de aventuras urbanas. Paisagem que já incorporou à mente, que é fruto também da erudição pessoal de quem conhece os lares pacatos da burguesia ou as alcovas escuras, casas baixas ornadas de bibelôs e onde não faltam pianos que as moçoilas maltratam enquanto esperam marido. Vistos ou evocados esses flagrantes, Mário de Andrade os insere no clima do mundo, através de operações intelectuais que lhe trazem uma realidade nacional e internacional em processo no plano político.

"Os jornaleiros fascistas, Mussolini, congressos em Lausane, a possível presença de Rui Barbosa neles, as guerras e revoluções mensais, ocorridas lá fora ou na sua pátria, as Polônias interminavelmente escravizadas, Paderevski estadista, D'Annunzio, Clemenceau, reis depostos, o drama de cidadãos que desconhecem a própria nacionalidade, em virtude da invasão dos seus territórios por nações poderosas, o regime bolchevista e a presença dos Estados Unidos - eis os dados para que apela no sentido de caracterizar ecumenicamente o momento. Alusões políticas, feitas dessa forma, são insólitas em poema. É que o poema pertence ao seu tempo, não está mais isolado no seu torrão natal. Sinto-me entre mim e a Terra exterior. Terra não deste nem daquele indivíduo, nem desta ou daquela nação, mas terra subconsciente de ninguém. Participa até sem querer da História. O mundo chega até ele, incomoda-o com os seus problemas. Vive a História Universal em pequenas Sensações.

"A maneira como reage aos estímulos exteriores, provocados pela visão do ambiente, inclusive pelas rosas paulistanas, e o mergulho que dá em seu íntimo, quando reconstitui o segredo das casas, os dramas de amor, os ciúmes dos namorados, que ridiculariza nas referências a Otelo e Desdêmona, descabeladamente românticos nas litografias e não trágicos como em Shakespeare - traduzem os sentimentos individuais de Mário de Andrade, nele estão difusos e principalmente perturbados pelos fatos que vêm sendo contemporaneamente produzidos ou evocados à hora em que escreve o poema.

"Muitos desses acontecimentos vão balizar toda uma evolução do mundo e do Brasil: o fascismo, o comunismo, as lutas pelo poder em outras direções ideológicas estão em efervescência. Já a essa época, emissários de Mussolini visitavam São Paulo em busca de adeptos por estas latitudes e o Partido Comunista fora fundado, registrando-se na paulicéia as primeiras prisões dos que obedeciam às suas diretivas. O Forte de Copacabana se sublevara. Graça Aranha estivera preso por suspeita de envolvimento nesse episódio revoltoso.

"Mas o poeta, por fim, se desliga de todas essas sensações para humanamente desgarrar-se de tudo e abismar-se nos seus anseios e desejos, retorna à exaltação dos seus sentidos, dos sentimentos que estavam entrelaçados à sua sensualidade, que dirige a um torso grácil, ágil, musculoso.../um torso moreno, brasil... Brasil com minúsculo, pois não está falando de seu País, mas do objeto de sua afetividade que confunde na sua terra. (...) Brasil também de brasa, que associa a seios ardentes, à febre que o faz crepitar, enquanto no ar voluptuoso da rua se expande, oleoso, o olor das magnólias. O poeta revém à atmosfera que para a arte defende naquela época. Ou seja, à felicidade, à alegria, ao brinquedo, em fuga do misticismo e do sofrimento."

Carlos Pimentel Mendes