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Edição 143 - Ago/2005
Arquitetura

Manter ou alterar criticamente?

Polêmica sobre restauro de monumentos tem quase dois séculos e ainda continua em aberto

Carlos Pimentel Mendes (*)

Se uma edificação conta alguns séculos de idade, tendo passado por várias transformações, nem todas devidamente documentadas, e servindo a diferentes finalidades, como deve ser tratada? Recuperada com base no seu projeto original? Pela forma que tinha no seu período áureo? Completada a edificação, se estava inacabada? Ou apenas conservadas as ruínas atuais? 

Questões assim são enfrentadas por arquitetos restauradores em todo o mundo, conforme avança a conscientização pela necessidade de se preservar os cada vez mais numerosos patrimônios da humanidade - jóias da arquitetura de todas as épocas, em todos os países. Dela não escaparam nem mesmo as torres gêmeas destruídas num ataque terrorista em New York, em 2001: deveriam ser refeitas tal qual eram? Deveriam ser preservadas as ruínas? Ou deveria ser construído um novo conjunto, com referências ao antigo?


Arco de Tito, restaurado em Roma em 1821: "conservar respeitando os antigos"
Foto: divulgação

Toda essa polêmica, que há décadas agita os arquitetos em inúmeras convenções na Europa e nas Américas, está mais perto do leitor do que possa parecer, como observa o arquiteto Vitor Hugo Mori, do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). A restauração da Fortaleza da Barra Grande, na Baixada Santista, por exemplo, arrastou-se por muitos anos, desde a proposta pioneira de restauro do arquiteto Lúcio Costa. 

Seguir as formas originais idealizadas no século XVI por Giovanni Battista Antonelli? Refazer conforme o relatório do engenheiro militar do brigadeiro João Massé (feito no início do século XVIII), destruindo e alterando quase todo o conjunto hoje existente? Assumir as modificações feitas em meados do século XX pelo Círculo Militar? Apenas limpar e manter as ruínas como estavam em fins do século XX? Talvez até completar a obra interrompida em 1894 por falta de recursos, completando as duas fachadas que faltaram?

Palavras estranhas como anastilose (reunião de partes desmembradas de um monumento, restaurando o conjunto original) e propostas de nomes respeitados entre os arquitetos, circulam com desenvoltura nesse debate, todas defendidas por legiões de seguidores.


Saint-Front de Perigueux é uma igreja reconstruída com base em moldes de Constantinopla
Foto: divulgação

Ruínas ou reconstrução? – Parecem questões puramente filosóficas, mas podem alterar profundamente o cenário das cidades e influenciar decisivamente no comportamento de seus habitantes, tanto em Santos (às voltas com o tombamento, a preservação e o uso prático/atual de seu centro histórico) como em Roma, Cartagena de las Índias, Berlim, Tróia com suas cidades superpostas, New York com as suas torres derrubadas. 

Das decisões dos arquitetos também dependem arqueólogos e restauradores de obras artísticas - ou melhor, há e precisa haver uma simbiose entre eles, já que uma decisão de um arquiteto pode valorizar as obras de arte existentes no cenário, ou sepultar de vez os resquícios de eras passadas, pulverizados ao se revolver o local sem os devidos cuidados que um arqueólogo teria.

Nas obras modernas, por exemplo, usa-se deixar no piso e nas paredes pequenas janelas (os testemunhos estratigráficos), mostrando as camadas escondidas sob a superfície. Um exemplo pode ser visto no Museu José Bonifácio/Casa de Martim Afonso, no centro de São Vicente, onde uma janela na parede moderna permite ver como era a estrutura original. No restauro da Estação Ferroviária do Valongo, em Santos, descobriu-se um piso em ladrilhos hidráulicos do século XIX, e isso alterou o projeto da reforma, recuperando esse piso antigo em lugar de aplicar materiais mais modernos. 

Já nas ruínas do Teatro Guarany, tratores destruíram parte do seu interior, perdendo-se muita informação sobre as formas internas, e ficou apenas em algum registro escrito a existência de belas pinturas de Calixto em seu teto, que aplicações de tinta posteriores, um incêndio e a intempérie se encarregaram de destruir. Quanto à capela da antiga Santa Casa, junto ao túnel, a opção foi por apenas manter as ruínas remanescentes, valorizadas por iluminação no entorno.


Restauração da Catedral de São Marcos teve um movimento internacional contrário, no século XIX
Foto: divulgação

Conceitos – Entre a proposta de restauração total e a da preservação total das ruínas, os arquitetos restauradores - neste aspecto muito próximos dos arqueólogos - debatem-se com uma série de conceitos contraditórios. Um dos mais antigos foi apresentado por John Ruskin e William Morris, no século XIX: para eles, é "impossível restaurar (...) aquele espírito que se comunica através da mão do artífice, não pode jamais voltar à vida". Em sua opinião, as obras pertencem a quem as construiu e, em parte, a todas as gerações humanas seguintes. Daí a criação do Movimento Anti-Restauração em 1877 e da Sociedade para a Proteção de Antigas Edificações (SPAB), liderando um movimento internacional contra a restauração da catedral de São Marcos, em Veneza.

Apenas reparar, em vez de restaurar, e prevenir, em lugar de remediar, são as idéias centrais de Morris, que defendeu o conceito de "Patrimônios da Humanidade", e que também pequenas igrejas paroquiais devem ser preservadas, se sua demolição significar a retirada da alma de uma comunidade. Defendeu ainda o uso do edifício como meio de preservá-lo.

Na França, Viollet-Le-Duc defendeu o restauro moderno: "restaurar um monumento não é apenas reconstruí-lo, repará-lo ou refazê-lo, mas restabelecer um estado completo que pode jamais ter existido". Ele e seu discípulo Paul Abadie materializaram essa tese na restauração de Saint-Front de Perigueux, nos moldes da igreja dos Santos Apóstolos de Constantinopla, sobre os restos de uma igreja típica da Aquitânia. Essa tese -  a do Restauro Estilístico - está representada no Brasil pela obra da Cadeia de Atibaia, no interior paulista.

César Daly criticava essa idéia, entendendo que o ideal era preservar apenas a forma antiga, e mesmo nela, "nem o começo nem o fim, e sim exclusivamente o apogeu". Um arqueólogo também deu seus palpites, em 1862: R. Bordeaux colocou na pauta dos debates uma das bases do restauro moderno: "conservar respeitando o antigo, sem mutilar os agregados que o tempo incorporou". Que já fora incorporada na recuperação do Arco de Tito em Roma, em 1821, por Valadier, distinguindo entre o antigo e o novo no material e na técnica.

Camilo Boito reuniu estas idéias contrárias numa teoria intermediária, favorável à conservação dos acréscimos incorporados à obra arquitetônica, comparando ainda um monumento à crosta terrestre, com as várias camadas superpostas, cada uma representativa de um conjunto de valores a ser respeitado. No Congresso de Engenheiros e Arquitetos realizado em 1884 na capital italiana, firmam-se os princípios do Restauro Arqueológico, aceitando-se apenas a consolidação e recomposição das partes desmembradas e a conservação para não ser preciso restaurar. 

Em 1912, esse pensamento evolui com a Teoria do Restauro Científico, de Gustavo Giovannoni, como sendo a operação de tão-somente consolidar, recompor e valorizar os traços restantes de um monumento. Em 1931, a Conferência Internacional de Atenas normatiza tais critérios, dividindo o restauro em trabalhos de consolidação, recomposição das partes desmembradas, liberação de acréscimos sem efetivo interesse, complementação de partes acessórias para evitar a substituição, e ainda inovação ou acréscimo de partes indispensáveis com concepção moderna. Contra essa normatização se insurge o arquiteto Ambrogio Annoni, para quem cada caso é um caso, a ser analisado com bom senso.


Ruínas generalizadas da Segunda Guerra liberaram os arquitetos para o Restauro Crítico, 
como na ponte de Castelvecchio, destruída pelos alemães
Foto: divulgação

A destruição generalizada de muitos centros históricos provocada pela Segunda Guerra Mundial exigiu uma postura nova, o Restauro Crítico, exemplificada na reedificação da ponte do Castelvecchio em Verona, que os alemães haviam destruído. Mas, em 1964, durante um congresso em Veneza, os princípios do Restauro Científico voltam a prevalecer, sendo ampliados e revistos na Carta Italiana de Restauro de 1972, por Cesare Brandi. Para Brandi, deve-se "mirar o restabelecimento da unidade potencial da obra de arte, quanto seja possível, sem cometer um falso artístico ou um falso histórico, e sem cancelar os traços da passagem da obra de arte no tempo".

O debate sobe de tom na Itália dos anos 80, quando Paolo Marconi questiona se o momento presente não tem autenticidade - seria um "falso histórico", indigno de se incorporar à obra restaurada? Deve uma cidade se reduzir à cenografia arqueológica, apenas um objeto a ser visto, alijando-se a época presente do processo histórico de transformação? Na Carta 1987 da Conservação e do Restauro de Objetos de Arte e de Cultura, sintetiza-se tal questionamento na proposta de "fazer reentrar a arquitetura em sua história". Um exemplo final está ali, às margens do estuário santista: na antiga casa de pólvora da fortaleza da Barra Grande, que por um tempo foi capela, no lugar do centenário altar está um mosaico de Manabu Mabe, última obra deste artista, no encerramento do século XX: o "Vento Vermelho", que acrescenta à quadricentenária estrutura a expressão da contemporaneidade.

(*) Carlos Pimentel Mendes é jornalista, editor do jornal eletrônico Novo Milênio