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ROTA DE OURO E PRATA
Navios: o Vera Cruz

1952-1973

O transatlântico da Companhia colonial começou a operar em 1952

José Carlos Rossini

Colaboração: Laire José Giraud (*)

Vera Cruz! Nome mágico para um dos grandes transatlânticos de lenda que singraram a Rota de Ouro e Prata!

Grande entre os gigantes dos mares, levou seu nome e a bandeira de Portugal ao ápice do serviço marítimo comercial de passageiros entre os portos de Lisboa, Rio de Janeiro, Santos e Buenos Aires.

Este artigo sobre o Vera Cruz encerra o primeiro ciclo desta coluna (publicada pela primeira vez em dezembro de 1991, Rota de Ouro e Prata narrou, em quatro anos seguidos as histórias de 111 transatlânticos de passageiros, de três cargueiros, de três portos de escala da rota - Rotterdam (Holanda), Gênova (Itália) e Le Havre (França) - e flashes históricos retroativos sobre cinco diversas épocas do Porto de Santos, perfazendo um total de 155 artigos publicados no período) e se quer como uma homenagem à Nação portuguesa, a seus filhos, expatriados ou não, e aos laços de sangue e de história que unem, desde a época do Descobrimento, a terra portuguesa à terra brasileira, terra de Vera Cruz, como foi denominada pelos intrépidos navegadores portuguesas que aproaram em nome do rei lusitano.

Mais do que o relato da vida útil de um transatlântico, este artigo é um desfilar de fatos saudosos de recente memória para toda uma geração de portugueses e brasileiros nascidos nos idos dos anos 40 deste século (N.E.: século XX).

 

Este artigo é um desfilar de fatos saudosos de recente memória

 

Tudo começou quando o Vera Cruz largou suas amarras ao cais da Estação Marítima de Passageiros da Rocha do Conde de Óbidos, na tarde, já primaveril, de uma quinta-feira, dia 20 de março de 1952.

Era o início de sua viagem inaugural na Rota de Ouro e Prata e que o levaria a atravessar os dois Atlânticos, Norte e Sul, com destino aos portos sul-americanos do Rio de Janeiro, Santos, Montevidéu e Buenos Aires.


A partida do Vera Cruz, na viagem inaugural, em 20/3/1952,

 rumo à América do Sul, foi vista por inúmeras pessoas

Foto: reprodução, publicada com a matéria

A Companhia Colonial de Navegação (CCN) - de cujas origens já tratamos nesta coluna, em 5 de novembro de 1992 -, ao finalizar-se a guerra na Europa em 1945, encontrava-se tendo em seus ativos um trio de navios envelhecidos e desgastados pelo uso de mais de três décadas e cuja construção era anterior à Primeira Guerra Mundial.

Este trio era composto pelos vapores Colonial, Serpa Pinto e Mouzinho, navios que, embora de construção sólida e bem mantidos, estavam totalmente ultrapassados em técnica e conforto.

Beneficiando-se da tomada de consciência do governo português quanto à necessidade de ser dada ao país uma marinha mercante digna deste nome e dos benefícios econômicos derivados da abertura dos cofres do Estado (através do denominado Despacho nº 100 do Ministério da Marinha), a CCN pôde encomendar, no final de 1945, ao Estaleiro John Brown, de Clydebank, na Escócia, a construção de dois transatlânticos de capacidade intermediária que levariam mais tarde os nomes de Pátria e Império.

 

A capacidade de passageiros do Vera Cruz era

 de 1.242 pessoas em três classes

 

Com a entrada em serviço desses dois navios na linha entre Portugal e as suas colônias da África em meados de 1948, abriu-se uma nova era na secular tradição marítima lusitana.

Apareceram no ano seguinte o par de navios gêmeos Angola e Moçambique, ordenados a estaleiros ingleses pela Companhia Nacional de Navegação (CNN), seguidos mais tarde por toda uma série de navios de dimensões maiores que levavam nomes como Zambezi, Lurio, Índia, Timor, Alfredo da Silva e Ana Mafalda, todos destinados à carreira do Oriente.

Para poder cumprir a determinação governamental de cobrir os serviços marítimos de passageiros entre Portugal e Brasil e visto a condição de seus três existentes paquetes, a CCN passou ordens para a construção de duas grandes unidades aos Estaleiros S.A. John Cockrill, de Hoboken (Bélgica). Em agosto de 1949, foi encomendado o navio que seria denominado Vera Cruz e em abril de 1951, o que receberia o nome de Santa Maria.

Cardápio do almoço de 26/4/1957 no 'Vera Cruz': acepipes, posta de pargo e dobrada à moda do Porto
Encontro dos navios gêmeos Vera Cruz (ao fundo) e Santa Maria (em primeiro plano) no Brasil

Foto: reprodução, publicada com a matéria

Para os detalhes técnicos relativos à construção e às características desses dois novos transatlânticos, faremos uso do texto do excelente livro do jovem historiador marítimo português Luís Miguel Correia, que leva como título: Paquetes Portugueses (publicado em Lisboa em 1992 pelas Edições Inapa), do qual transcreveremos a seguir passagens correspondentes ao Vera Cruz e ao Santa Maria:

"De concepção extremamente avançada para a época, o Vera Cruz e o Santa Maria foram os primeiros paquetes portugueses, uma vez que todos os navios de passageiros anteriores eram unidades mistas de passageiros e carga.

"Pelas suas dimensões e características, o Vera Cruz e o Santa Maria eram grandes paquetes de prestígio, cuja imponência e elegância representavam condignamente Portugal em qualquer porto do mundo.

"A construção destes navios marcou um período de ressurgimento da marinha de comércio nacional, que, passados 40 anos, podemos classificar como a fase de maior desenvolvimento da história dos transportes marítimos portugueses desde a introdução do vapor.

"Sem querer pôr em causa as limitações do setor, que existiam efetivamente, foi possível renovar a nossa frota mercante com a aquisição de navios novos, adequados às necessidades do país, de que o Vera Cruz e o Santa Maria foram os melhores exemplos.

"Ligado a estas realizações, é justo referir o então ministro da Marinha, comandante Américo Thomaz, conhecedor profundo dos assuntos ligados à marinha mercante, a cujo desenvolvimento dedicou perto de duas décadas de trabalho.

"Com cerca de 20 mil toneladas, 20 nós (37,5 quilômetros horários) de velocidade e lotação para 1.200 passageiros, os gêmeos Vera Cruz e Santa Maria marcaram uma época.

"A concepção e planejamento do Vera Cruz obrigaram os técnicos do Estaleiro John Cockrill a 86 mil horas de trabalho.

"A pré-fabricação começou no início de 1950, tendo-se procedido o assentamento da quilha do Vera Cruz em 13 de maio deste ano.

"O navio foi lançado à água a 2 de junho de 1951, efetuando-se na mesma data o assentamento da quilha do Santa Maria. Foi madrinha do Vera Cruz dona Gertrudes Thomaz, esposa do ministro da Marinha.

"Nesta mesma data, foi ainda assente a quilha do cargueiro Sena, destinado igualmente à Colonial e construído também no Estaleiro Cockrill.

"Na carreira paralela àquela em que foram construídos o Vera Cruz e o Santa Maria, encontrava-se, em fase adiantada de construção, o casco do navio-tanque Bornes, de 16.800 toneladas de porte bruto (tpb), destinado à Soponata.

"Na construção do Vera Cruz, foram utilizadas 8 mil toneladas de aço e 150 toneladas de alumínio, sendo instalados no navio 240 quilômetros de cabos elétricos e 96 quilômetros de encanamentos.

"Estiveram envolvidos na construção do Vera Cruz cerca de 1.000 técnicos e operários, que trabalharam durante 18 meses.

"Navio-almirante da marinha mercante portuguesa e da frota da Companhia Colonial de Navegação, o Vera Cruz foi entregue à CCN a 23 de fevereiro de 1952, no porto de Antuérpia (Bélgica), depois de concluir com êxito as provas de mar.

"Além de ser o maior navio português, o Vera Cruz era também a maior unidade até então construída na Bélgica, tendo assistido à cerimônia de entrega do paquete as individualidades mais importantes daquele país.

"Comandado por Hilário Filipe Marques, o Vera Cruz deixou Antuérpia a 28 de fevereiro, chegando a Lisboa a 2 de março de 1952.

"Durante a estadia no Tejo, o Vera Cruz foi visitado pelas grandes figuras do regime, com destaque para o presidente da República, general Craveiro Lopes, presidente do Conselho de Ministros, dr. Antônio de Oliveira Salazar.

"Com 21.765 toneladas de arqueação bruta, o Vera Cruz tinha 185,75 metros de comprimento fora-a-fora, 23 metros de boca (largura) e 15,80 metros de pontal.

"O navio estava equipado com dois grupos de turbinas Parsons, desenvolvendo a potência de 25.500 cavalos-vapor e atingindo a velocidade máxima de 23 nós (42,6 quilômetros horários). A velocidade de cruzeiro era de 20 nós.

"Cada um dos dois hélices de três pás do paquete pesava 16 toneladas e o Vera Cruz consumia 140 toneladas de fuel oil (óleo combustível) e 200 toneladas de água por cada dia de navegação.

"Foram instalados a bordo os mais modernos aparelhos de ajuda à navegação, nomeadamente agulha giroscópica, piloto automático, odômetro elétrico, radar com alcance de 30 milhas (55,5 quilômetros), radiogoniômetro, sonda e radiotelefone.

"O Vera Cruz dispunha de alojamento para 1.242 passageiros instalados em 289 camarotes, distribuídos em três classes: 148 passageiros em primeira classe, 250 em segunda, 844 na terceira classe.

"Os interiores deste paquete eram considerados luxuosos para a época, incluindo numerosos salões, bares, cinemas, jardim de inverno, duas piscinas e amplos tombadilhos e solários, hospital com cinco enfermarias, salas para crianças e todas as facilidades consideradas necessárias para um grande transatlântico, incluindo ar condicionado.

"Henri Boulanger e Andrade Barreto foram os responsáveis pela decoração dos interiores do Vera Cruz, em que colaborou grande número de artistas portugueses.

"No seu conjunto, os interiores do Vera Cruz proporcionavam um ambiente luxuoso e confortável, mas pesado, traduzindo o gosto da época e um certo conservadorismo estético, em contraste com uma muito maior simplicidade e profusão de cores dos paquetes Augustus e Giulio Cesare, construídos na mesma época na Itália, igualmente para a carreira da América do Sul.

"O Vera Cruz tinha 350 tripulantes, dentre os quais 38 oficiais."


As linhas do Vera Cruz indicavam alta tecnologia, aliada à tradição de luxo dos navios portugueses

Foto: reprodução, publicada com a matéria

Muitos estão lembrados, ou já ouviram falar, da grandiosa despedida do Vera Cruz ao deixar Lisboa em viagem inaugural, rumo ao Brasil. Mas, poucos sabem como foi a recepção do outro lado do Oceano Atlântico.

A primeira escala do Vera Cruz ao Brasil deu-se no sábado, dia 29 de março de 1952, no Rio de Janeiro. Como a Imprensa havia noticiado com antecedência a chegada do famoso transatlântico, a cidade despertou cedo, milhares de pessoas aglomeraram-se na Praça Mauá e nas proximidades do porto.

Devido a forte nevoeiro, houve um atraso e somente após as 12 horas foi feita a atracação do tão esperado paquete português.

Brasileiros e portugueses, sob sol ardente, esbanjavam alegria, sem conter seu entusiasmo. Nunca um navio de qualquer nacionalidade foi tão bem recebido.

 

Em 1949, foi encomendado o navio que se chamaria Vera Cruz

 

Ainda na Baía da Guanabara, o navio todo engalanado, sob comando de Hilário Filipe Marques e tendo a bordo o armador Bernardino Corrêa, viu-se cercado de várias embarcações, que apitavam incessantemente. O que era prontamente respondido pelo Vera Cruz, como que saudando a terra amiga, que por sua vez se enchia de sol para recebê-las à altura.

Bandeiras portuguesas e brasileiras estavam desfraldadas em seus mastros. Da terra os rojões estouravam, dando um tom festivo. A alegria era geral.

No local de atracação, bandas tocavam seus dobrados, e a orquestra de bordo retribuía. No cais, o povo explodia de júbilo e entusiasmo, e a bordo acontecia o mesmo.

Os passageiros que desciam do navio foram recebidos com muito carinho e amizade por parte dos curiosos que foram assistir ao "espetáculo".

A bordo vinham várias autoridades e celebridades, a convite da Companhia Colonial de Navegação (CCN). Entre elas o almirante Gago Coutinho, os senhores comandantes Enrique Tereiro, Pereira Viana e Francisco Fialho; o coronel Antônio Manuel Batista; o capitão Teófilo Duarte e outras pessoas de destaque, além de jornalistas dos principais jornais de Portugal.

Também a rainha do fado Hermínia Silva e a Missão Cultural Portuguesa, formada por escritores, professores e historiadores, que foi o alvo de homenagens dos círculos intelectuais do Rio de Janeiro.

As solenidades oferecidas pelos brasileiros aos ilustres visitantes portugueses foram tantas que é quase impossível enumerá-las.

Entre elas, o banquete do Itamarati, as recepções na Academia Brasileira de Letras, na Reitoria da Universidade do Brasil, no Clube Ginástico Português, no Liceu Literário Português.

O presidente do Brasil, à época, Getúlio Vargas, acompanhado de sua esposa, Darcy Vargas, almoçou a bordo do Vera Cruz, a convite da embaixada de Portugal.

Com grande jantar oferecido pela CCN, à colônia portuguesa e à sociedade carioca, foram encerradas as comemorações. O armador Bernardino Corrêa, em breves palavras, saudou os portugueses e brasileiros, de quem tantas atenções recebeu.

 

Presidente Vargas visitou o transatlântico no Rio de Janeiro

 

O maior paquete português da época navegou rumo a Santos, na madrugada de 3 de abril (quinta-feira), chegando à barra por volta das 13 horas.

Guardadas as devidas proporções, a recepção calorosa dada ao Vera Cruz em Santos não ficou devendo muito à do Rio, pois milhares e portugueses e brasileiros, vindos de São Paulo, reuniram-se com seus conterrâneos residentes em Santos para festejar e testemunhar o acontecimento.

Por volta de 14 horas, o novíssimo transatlântico é abordado pela lancha do Serviço de Praticagem, e a bordo sobe Gérson da Costa Fonseca, que na época era prático preferencial da CCN, através de seu agente em Santos, a Companhia Comercial Marítima.

 

Além de ser o maior navio português, era o maior feito na Bélgica

 

Hoje aposentado, Gérson da Costa Fonseca ainda lembra com emoção aqueles momentos, quando conduziu o Vera Cruz estuário a dentro, até o cais do Armazém 15.

"Em 40 anos de atividade em Santos como prático, nunca vi nada igual, como a chegada do Vera Cruz. Conduzir o navio pelo canal do porto, através da grande manifestação de júbilo popular, com milhares e milhares de pessoas acenando das amuradas da Ponta da Praia, outras embarcações apitando e os gritos emocionados de alguns passageiros, tudo isto deixou-me uma recordação inigualável", diz o ex-prático do porto.

Após a atracação no cais próximo ao Armazém de Bagagem, o transatlântico foi aberto para visita de autoridades, convidados especiais e representantes da Imprensa paulista e santista, aos quais foi oferecido o tradicional aperitivo de boas-vindas.

 

Nenhum navio da época foi festejado como o Vera Cruz

 

No dia 4, o navio foi aberto para o público em geral e grandes filas se formaram no cais para as pessoas que queriam visitar o novo orgulho da marinha mercante de Portugal.

No dia seguinte, a empresa armadora ofereceu um almoço a bordo às principais autoridades de Santos, comparecendo o então prefeito municipal, Francisco Luiz Corrêa; o presidente da Câmara Municipal, Antônio Moreira; o capitão dos Portos do Estado de São Paulo, comandante Raja Gabaglia; e outras personalidades de destaque.

À noite, a CCN ofereceu banquete de gala ao governador do Estado de São Paulo, Lucas Nogueira Garcez, acompanhado da esposa, do chefe do cerimonial do Palácio Campos Elíseos e dos secretários do Governo em várias pastas; do comandante da região militar e do capitão dos Portos.

Após dois dias e duas noites de permanência no Porto de Santos, o Vera Cruz zarpou em direção ao Rio da Prata, com escalas em Montevidéu (Uruguai) e Buenos Aires (Argentina).

 

O belíssimo transatlântico marcou época na Rota de Ouro e Prata. A sua chegada foi triunfal nos portos de Santos e Rio de Janeiro

 

Da data de sua viagem inaugural, até 1954, o Vera Cruz permaneceu servindo a Rota de Ouro e Prata ao lado do gêmeo Santa Maria, com saídas alternadas dos portos "cabo-de-linha", Lisboa e Buenos Aires, a cada três semanas.

A partir de julho de 1954, o Vera Cruz passou a servir também a linha da CCN para a América Central, com escalas em Vigo (Espanha), Funchal (Ilha da Madeira), Tenerife (Ilhas Canárias), La Guaira (Venezuela), Curaçao (Antilhas Holandesas) e Havana (Cuba).

Junto com o Santa Maria, alternaram-se, ora servindo a carreira do Caribe e América Central, ora cobrindo escalas na Rota do Ouro e Prata segundo as melhores necessidades operacionais e de rendimento determinadas pela direção da armadora.

Em 1957 faleceu o fundador e animador principal da CCN, o armador Bernardino Corrêa, e nas viagens que estavam em curso, todos os navios da companhia colocaram a bandeira no mastro de popa (ré) a meio-pau.

 

Transatlântico português chegou dia 3 de abril pela primeira vez ao porto de Santos

 

Em julho do ano seguinte, o transatlântico Santa Maria realizou sua primeira viagem com destino aos territórios coloniais portugueses da África, sendo seguido um ano depois pelo Vera Cruz, este com destino a Angola.

Mas não era esta a primeira ocasião de uma passagem do Vera Cruz pelos portos portugueses na África, já que entre agosto e setembro de 1956 o transatlântico efetuou um cruzeiro périplo-africano. Saiu de Lisboa em direção ao Atlântico Sul e retornou à capital portuguesa via Cidade do Cabo (África do Sul), Oceano Índico, Canal de Suez e Mediterrâneo.

Ao todo foram tocados 16 portos de escala, um dos quais, o de Lourenço Marques (hoje Maputo, Moçambique), onde teve que desembarcar Bernardino Corrêa, já afetado pela doença que lhe seria fatal meses mais tarde.

 

A recepção também foi muito calorosa no porto de Santos

 

Com o deflagrar dos conflitos de liberação colonial em Angola e Moçambique, a partir de 1960, o Estado português viu-se na obrigação de reforçar militarmente as suas colônias na tentativa de conter e eliminar os focos de resistência à ordem estabelecida.

Assim, no decorrer de 1961, várias unidades da marinha mercante de Portugal foram requisitadas pelo governo para servirem como transporte de tropas ou como navios de carga de material bélico.

O Vera Cruz não escapou à nova realidade e, ao retornar a Lisboa de sua viagem, a que seria na verdade a última, na Rota de Ouro e Prata (efetuada em março e abril daquele ano), o transatlântico foi rapidamente adaptado para as funções de navio-transporte e posto sobre o controle operacional da Marinha de Guerra, sempre, porém, com as cores da CCN.

Seguiu-se a partir de então um longo período onde alternaram-se viagens sob o comando naval e viagens puramente comerciais, a maioria destas realizadas entre Lisboa e Lobito/Luanda (Angola).

Esta fase durou até 1971. Em janeiro do ano seguinte, o transatlântico, após realizar uma viagem como transporte de tropas, foi ancorado no Rio Tejo, aguardando-se a decisão sobre o futuro.

 

Os dois navios permanecem na memória de portugueses e brasileiros

 

Tal decisão só foi tomada um ano mais tarde e ela marcaria o fim do transatlântico. Transcorridos apenas 20 anos de sua entrada em serviço, sendo portanto relativamente novo e ainda em condições de serviço, o Vera Cruz foi vendido para desmonte e sucata a uma empresa empresa especializada de Taiwan.

Em 4 de março de 1973 largou pela última vez as amarras do cais de Lisboa com destino a Formosa, desaparecendo assim dos oceanos, mas não de nossa memória, que lhe guarda recordação perene.

Um dos cartões postais da companhia mostrava o belo transatlântico chegando ao porto de Santos

Foto: reprodução, publicada com a matéria

(*) Laire José Giraud é despachante aduaneiro e pesquisador santista de assuntos marítimos.

Vera Cruz:

Outros nomes: nenhum
Bandeira: portuguesa
Armador: Companhia Colonial de Navegação (CCN)
País construtor: Bélgica
Estaleiro construtor: Societé Anonyme John Cockerill

Porto de construção: Antuérpia

Ano da viagem inaugural: 1952
Tonelagem de arqueação (t.a.b.): 21.765 t
Propulsão: 2 grupos de turbinas, com 2 hélices
Comprimento: 185,75 m
Boca (largura): 23 m
Velocidade média: 23 nós (42 km/h)
Passageiros: 1.242
Classes: 1ª -    148
                2ª -    250
                3ª -    844
Tripulação: 350 homens, sendo 38 oficiais

Fonte: CCN e LLoyd's Register

Artigo publicado no jornal A Tribuna de Santos em 3 e 10/9/1995


 José Carlos Silvares (*)

A chegada de um transatlântico em viagem inaugural a Santos, como a do Vera Cruz, em 1952, representava mais que uma curiosidade de milhares de pessoas que se aglomeravam junto às muretas da Ponta da Praia. Era um acontecimento político, social e cultural dos mais importantes envolvendo Brasil e Portugal.

Não era sem razão que essa viagem inaugural, especificamente, ao tocar no porto do Rio de Janeiro, em 29 de março de 1952 (um sábado), o navio trazia a bordo dezenas de editores e jornalistas dos principais jornais portugueses, para registrar nos diários lusitanos, por exemplo, a acolhida que o Vera Cruz teve assim que sua silhueta surgiu na Baía da Guanabara.

Vinham a bordo também dezenas de intelectuais, da chamada Missão Cultural Portuguesa, formada por escritores, professores, historiadores e cantores que durante 10 dias percorreram as mais famosas casas de espetáculos do eixo Rio-São Paulo e as casas luso-brasileiras.


Com suas linhas retas e modernas, o transatlântico português
entrou pela primeira vez em Santos em 3/4/1952

Emoção - A recepção a todos foi de grande emoção. Vale aqui reproduzir as palavras do fundador e presidente da empresa do navio, a Companhia Colonial de Navegação, Bernardino Correa, a um jornal carioca, no dia seguinte ao da chegada do Vera Cruz:

"Dominado por forte impressão que me produziu o apoteótico acolhimento dispensado ao Vera Cruz nas águas da Guanabara, tudo quanto posso dizer é que me sinto feliz por chegar, pela primeira vez, à capital da grande nação brasileira e que agradeço a Deus por ter-me proporcionado viver estes momentos inolvidáveis.

Acrescentarei que a presença do Vera Cruz, no Rio de Janeiro - cujos panoramas surpreendentes a todos nos deixaram extasiados com tamanha beleza - significa que a Companhia Colonial de Navegação se mantém fiel aos seus propósitos de prosseguir no rumo de estreitar o amplexo constante de brasileiros e portugueses através do Atlântico.

Mais de 10 anos de linha marítima regular entre Lisboa e o Rio de Janeiro - serviço mantido por vezes em épocas particularmente difíceis como foram os anos da última guerra - são testemunho suficiente desses nossos propósitos e justificam o aparecimento, esta manhã, nas águas da Guanabara, do maior navio português de todos os tempos, construído expressamente para navegar entre o Brasil e Portugal.

Os brasileiros e portugueses do Brasil compreenderam admiravelmente o nosso esforço quando tributaram hoje, a este navio, o acolhimento profundamente fraterno que teve o Vera Cruz, ao surgir diante desta capital esplendorosa que é o Rio de Janeiro."


Cardápio do almoço de 26/4/1957 no Vera Cruz:
acepipes, posta de pargo e dobrada à moda do Porto

Honra - Sabe-se hoje que as palavras do comandante Bernardino Correa não eram um exagero, embora dessem margem a supor isso. Sua impressão era autêntica, porque autênticas eram as manifestações de brasileiros e de portugueses do Brasil (como ele mesmo mencionou) em torno da chegada de um navio que na época se transformou no marco de honra, para todos, de que o Vera Cruz materializava o maior navio português de todos os tempos, a expansão do comércio marítimo pelo Atlântico, a segurança, o respeito ao passageiro e a glória da navegação lusa.

Viajei por duas vezes no Vera Cruz. Muitos parentes e conhecidos que também viajaram são testemunhas de que o navio representou e representa um marco na navegação moderna. Não há português ou brasileiro que, tendo cruzado o Atlântico nessa embarcação, deixe de lembrar com emoção de detalhes da viagem e do significado dessa época, só comparável à era dos grandes aviões transatlânticos, que vieram para substituir esses heróicos navios.

Também o Vera Cruz antecipou-se curiosamente a esse destino fatal. Em sua viagem inaugural ao Brasil, tinha entre seus ilustres passageiros o glorioso almirante Gago Coutinho, o primeiro a sobrevoar o Atlântico unindo as duas pátrias irmãs, em 1922, junto com o aviador Sacadura Cabral. A vinda de Gago Coutinho no maior navio português era, por si só, o reconhecimento mútuo de respeito entre o ar e o mar.

Vargas - O ponto alto da escala do Vera Cruz no Rio foi a recepção ao presidente Getúlio Vargas, acompanhado da esposa Darcy e de alguns ministros. A comitiva percorreu as dependências do navio e depois participou de almoço a bordo, com autoridades portuguesas. Houve, depois, banquete de retribuição no Itamarati.


Atracado em Santos, em uma de suas viagens,
durante os oito anos em que fez a linha para o Brasil

Conforto e modernidade - Na madrugada do dia 3 de abril (quinta-feira), o Vera Cruz deixou o Rio rumo a Santos, chegando à barra às 13 horas. A recepção nada ficou devendo à do Rio. Milhares de brasileiros e de portugueses residentes em São Paulo juntaram-se aos da Baixada Santista para receber o navio, trazido pelo prático Gérson da Costa Fonseca.

O calor da recepção pode ser medido em metade da última página da edição do dia 4 de abril de 1952 de A Tribuna, onde se lia a manchete: "Grande curiosidade popular marcou a chegada ontem ao porto do Vera Cruz". E com a linha de apoio, logo abaixo: "Milhares de pessoas compareceram à recepção dada a bordo. Enorme massa popular se aglomerava no cais. Verdadeira multidão assistiu à passagem na barra".

Superlativos - A matéria descrevia o navio com superlativos: "Os melhores artistas de Lisboa foram contratados para executar as decorações de seus interiores, nos quais se destaca um painel de Manuel da Lapa, com todos os tipos de embarcações desde o século XVI. A pintora Estrela Faria contribuiu com um quadro sobre Lisboa, que é considerado uma notável obra de arte, havendo porém outros exemplares do talento artístico da atual geração portuguesa".

Mais: "Um jardim de inverno apresenta uma profusão deslumbrante de plantas, ao qual a iluminação adequada, imitando o luar, dá, à noite, um encanto extraordinário para cujo aumento contribui a existência de um aviário com bicos de lacre e outras aves, cuja sobrevivência é assegurada por um sistema de aquecimento e ar condicionado do recinto, onde se encontram num ambiente que reproduz o seu habitat natural.

"Duas excelentes piscinas, ginásio com todo o aparelhamento de ginástica, inclusive remadores e bicicletas fixas, um salão de jogos, court de tênis, uma cabine de rádio para transmitir programas para os 230 alto-falantes de bordo, com recente coleção de discos de músicas clássica e moderna, uma capela com imagem de Nossa Senhora dos Navegantes, amplos salões e confortável mobiliário etc., tudo foi planejado e executado de maneira a dar aos passageiros a mais agradável impressão e o máximo de bem estar durante a viagem".

Este Vera Cruz foi o mesmo que trouxe milhares de imigrantes e que os levou a passeio a Portugal, com os filhos brasileiros, nos oito anos que se seguiram, bem menos do que desejava em seu discurso na viagem inaugural o dono do navio, Bernardino Correa, que morrera em 1957.

Até que, em 1961, vários navios, incluindo o Vera Cruz, foram requisitados para transportar tropas e material bélico entre Portugal e as colônias da África, já em movimento de libertação. Esta fase durou até 1971. Em janeiro de 1972, o navio foi ancorado no Rio Tejo. No ano seguinte, apenas 21 anos após a viagem inaugural, a 4 de março de 1973, o Vera Cruz, vendido para desmonte e sucata a uma empresa de Taiwan, deixou o Tejo rumo ao seu fim, entrando definitivamente nas páginas da história e na memória de seus privilegiados passageiros.

(*) José Carlos Silvares é jornalista em Santos, atuando como editor adjunto no jornal santista A Tribuna, quando este artigo foi publicado (em 30/3/1997). Colaborou também na primeira edição do livro Rota de Ouro e Prata, de José Carlos Rossini, lançado em 1995.


"Vera Cruz - O navio do meu coração. Fiz nele duas viagens entre Brasil e Portugal, com meus pais. Marcou toda minha infância e também a lembrança dos portugueses que moram em Santos. É um dos belos navios clássicos. Foi o primeiro cartão-postal da imensa coleção de meu particular amigo Laire José Giraud. O navio pertenceu à Companhia Colonial de Navegação, de Lisboa".

Imagem: Acervo José Carlos Silvares/fotoblogue Navios do Silvares (acesso: 13/3/2006)

 


"Vera Cruz - Este é um cartão-postal mais raro do navio do meu coração. Fiz nele duas viagens entre Brasil e Portugal, com meus pais. Marcou toda minha infância e também a lembrança dos portugueses que moram em Santos. É um dos belos navios clássicos. O navio pertenceu à Companhia Colonial de Navegação, de Lisboa. Tinha 171,35 metros de comprimento e 21.765 toneladas. Podia transportar até 1.242 passageiros, entre 148 de primeira classe, 250 em cabinas e 844 na classe turística. Foi lançado ao mar no dia 2 de junho de 1951, mas só fez sua primeira viagem no dia 20 de março de 1952, na rota Lisboa-Ilha da Madeira-Rio de Janeiro-Santos-Buenos Aires. Fez viagens esporádicas a portos do Caribe, incluindo Havana, em Cuba, e também entre Lisboa e Angola. Em 1972 foi utilizado como navio de transporte de tropas entre Lisboa e Luanda. Ficou atracado no porto da capital portuguesa entre janeiro de 1972 e março de 1973. No dia 19 de abril de 1973 iniciou sua última viagem, sem volta, rumo ao porto de Kaohsiung, em Formosa, onde foi demolido em estaleiro. Triste fim para um navio de tanta história e de tantas recordações para muitas gerações de portugueses e seus descendentes".

Imagem: Acervo José Carlos Silvares/fotoblogue Navios do Silvares (acesso: 13/3/2006)

O Vera Cruz passando pela Ponta da Praia, em Santos, em abril de 1952

Foto: Boris Kauffmann, no acervo do cartofilista e despachante aduaneiro Laire José Giraud

 


O paquete transatlântico português Vera Cruz, da Companhia Colonial de Navegação, em viagem inaugural, atracado ao cais de aprestamento do estaleiro Cockerill, em Hoboken (Bélgica), em 1952, numa pintura do mestre Fernando Lemos Gomes. Entregue à CCN, em fevereiro de 1952, o navio fez a linha do Brasil até 1961, quando passou a fazer a carreira de Angola e fretamentos militares. Foi desmantelado na Ilha Formosa em 1973. Tinha capacidade para acomodar 1.242 passageiros, desenvolvendo velocidade de 20 nós e deslocando 21.675 toneladas

Foto: acervo do cartofilista Laire José Giraud, publicada na rede social Facebook em 10/7/2014