Clique aqui para voltar à página inicial  http://www.novomilenio.inf.br/idioma/20010222.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/26/00 16:42:25

Movimento Nacional em Defesa
da Língua Portuguesa

NOSSO IDIOMA
Do mico-leão ao anambé

Hélio Schwartsman (*)

Muitos se mobilizam contra o risco de extinção que paira sobre baleias e micos-leões-dourados. Há até quem lute pela sobrevivência de fósseis - o paradoxo é saboroso -, que estão sendo comercializados no mercado negro. Mais ameaçados, mas menos populares são os idiomas.

Ninguém sabe ao certo quantos eles são hoje no mundo. As estimativas vão de 4.000 a 10.000, mas parece um bom palpite fixar seu número nas proximidades de 6.500. Tanta variação é possível porque as fronteiras entre língua, dialeto e falares regionais são tudo menos claras. Embora algumas definições engenhosas já tenham sido propostas, na prática não há critérios objetivos.

A discussão é mais política do que técnica. Em termos de semelhança, é mais do que razoável afirmar que o servo-croata, por exemplo, é uma só língua. A diferença mais marcante está no fato de os sérvios empregarem o alfabeto cirílico, e os croatas, o latino. Diferenças no léxico existem, mas são mínimas. A rivalidade entre os dois povos, contudo, os leva a afirmar que seus respectivos modos de expressão têm identidade própria, constituindo-se em línguas independentes. Agora que existem um Estado sérvio e outro croata, é bastante provável que a divisão se "oficialize".

No pólo oposto, o chinês é considerado um idioma. Por vezes se o divide em mandarim e cantonês. Na expressão escrita, não resta dúvida da unicidade da língua. Na forma oral, contudo, ocorrem diferenças marcantes de aldeia para aldeia, a ponto de comprometer a intercompreensão. Fosse outra a realidade política, não seria absurdo dividir os "chineses" em vários idiomas.

Línguas podem ser colocadas em três grandes grupos em relação a suas  perspectivas de sobrevivência. São chamadas de "moribundas" quando já não são aprendidas pelas crianças. Acredita-se que de 20% a 50% dos idiomas estejam nessa situação. Diz-se que estão "ameaçadas" quando se encontram em vias de deixar de ser aprendidas por crianças. E são consideradas "seguras" quando não se enquadram em nenhuma das categorias anteriores. Apenas 10% dos idiomas são robustos o bastante para se encaixar nessa última definição; 90% do total não chegarão até o ano 2100.

O fenômeno de surgimento e extinção de línguas não é novo. Acredita-se que o pico da diversidade lingüística tenha ocorrido 15 mil anos atrás, quando uma população brutalmente menor do que a atual falava mais de 10 mil idiomas.

Mesmo assim, é razoável afirmar que a extinção - que alguns chamam de genocídio - foi muito intensificada nas últimas décadas. O evento mais notável é a urbanização. Se é relativamente fácil que populações isoladas permaneçam falando uma língua, a questão se complica bastante nas cidades. No começo, os filhos consideram o idioma dos pais - falado apenas na família - inútil e o aprendem meio a contragosto. Seus filhos, contudo, já não o aprenderão e, no espaço de duas ou três gerações, a língua perece.

O Brasil, ao contrário do que se poderia imaginar, é um dos países em que se falam mais idiomas. São 219, segundo o linguista Tove Skutnabb-Kangas, que mantém um interessante site sobre o tema (www.terralingua.org). O país é o nono colocado, ficando atrás de Papua-Nova Guiné (850), Indonésia (670), Nigéria (410), Índia (380), Camarões (270), Austrália (250) e México (240). Vale reforçar que, dada a precariedade dos critérios, esse é apenas um cálculo possível, entre outros.

A grande maioria desses pequenos idiomas vai morrer em breve. No Brasil, em agosto do ano passado, morreu Muihu Anambé, um dos sete últimos falantes de anambé (da família tupi-guarani), que vivem às margens do rio Cariri, no Pará.

Diante da inexorabilidade, importa tentar manter o máximo possível de registros dessas línguas em vias de extinção. Esse, porém, é um processo caro e trabalhoso, quando não perigoso.

Nos anos 90, na Etiópia, bem-intencionados lingüistas acabaram matando os dois últimos falantes de gafat. Ao serem transferidos para as terras altas, foram contaminados pelo vírus do resfriado e morreram.

Por maiores que sejam os esforços dos que militam contra a extinção das línguas, a tarefa é ingrata. É mais fácil preservar baleias e micos-leões-dourados. Em princípio, basta deixar de caçá-los ou de destruir o ambiente de que dependem. Com as línguas, é preciso convencer seus falantes, atuais e potenciais, a utilizá-la, muitas vezes contra tendências políticas, econômicas e culturais - a famosa globalização - bastante poderosas.

A própria idéia de conservar idiomas em fitas magnéticas e gramáticas improvisadas é problemática. É evidente que o anambé, mesmo documentado, permanecerá uma curiosidade, um exotismo. Jamais será um grego clássico ou um latim, que são línguas mortas, mas seguem desempenhando influência vital sobre a cultura do Ocidente. O anambé, com um pouco de sorte, será objeto de tese acadêmica, uma interessantíssima gramática comparada anambé-karitiana.

É claro que é muito melhor algum registro do que registro nenhum, mas não podemos nos esquecer de que línguas, como a maioria dos organismos vivos, têm infância e maturidade. Vivem-nas e, depois, acabam morrendo. O diabo é que essa tal de globalização ajuda a matar precocemente, indivíduos e idiomas.

(*) Hélio Schwartsman é jornalista. Este artigo foi publicado em 22/2/2001 na seção Pensata do jornal Folha de São Paulo.