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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 08/31/03 18:23:55
Edição 123 - AGO/2003 

Política urbana

A cidade que eu quero

Poder Legislativo perde seu poder na reorganização dos municípios

Carlos Pimentel Mendes (*)

Ocorrem em todo o Brasil os preparativos de cidades e estados para a participação na 1ª Conferência Nacional das Cidades, a se realizar nos dias 23 a 26/10/2003, em Brasília. Coordenado pelo Ministério das Cidades, tem como lema "Cidade para todos" seguindo o tema "Construindo uma Política Democrática e Integrada para as Cidades". Participam: os movimentos populares/sociais, as organizações do Terceiro Setor (antes chamadas Organizações Não-Governamentais), entidades acadêmicas e de pesquisas...

Um olhar atento sobre toda a divulgação dessa conferência revela o detalhe: qual a participação do Legislativo nesse trabalho? Pois é: vereadores "até" podem participar, se fizerem inscrição prévia. Mas não são eles justamente os representantes eleitos pelo povo para debater os interesses da população e encaminhar os projetos de lei que materializarão esses interesses?

Talvez a chave da resposta esteja numa experiência de governos petistas gaúchos, particularmente na capital Porto Alegre. Ali, a população se organizou para defender seus interesses independentemente do Legislativo municipal e até do Executivo local, participando de conselhos deliberativos e fiscalizadores que definiam desde a oportunidade de se tapar um buraco numa rua até a destinação das verbas no orçamento municipal.

A experiência teve resultados altamente positivos em termos de participação popular e de resultados obtidos, a despeito das brigas e ciumeiras causadas pela perda de poder dos vereadores e do próprio prefeito, todos praticamente submetidos (efetivamente) à vontade popular através das decisões desses conselhos populares. As pressões foram (e são) inúmeras, e no mínimo será interessante experiência sociológica ver como o processo decorrerá, agora em nível nacional.

Armadilha – A organização tripartite dos poderes a partir da República, ou quadripartite desde nossa Independência (além do Legislativo, Executivo e Judiciário, existia o poder Moderador, exercido pessoalmente pelo soberano, algo semelhante ao poder que tem hoje a casa real inglesa), não tem conseguido acompanhar adequadamente as mudanças na sociedade. Tanto que, em tempos recentes, dizia-se existir um quarto e maior poder - o da Imprensa, representando os olhos do povo na fiscalização dos outros três poderes. Hoje, conforme inclusive uma piada que circula pela Internet, a distribuição dos poderes mudou: o Legislativo legisla, o Executivo administra, o Judiciário julga e o quarto poder, representado pelos comandantes do submundo criminoso - executa.

No sistema tradicional de poderes, o cidadão bem intencionado que consegue se eleger para um cargo público cai numa armadilha. Primeiro, porque geralmente precisa fazer composições e alianças para obter legenda e ser escolhido pelo partido, e isto significa assumir uma série de compromissos pré-eleitorais, que precisarão ser honrados depois. 
 

Caso a sociedade participasse do processo político local de forma direta, através de organizações do terceiro setor e outros grupos, talvez Santos fosse uma cidade bem diferente do que é hoje

No caso do vereador, além dessa carga inicial terá também de negociar seguidamente com seus pares, pois depende deles para a aprovação de seus projetos. Isso significa fazer concessões a projetos que por vezes afrontam suas convicções, para não dizer mais. A alternativa é renunciar ou deixar a vida pública ao término do mandato com uma imagem de inepto, pois, para o público, vereador que não mostra serviço tem imagem ruim. É melhor visto um vereador que aprova 200 projetos de concessão de homenagens a representantes da sociedade local do que seu colega que batalhou quatro anos para impedir alguma maracutaia com dinheiro público. Daí, o nível nem sempre alto dos debates legislativos e da própria administração pública.

Muitas vezes, em vez de um debate técnico e isento, temos apenas o choque de interesses políticos, talvez mesmo pessoais dos debatedores. E não adianta o cidadão pressionar mais seus representantes, pois há todo um liame de acordos de liderança, alianças partidárias e interesses que transcende o mero debate da questão em si. O vereador deve obediência ao partido, o prefeito precisa controlar as pressões em nome da governabilidade (caso típico do debate santista sobre a demolição de parte do cais dos pescadores).

Caso a sociedade participasse do processo político local de forma direta, através de organizações do terceiro setor e outros grupos, talvez Santos fosse uma cidade bem diferente do que é hoje. Ou foi o leitor que decidiu, contra a própria Constituição (Artigo 13º), que teríamos um Deck, um Water Front, um Visitors Bureau, um Convention Center e outras macaquices - cujas denominações em nada dignificam uma cidade culta como Santos, transformando-a numa segunda Barra carioca, que os próprios estadunidenses ridicularizam por sua tentativa de parecer anglo-americana?

Deixando os nomes de lado: os santistas já criticaram - e com eles os estudiosos da vida nas cidades - a muralha de prédios na orla da praia, que elevou a temperatura média local e tirou parte da ventilação. Recentemente, foi autorizado o erguimento de uma nova muralha de concreto, com o dobro da altura, e um impacto ainda não estimado sobre a qualidade de vida na cidade. Mesmo sem falarmos nas mudanças climáticas (para pior) que surgirão, há questões que mereceriam maior debate: com esse adensamento populacional, como fica a infra-estrutura de serviços públicos, abastecimento de água, trânsito etc.?

Oportunidade – A reorganização da representatividade popular, como antevista na Conferência das Cidades, não é uma panacéia, já que a representação mais direta da população não garante por si só resultados melhores que os obtidos pela já tradicional tripartição de poderes. 

Porém, pode significar uma ruptura e um arejamento nos esquemas tradicionais de poder, em que seus detentores se atribuíam privilégios para manipular essas forças nem sempre de acordo com os melhores interesses da coletividade. Pode significar ainda uma oportunidade para que surjam novas idéias que tragam melhorias às cidades, idéias que não teriam espaço para surgir dentro da organização tradicional da representação popular, muitas vezes acorrentada aos próprios rituais do exercício desse poder. Enfim, uma oportunidade para construirmos as cidades que queremos, não as urbes que os grupos de poder definem em reuniões por vezes realizadas com as portas fechadas.

O simples fato de sacudir as estruturas pode ajudar a remover um pouco do pó acumulado, melhorar as articulações já um tanto enferrujadas e dar novo vigor ao exercício da máxima "poder do povo, para o povo, pelo povo".

(*) Carlos Pimentel Mendes é jornalista, editor do jornal eletrônico Novo Milênio.