MEMÓRIA
Cabral pode ter usado a nau de Vasco da Gama
Há dúvidas sobre se Pedro Álvares Cabral usou a nau São
Gabriel, a mesma empregada por Vasco da Gama em 1497 na viagem para a Índia
Manoel C. Prieto Batan (*)
Colaborador
Até hoje paira uma grande dúvida
sobre a célebre nau São Gabriel. Esta nau, que foi a embarcação-capitânia (de comando) da pequena frota de Vasco da Gama,
foi utilizada por Pedro Álvares Cabral para comandar a frota que veio ao Brasil em 1500? A resposta é: tudo indica que sim.
As autoras Jacqueline Penjon e Anne-Marie Quint, que escreveram um
capítulo sobre a descoberta do Brasil por Pedro Álvares Cabral, na obra intitulada Lisboa Ultramarina, mencionam, na
página 144 do referido livro, o seguinte trecho: "O comandante da frota era um gentil-homem, Pedro Álvares Cabral. Navegava ele
na nau São Gabriel, remanescente da viagem de Vasco da Gama à Índia".
A gravura de J. Sadeler retrata a
construção de uma caravela na Europa, o Velho Mundo
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O caminho - A viagem de Vasco da Gama à Índia foi
importantíssima, pois este bravo navegador português descobriu o caminho marítimo para a Índia, contornando o Sul do continente
africano, através do Cabo da Boa Esperança.
No entanto, é preciso se ressalvar que a Índia já era conhecida
dos povos ocidentais desde Alexandre, o Grande, e desde o Império Romano. Em Ormuz, sobre o Mar Vermelho, encontravam-se até 120
galés romanas prontas para zarpar para a Índia.
Musselinas, púrpuras e tecidos de ouro, produtos aromáticos,
pérolas e diamantes, tintas e lacas, especiarias várias, o marfim, assim como os respectivos elefantes e seus cornacas de pele
bronzeada, tigres e panteras para o circo, escravos, tudo Roma trouxe da Índia.
O rumo - Havia uma certa simplicidade no caminho. As
trirremes desciam pelo Nilo - no qual havia um canal que o tempo assoreou - rumo ao Mar Vermelho e cruzavam o Golfo Pérsico até
Kayal, na ponta do Comorim.
Pelo caminho, faziam trocas intensas nas paragens de Barukacha,
Surate, Kalyan, Chaul e Cranganor, onde chegaram a existir feitorias romanas, dotadas até mesmo do seu templo.
Da presença romana restaram no solo hindu moedas enterradas com a
efígie dos Césares, em vários locais, como por exemplo Soar, no Pérsico, onde os portugueses se surpreenderam ao desenterrá-las,
quando trataram de construir a sua fortaleza.
Plínio, o Velho, queixava-se amargamente das vultosas somas que os
seus compatriotas esbanjavam no comércio com a Índia e Tibério chegou a censurar, em carta ao Senado, pelo mesmo motivo, segundo
lemos na sua História Natural. O déficit da balança comercial girava em torno de 55 milhões de sestércios.
Lisboa no século XV era um porto
próspero, com navios de diversos tipos
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Luta acirrada - A disputa pelas descobertas marítimas se
acirrou entre os reinos de Portugal e Espanha, após a descoberta da América por Cristóvão Colombo, em 1492.
A disputa entre os dois reinos perdurou e exacerbou-se até que,
graças ao gênio diplomático de Dom João II, foi assinado o Tratado de Tordesilhas, em junho de 1494, o qual dividia o mundo de
pólo a pólo, numa linha que passava a 370 léguas a ocidente de Cabo Verde.
Para muitos historiadores, tanto portugueses como brasileiros,
reside aí a maior prova de que o Brasil já estava descoberto antes dessa data. Se, durante alguns anos se manteve sigilo da
descoberta, teria sido para evitar complicações com os soberanos vizinhos.
Roteiros - Em 1958, num trabalho intitulado Três
Roteiros Desconhecidos de Ahmad Ibn Madjid, o Piloto Árabe de Vasco da Gama, o historiador russo Chumovsky levantou a tese
de que, em 1495, ano da sua morte, o rei Dom João II mandara uma expedição à Índia, a qual teria naufragado ao largo de Sofala.
Em 8 de julho de 1497, partiu de Lisboa a pequena frota de Vasco
da Gama rumo à Índia. Era constituída de três naus e uma caravela: quatro embarcações ao todo.
A conquista do caminho para a Índia começa com o aperfeiçoamento
das embarcações. Os portugueses inventaram a caravela de aparelho duplo: velas quadradas para andamento do vento traseiro, velas
latinas para o vento de frente.
Tipos novos - As embarcações de Vasco da Gama já são deste
novo tipo. A nau São Gabriel desloca 120 tonéis; a São Rafael, um pouco menos, 100 tonéis; a São Miguel,
destinada a transportar provisões e alimentos, era a maior de todas, pois deslocava nada menos que 200 tonéis.
Somava-se às três uma caravela de 80 tonéis, a Bérrio. Não
se confunda, entretanto, tonelagem de capacidade de alojar no porão certa quantidade de tonéis, com tonelagem de deslocamento.
Essas informações sobre as embarcações de Vasco da Gama estão no
livro Navires et Marins, publicado em 1930 e cujos autores são G.de Roerie e J.Vivielle.
O navegador Vasco da Gama
utilizou caravelas como esta
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Bartolomeu Dias supervisionou construção A
velocidade diária da nau São Gabriel mediava entre quatro e cinco milhas (7,4 e 9,2 quilômetros horários). Segundo os
melhores autores da época, Bartolomeu Dias em pessoa superintendeu a construção das naus São Gabriel e São Rafael.
A escolha não podia ser melhor. Essas naus foram utilizadas pela primeira vez em 1497, na
viagem de Vasco da Gama.
Nessas naus se concentravam todos os aperfeiçoamentos da tecnologia naval dos últimos anos
do século XV. O cavername era de carvalho; o costado, de pinho, e o cavilhame, todo de ferro.
Em Belém - No dia 29 de agosto de 1499, a nau São Gabriel fundeou em Belém,
dois anos, um mês e 21 dias depois da partida rumo à Índia. A caravela Bérrio, comandada por Nicolau Coelho, chegara
a Portugal um mês antes.
Os dois navios traziam, além de especiarias do Oriente, apenas 55 sobreviventes do grupo
original de 170 embarcados. As naus São Miguel e São Rafael são destruídas na viagem.
Rumo ao Brasil - No dia 9 de março de 1500, parte rumo à Índia uma nova armada, de
13 navios e 1.200 marinheiros e soldados. Quem a comandava era Pedro Álvares Cabral, que, de passagem, descobriu o Brasil em
22 de abril de 1500.
A nau São Gabriel utilizada por Cabral devia ser a mesma utilizada por Vasco da
Gama, pois era nova (três anos) e os portugueses tiveram seis meses para repará-la e equipá-la para mais uma nova viagem.
Além do mais, Vasco da Gama era amigo pessoal de Cabral e o recomendara ao soberano
português, Dom Manuel, para comandar a nova expedição naval, que zarparia rumo à Índia.
Infortúnio - A viagem de Pedro Álvares Cabral permitiu descobrir o Brasil, mas foi
desafortunada, pois os portugueses agravaram na Índia a inimizade com o rajá de Calicut.
Dos 13 navios de Cabral, seis se perderam por várias razões (quatro em uma tempestade).
Quando Vasco da Gama propôs novamente Pedro Álvares Cabral para comandar uma nova frota que zarparia para a Índia em 1502,
Dom Manuel o vetou.
É então que Vasco da Gama resolve solicitar o comando da frota. Esta é constituída de três
esquadras. Uma, de 10 naus, comandada por Vasco da Gama, parte de Lisboa no dia 10 de fevereiro de 1502.
A nau-capitânia de Vasco da Gama é de novo a São Gabriel. Provavelmente era sua a
nau já utilizada por Cabral, pois o mesmo retornara da Índia, chegando a Lisboa, em 23 de junho de 1501.
Viagem bem-sucedida - Portanto, os portugueses tiveram mais de sete meses para
apetrechá-la para uma nova viagem. Vasco da Gama retorna a Portugal de sua segunda viagem bem-sucedida à Índia, chegando ao
Porto de Lisboa em 1º de setembro de 1503.
O prazo de tempo entre a chegada e a partida das três primeiras expedições portuguesas
rumo à Índia, a amizade entre Vasco da Gama e Cabral levam a crer que a nau São Gabriel foi utilizada pelos dois
navegadores nas três viagens.
Para se chegar a uma definição sobre o assunto, resta um outro recurso: a análise de
documentos e livros que constatem as características técnicas da nau São Gabriel usada nas três viagens e se tinha
como figura de proa (frente) uma imagem de Nossa Senhora, de madeira, pintada de dourado (que adornava a primeira nau São
Gabriel, utilizada por Vasco da Gama na viagem pioneira à Índia.
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Henrique, o Navegador
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(*) Manoel Carlos Prieto Batan
é professor de História com pós-graduação e pesquisador de assuntos marítimos. |