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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/04/01 21:55:54

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Mitos e lendas dos estrangeirismos

Jussara P. Simões (*)

Talvez seja conseqüência de um conjunto de fatores o que leva os brasileiros a imaginar como místicas e esotéricas as palavras ordinárias usadas no inglês para dar nomes às coisas. Nesse conjunto, constato a presença do deslumbramento pelos falantes de inglês, da ignorância da língua portuguesa, da ignorância da língua inglesa, da ignorância da cultura estrangeira, da ignorância de etimologia e da ignorância de semântica. Juntam-se todas essas ignorâncias e, sem precisar bater no liquidificador, surgem as palavras mágicas e as traduções literais, as traduções mal-ajambradas e a importação de palavras alienígenas em sua forma original. Precisamos exorcizar esses demônios.

Meu grande amigo Aristóteles Gomes, por exemplo, deve estar equivocado ao dizer que "commodity significa mercadoria, porém no jargão do mercado commodities são mercadorias que possuem cotações reguladas pelo mercado internacional. Na verdade, essas mercadorias funcionam quase como uma moeda - conversível. Por exemplo, o barril de petróleo custa x dólares. Nestas bolsas de mercadorias as transações podem acontecer inteiramente na troca de commodity, como se fosse dólar, real ou qualquer outra moeda verdadeira."

Agora pergunto: por que nós, os colonizados, precisamos de uma palavra diferente de mercadoria se os falantes de inglês não têm palavra diferente para isso? Eles usam a palavra commodities para designar mercadorias e a mesma palavra, commodities, para designar essas tais mercadorias que funcionam como moedas. Se eles têm uma palavra só para as duas coisas e não fazem confusão entre elas, pois o significado está no contexto - sabiam? - por que diabos precisamos nós de duas? O que eles têm a mais no intelecto que nós não temos? Quando alguém me responder a essa pergunta aceitarei a tal palavra esotérica.

Informatiquês - Vamos, agora, ao informatiquês, que é outro campo cercado de ocultismo (estaremos voltando à Idade Média?). A maioria dos conceitos da informática são novos, pois são invenções recentes. O que fizeram os principais inventores dessa área do saber? Apesar de terem criado objetos e conceitos novos, recorreram às palavras velhas de guerra, que já designavam outras coisas comuns na vida cotidiana. Por analogia com esses objetos e conceitos comuns, os inventores usam essas palavras comuns.

Quando chegam ao Brasil e a alguns outros países colonizados, a falta de conhecimentos da língua e da cultura, tanto de origem quanto de destino, leva nossos tecnocratas a manterem as palavras em inglês porque elas, exatamente por estarem na língua dos patrões, alcançam o status de totens, de ídolos, de ícones do louro deus estrangeiro. Não obstante, no país de origem, no Olimpo estrangeiro sonhado pelos súditos tupiniquins, essas palavras nada têm de místicas e, na verdade, o fato de serem palavras comuns ajuda muito os comuns dos mortais a entenderem seus conceitos e definições.

Faço, então, mais uma pergunta: o que os plebeus mortais dos países de língua inglesa têm que nós não temos? Por que eles têm o direito de entender os conceitos dessas novas invenções imediatamente e nós não temos?

Vejamos alguns exemplos.

Volto a bater na tecla do mouse. É a mais pura ignorância que leva os brasileiros a cultuarem o deus mouse, pois os inventores do objeto o acharam parecido com um camundongo e lhe deram esse nome devido à semelhança com o bichinho.

É cinzento e rabudo - bem, era, pois agora fabricam ratinhos de todas as cores. Só isso. As outras línguas do mundo traduziram o nome do objeto, deram-lhe o nome desse roedor. Qual é a mística da palavra mouse no Brasil para que se proíba os brasileiros de olhar para tal objeto e pensar num ratinho? Qualquer falante nativo da língua inglesa vai imaginar um ratinho, daqueles de desenho animado, ao olhar para esse objeto. Só os brasileiros precisam ficar dando tratos à bola e pronunciando uma palavra que analogicamente não lhes diz nada. Muitos brasileiros, por não conhecerem a pronúncia correta, pronunciam musse, o que os leva a indagar qual seria o motivo de darem nome de sobremesa a um objeto que não é macio nem doce!

O tapetinho que lhe serve de piso aqui manteve o nome esotérico mouse pad (almofadinha ou tapetinho do rato). Tantos são os brasileiros que não conseguem compreender esse nome que muitos, tentando dar-lhe sentido, já o chamam de pé-de-máusi, o que denota que não são burros, não são os retardados que os tecnocratas imaginam ao impor esses salamaleques à deusa platinada da língua inglesa. Os brasileiros têm imaginação riquíssima.

Media mídia - Só têm a imaginação bloqueada os deslumbrados por tudo o que vem das estranjas e que, infelizmente, formam a classe dominante, a dos meios de comunicação, que eles mesmos, babando, chamam de mídia por desconhecer que os anglos usam a palavra original latina media, que é o plural de medium - mas eles, que não sabem falar latim, pronunciam à sua maneira, isto é, mídia - e os brasileiros macaquitos macaqueiam, por ignorar que os macaquitos foram eles, os anglos, que pediram essa palavra emprestada ao latim porque não tinham palavra em sua própria língua para designar tal conceito. É irônico: os anglos macaqueiam o latim e os latinos nem percebem!

Antigamente, quando a informática ainda era assunto para iniciados, quando todos os programas ainda estavam em inglês, conheci muitos operadores de computador que diziam filé quando se referiam a file. Por quê? Porque não sabiam falar inglês e essa é a nossa maneira de pronunciar as palavras na nossa língua. A letra I nunca teve o som ÁI em português. Nada mais natural que recorressem à analogia com uma palavra portuguesa para pronunciar a palavra alienígena. Mas isso foi antes da invasão anglófona.

Alguns anos depois, quando os brasileiros que foram aprender a nova tecnologia lá fora começaram a voltar para o Brasil, estudaram tanto a informática que não tiveram tempo de estudar inglês e, pior, tinham saído daqui sem saber português.

Voltaram como robozinhos, repetindo as palavras correspondentes aos conceitos da informática, sem saber que elas correspondiam a objetos corriqueiros na língua original. Comparo os brasileiros que repetem as palavras inglesas como papagaios aos índios que chamavam espingarda de pau de fogo, que consideravam santos (ou demônios) os brancos que chegaram com a pólvora, pois conseguiam fazer fogo sem esforço nenhum. Esses brasileiros parecem bugres, que foram ao outro mundo e voltaram deslumbrados com as palavras novas, mas não tiveram a curiosidade de aprender seus significados plebeus.

Como era feito - Os anglos adaptam as palavras estrangeiras à pronúncia do inglês, assim como os franceses as adaptam à pronúncia do francês. No tempo do governo Reagan, eu ouvia sempre os noticiaristas franceses pronunciarem Regân quando se referiam ao presidente dos EUA. A banda de rock chamada Van Halen, que usa o sobrenome de Eddie Van Halen, artista holandês, e se pronuncia van rálen, ganhou a pronúncia van rêilen nos EUA por adaptação ao idioma local. O que fizeram os macaquitos brasileiros? Começaram a chamar o holandês de van rêilen, quando a pronúncia holandesa seria bem mais próxima à índole da nossa prosódia e bastaria pronunciar van hálen. Antes da invasão inglesa, a Volkswagen chegou ao Brasil e nós demos um jeitinho de pronunciar volksváguen, pois a pronúncia original alemã era mais difícil: folksváguen.

Naquela época, agíamos como manda o bom senso, como agem os anglos ao receberem palavras estrangeiras: adaptávamos a pronúncia estrangeira à nossa prosódia. Como é pronúncia já consagrada e que seria muito difícil mudar, estamos livres da praga de sermos obrigados a pronunciar volks-uáguen, como o fazem os anglos. Ainda bem! Infelizmente as coisas mudaram nos últimos anos e parece que perdemos esse bom senso e nos transformamos em papagaios dos anglos.

A deusa Nike deve estar dando cabeçadas nas paredes do Olimpo, pois o nome dela teve, durante tantos séculos, a pronúncia nique. Os anglos, corretíssimos, adaptaram essa pronúncia grega, para eles complicada, à sua realidade prosódica e pronunciam náik. Os brasileiros, que copiam tudo o que os gringos fazem, sem refletir - mas não copiam o mais importante, que é o patriotismo - macaqueiam a pronúncia anglófona e jogam no ostracismo todos os séculos de história da deusa Nique.

Voltando à informática, pois me desviei um pouco nos dois parágrafos acima, começaram, então, a traduzir algumas coisas. Até hoje me pergunto por que keyboard virou teclado, mas mouse continuou sendo mouse, pois nas outras línguas latinas o bichinho ganhou seu verdadeiro nome, inclusive em Portugal, onde ele se chama rato. Por que essa mística do mouse?

Muitas palavras ganharam tradução, mas, por desconhecerem o significado, ou os diversos significados da palavra original, ganharam traduções confusas. Outras foram elevadas ao status de mantras sem significado algum: firewall (mera porta corta-fogo), backbone (simples espinha dorsal) etc.

Falsos cognatos - Antes do advento dos computadores, tínhamos directory em inglês e catálogo ou lista em português. A lista telefônica dos países de língua inglesa sempre se chamou directory e, no Brasil, ela se chamava catálogo telefônico ou lista telefônica. A palavra diretório era usada em português para designar comissão diretora, isto é, não tinha relação com lista ou catálogo (alguém se lembra dos diretórios acadêmicos?). A turma da informática chegou dos Estêites repetindo a palavra directory e, por semelhança com a palavra diretório, nem quiseram abrir um dicionário para constatar que se tratava de falso cognato. Os brasileiros passaram anos a fio chamando directory de diretório, sem idéia do conceito original, que era simplesmente o de lista ou catálogo das coisas contidas no disco do computador. E só pararam de usar a palavra porque os patrões lá de cima resolveram mudar o nome da coisa. Agora é folder e, miraculosamente, a tradução adotada está correta: pasta.

Dentro dessas pastas entram os papéis, os documentos, listagens, tudo aquilo que é arquivado dentro dela. O arquivo é, portanto, o conjunto de pastas. O disco do computador (seja interno ou externo) é, por analogia, o gabinete cheio de gavetas que contêm essas pastas, que, por sua vez, contêm os documentos (files) arquivados. Em Portugal adotaram a analogia com os ficheiros (que aqui chamamos de fichários), mas, na minha opinião, usaram a palavra ficheiro para designar o objeto errado, pois ficheiro deveria ser a tradução de folder ou directory, e não de file; files seriam as fichas guardadas (saved) dentro dos ficheiros.

No Brasil também recorremos a imagens confusas. Se a analogia com o mundo dos objetos concretos fosse correta, deveríamos chamar de arquivo ao conjunto de files (fichas ou documentos) arquivados dentro das folders (pastas), que são inseridas na gaveta do gabinete (root directory) do arquivo (o disco). Mas estou apenas divagando, pois isso é batalha perdida.

Hardware e software também foram pelo mesmo caminho. Antes da informática, hardware store era o que chamamos aqui de “loja de ferragens”. O termo software surgiu em informática para designar tudo o que não é hardware, isto é, hardware é objeto concreto e software é objeto abstrato. Só. Em informática, hardware são os equipamentos, as peças, os componentes, os discos e os disquetes; software são os programas e os conjuntos de programas que vêm em pacotes (DOS, MS Windows, MS Office etc.).

Assim como a palavra key, que tem uma infinidade de traduções e precisa de análise caso a caso para ser traduzida - dentre suas traduções figuram chave, tecla, tom (musical) e muitas outras - as palavras hardware e software também têm inúmeras traduções em português, dependendo do contexto. O que levou os brasileiros a venerarem essas palavras e decidirem que não têm tradução? A preguiça. A pura preguiça de procurar a palavra certa para cada caso. Exigir correspondência biunívoca entre dois idiomas é burrice, é empobrecê-los a ambos.

Caminhar e rir - Existem milhares e milhares de palavras que, ao passar para outro idioma, têm inúmeras traduções, dependendo inteiramente do contexto para que se escolha uma delas. Isso acontece em todos os idiomas.

Quem me lê já parou para pensar em quantas palavras os anglos usam para designar o simples ato de caminhar, ou o ato de rir? Em português somos obrigados a recorrer a paráfrases porque não temos correspondências biunívocas para essas palavras. E o contrário também acontece. Temos milhares de palavras em português que, quando vão para o inglês, precisam de traduções diferentes para cada contexto.

Vou dar um exemplo:

"What would you do if I sang out of key"? O key nesse verso dos Beatles é tom. "Sing out of key" é "cantar fora do tom", ou seja, desafinado (essa música é uma gozação com o Ringo Starr, que era - e ainda é - desafinadíssimo). "Where are my car keys?" significa "Onde estão as chaves do meu carro?", o que nos leva a traduzir a palavra key como chave.

"Press any key", frase tão usada em informática, "pressione qualquer tecla", nos faz constatar que key é tecla. Mas os informáticos querem, a todo custo, criar máquinas de tradução e não se conformam com essas polissemias. Quando comprei meu primeiro gravador de CD, subi pelas paredes ao ler a tradução do manual, pois traduziram TODAS as ocorrências da palavra track como trilha. O manual ficou praticamente sem sentido. Nos discos de música, a tradução de track sempre foi faixa. Quem nunca falou que a faixa 2 do novo disco do Caetano é excelente? No sistema estereofônico, track é pista.

Quem nunca ouviu falar nas mesas de gravação com 8 pistas, 16 pistas etc.? Existem casos em que track é trilha e me parece que em se tratando de informática, os discos de dados se dividem em trilhas. Os nossos informatas pegaram o manual que continha todos esses conceitos, pois os gravadores de CD gravam CDs de música e de dados, e resolveram que track é trilha e ponto final. Não existe coisa mais esquisita do que alguém ser obrigado a dizer que vai gravar a trilha 2 do novo CD do Caetano, ou que o disco foi gravado em “8 trilhas”, em vez de 8 pistas.

Não enganam - Por mais que nossos amigos deslumbrados tentem nos convencer de que as palavras em inglês são mantras, que são esotéricas, místicas, sagradas, não conseguirão. Não adianta saber como funcionam as engrenagens e as arruelas do sistema quando se desconhece o nome de cada engrenagem e arruela. Ocultar a ignorância com um turbante na cabeça e discursos místicos só engana a quem não conhece absolutamente nada da própria língua.

Uma vez li um livro cujo título era bem interessante (vou traduzir o título porque nunca vi esse livro em português): “Foi no jardim da infância que aprendi tudo aquilo de que preciso”. A origem da nossa tragédia é exatamente essa: no Brasil ninguém mais aprende na escola o que devia aprender, isto é, a língua portuguesa. Quando se domina bem o próprio idioma, todo o resto vêm em decorrência disso. Quem é capaz de ler, falar e escrever numa língua tem o único pré-requisito para aprender qualquer ciência, por mais complicada que seja.

Todos os deslumbrados com as maravilhas da língua inglesa desconhecem a riqueza da nossa língua e passam a procurar chifre em cabeça de cavalo para designar conceitos velhos e presentes na nossa língua há tantos séculos. A única coisa de que precisam os nossos veneradores da religião da língua inglesa é voltar ao curso primário e aprender a própria língua (e que os cursos primários brasileiros voltem a ensiná-la, em vez de só servir de refeitório para as crianças). O aprendizado da língua portuguesa seria uma espécie de exorcismo, pois desmistificaria a idéia de que tudo o que nasce ao norte do Rio Grande (para quem não sabe, Rio Grande é o rio que separa os EUA do México) é sagrado e imexível.

(*) Jussara P.Simões é tradutora em São Paulo e internauta, participante do fórum de debates do MNDLP.