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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (21)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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Como foi?

O relógio da sala bate oito pancadas.

Em torno à mesa estão nove pessoas, seis mulheres e três homens. À cabeceira, a doutrinadora, dona Hermenegilda, madrinha de Graciema. Tem à sua direita o dono da casa e da sessão: o sr. Joaquim Pedrosa dos Reis, comerciante (secos e molhados), 53 anos, calvo, viúvo e espírita. É ele quem lê as rezas dedicadas aos irmãos sofredores do espaço.

Começou a sessão. Seu Pedrosa leu a lista dos desencarnados que devem descer do espaço àquela noite. Leu o Evangelho que diz: onde duas ou mais pessoas estiverem reunidas em meu nome, aí eu estarei.

Leu o Creio-em-Deus e uma invocação aos espíritos.

Graciema veio à sessão, mas não pode sentar à mesa porque não tem licença ainda. Licença dos espíritos, não dos humanos. A madrinha diz que ela é "mal acompanhada", nunca dará médium, e parece que tem raiva dela porque nunca nenhum espírito baixou no seu corpo.

Graciema pensa que talvez a Terezinha esteja dando muito trabalho à vizinha que ficou tomando conta dela. Terezinha também não está bem acompanhada - a vizinha é velha e dorme em qualquer lugar. Não vá a criança sair do caixote de Elixir de Nogueira, que lhe serve de berço!

Na borda da mesa, as mãos brancas da médium começam a se contrair. Enroscam-se, arranham o atoalhado da mesa, contorcem-se, ora com os dedos em garra, ora estendidos, hirtos, em tremores.

A mulher tem os olhos cerrados, as pálpebras batendo num ritmo acelerado, e arfa ruidosamente, a boca contraída em esgares.

No princípio, Graciema se impressionava; agora, olha aquilo indiferente, e pensa em coisas distantes.

De repente, a médium lança os braços ao ar, cruza-os sobre a cabeça, os punhos cerrados descem sobre os seios, o corpo inteiro trepida, a respiração se faz mais alta, estertorada, e a fisionomia revela sofrimento.

Ao lado de Graciema, uma velha toda de preto, magra, de pelancas balouçando no pescoço, murmura: foi espírito sofredô que baxô no apareio!

A doutrinadora pede: irmãozinho, estejes sossegado. Que a paz de Deus seje convosco!

A médium deixa cair as mãos sobre a mesa, e só se ouve a sua respiração ofegante, como se ela viesse de subir um morro íngreme e alto.

- Para que me trouxeram aqui? Eu não queria vim, me truxeram! Me deixem!

É o espírito que está revoltado falando pela boca da médium. Dona Hermenegilda doutrina: em nome de Deus, ficai! Viestes aqui para receber as orações destes irmãozinhos. Seu Pedrosa, reze a prece dos sofredores.

O português lê a prece. Graciema repara: se um trombone, em vez de notas, soltasse palavras, seria igualzinho à voz do seu Pedrosa. O negro Agenor é que havia de gostar de ter uma voz assim, para os discursos no sindicato! Mas ia assustar a Terezinha, ainda mais. Que é que importava? Não morava cada qual em sua casa? Que tinha ela de comum com o estivador? Nada! Só a Terezinha, que estava registrada como filha deles dois. Bom coração tem seu Agenor!

Com a prece, o espírito se acalma, as mãos do "aparelho" se imobilizam. Cessam as contrações de dor aparente.

- Estais melhorzinho agora, irmão?

- Ah! Graças a Deus estou! Mas porque eu estou aqui? Eu andava passeiando no Gonzaga e me trouxeram para aqui. P'ra quê?

- Vós já desencarnastes, irmãozinho, e agora precisas de rezas.

- Ora, que bobage! Então eu estou aqui conversando, vendo esta gente toda que nem conheço e estou morto?

- A morte não existe, irmãozinho. Vós estais só desencarnado. Vede, vede isto que está aí na vossa frente... Que é que vedes?

A médium entra em esgares de horror, as mãos querem repelir para longe alguma coisa invisível.

- Que vedes, irmãozinho?

- Porque tem caxão de defunto aqui? Quem é este defunto?

- Sois vós mesmo.

- Eu? eu estou vivo!

- Vede as pessoas que estão aí em redor do caixão... Conheceis?

- Aqui... o meu pai! Ali... minha mãezinha! Estão chorando! E minha irmã também... Quem é este defunto?

- Vede o nome que está escrito, vede o rosto dele se não é o vosso!

A médium se arrepia, a boca se entorta, as mãos se agitam em desespero, e a voz é rouca ao gritar: sou eu, eu estou morto!

Sempre que chega o pedaço do caixão de defunto, Graciema arregala os olhos como se quisesse enxergá-lo também, e sente um formigueiro pelo corpo, um friozinho de gota d'água de chuveiro pingando, pingando, espinha abaixo. Ela não acredita, sabe que aquilo é bobagem - morto não volta - mas se impressiona sempre. Não gosta de vir às sessões, depois não dorme direito, pensando no caixão de defunto.

- É um corpo emprestado, irmãozinho, com a graça de Deus. Vede - passai a mão por estes cabelos... Não são os vossos, são?

A médium passa as mãos pela cabeça.

- Não são! Eu era home, e isto é cabelo de mulher.

- Estais convencido agora, irmãozinho?

- Estou, sim!

- Quereis alguma coisa mais?

- Uma reza, meus irmãos, que Deus lhes pagará.

Seu Pedrosa lê a prece de Charitas. Parece que o espírito está saindo pelos dedos da médium, porque ela os sacode, no ar, sacode, e depois baixa as mãos e fica quieta.

Vem depois outro espírito sobre a negra Benedita, que é epilética, e é a melhor médium de todas. Em geral são "espíritos sofredores" que descem sobre ela, e até lhe provocam a crise. Então dona Hermenegilda faz passes sobre a cabeça e junto às faces da epilética, agitando as mãos espalmadas perto dela, ora como se a afagasse sem a tocar, ora como se a borrifasse, em flexões e extensões rápidas dos dedos, com algum líquido invisível.

A preta Benedita se acalma, os estremeções do corpo diminuem, ela fica quieta, deitada a cabeça sobre os braços apoiados à mesa, enquanto uma baba espumosa vai pingando no chão.

Uma espanhola papuda começa a balançar o papo, a retorcer a boca, a estremecer o corpo. Levanta os braços, desce-os, agita-os, rápidos, ao lado do corpo. Tem qualquer coisa grotesca de um urubu batendo as asas, tentando um vôo que não sai nunca. Respira com ruído, a mímica facial mobilíssima, os olhos cerrados sob as pálpebras trêmulas, como as das histéricas em crise.

Os braços revoluteiam; parece mesmo que vai sair voando.

Graciema sabe: é um "espírito de luz", é a Negra-Mina da Caridade que chega.

Negra-Mina da Caridade, velha escrava africana, espírito de luz, é a protetora da sessão. Chega sempre às dez horas em ponto, porque às dez horas d. Hermenegilda acaba a sessão, e o espírito da africana tem uma estranha pontualidade inglesa.

Negra-Mina abençoa os irmãos presentes em nome de Deus, através da voz grossa da espanhola, uma voz de timbre desagradável, como se aquele papo a alterasse, servindo de caixa de ressonância.

Negra-Mina da Caridade põe o "aparelho" de pé, e o "aparelho" se curva à direita e à esquerda, os dedos fechando-se e abrindo-se rapidamente, as mãos agitando-se sobre as cabeças crentes, numa profusa distribuição de fluídos sobre todos.

Negra-Mina, a protetora da sessão, não faz economia de fluídos: por cinco minutos, fartamente, generosamente, as mãos incansáveis da espanhola distribuem-nos pelos assistentes.

Uma bilha de barro está sobre a mesa, destapada. As mãos da médium se demoram sobre ela, lançando-lhe os eflúvios benéficos.

Depois, os braços se elevam para o teto, a fisionomia se transfigura em beatitude, a boca se abre e deixa escorrer um fio claro de saliva.

A espanhola revira os olhos abertos, e diz, transfigurada: estoi a recibir los fluídos!

Então se deixa cair sobre a cadeira, tremendo toda, toda arrepiada.

Graciema pensa: parece uma galinha quando sai de debaixo do galo!

É o fim da sessão; Graciema, os homens e as mulheres que cochilavam em volta, chegam-se agora à mesa, dão-se as mãos, fechando a corrente.

A espanhola se levanta de novo, fica em transe outra vez, e grita: "Jeçus-Marie y Jocé". Cada vez que grita por um nome, levanta as mãos e todos acompanham o movimento, formando um círculo no ar, fechado sobre as cabeças. Por três vezes se repete a invocação.

Que bom - lembra Graciema - já acabou!

D. Hermenegilda vai servindo, copo por copo, a água fluída da bilha de barro, água fortificante, benéfica para os males do corpo e da alma...

***

Graciema está morando com a madrinha faz já quatro semanas. É um quartinho só, para as três. A cama da madrinha, uma esteira no chão para ela, o caixote de Elixir de Nogueira para Terezinha.

A madrinha se chamava Joaquina, mas depois que ficou médium-doutrinadora trocou o nome para Hermenegilda. Disse que foi um espírito protetor que aconselhou.

Graciema desconfia que é porque Joaquina não é nome que sirva para uma médium-doutrinadora: é simples demais. "A média Joaquina" não soa bem, evidentemente, ao passo que "D. Hermenegilda. Média - vidente - poliglota-doutrinadora", num cartãozinho de visita, foi um sucesso, e um chamariz. Começou logo a vir cliente! Ela disse que até os espíritos começaram a baixar com mais facilidade. Joaquina era nome que espantava até o Vira-Mundo, espírito mistificador!

Pensemos em coisas deste mundo - diz consigo Graciema - a madrinha já está aborrecida comigo e com a Terezinha. Eu não arranjo emprego, e a Terezinha chora de noite, incomoda a madrinha, não deixa ela dormir direito.

Por isto a madrinha disse outro dia que os espíritos não gostam da criança, estão fugindo da casa dela... Aquilo foi indireta!

Um moleque descalço, de guarda-chuva aberto e com meias de barro negro coladas às pernas, bate à porta do quarto: mamãe mandô buscá a garrafinha de água fruída!

D. Hermenegilda foi dar uns passes, em casa de gente rica, na Avenida Presidente Wilson.

Graciema procura o nome, nos rótulos das garrafas que estão sobre a mesa. Ainda há pouco pôs a Terezinha ali para trocar uma fralda e o diabinho deu com o pé numa delas e entornou toda a água. Exatamente! A garrafa que virou traz o nome da mãe do moleque: "dona Ruphina". E agora?

Para Graciema, o problema seria fácil se não fosse a chuva: ia ao tanque, enchia a garrafinha sem o menino ver... estava pronta a água fluída. Mas com esta chuva! E ela sem outra roupa para trocar, sem um par de tamancos, sem guarda-chuva... O tanque é lá no fundo do quintal! Senão era só abrir a torneira - os fluídos que descessem pelo cano...

O menino espera, do lado de fora, e a água canta no seu guarda-chuva. Graciema olha em volta: aquela lata de banha Rosa, 2 ks., ali no chão, é o ourinol da Terezinha. De quando em quando ela senta a filha na latinha de bordas bem amassadas, e fica esperando, esperando, porque molhar muita fralda em tempo de chuva é o diabo. Depois não secam, e são só cinco!

O menino não está vendo, e dentro da lata há uma aguazinha amarela... talvez chegue para encher a garrafinha.

Com jeito, Graciema, com jeito! Se tivesse um funil, era bem fácil. Mas encheu, e foi a conta. Enxuga os dedos molhados e chama:

- Menino!

- Sinhora?

- Pegue aí a água fluída. Diga à dona Rufina que esta é concentrada, ouviu? Por isto tem cor diferente. Não esqueça: con-cen-tra-da!

- Sim sinhora!

O menino procura nos bolsos e tira um níquel: mamãe mandô. Diz-que não é p'ra pagá a água, não; é só uma lembrancinha, sabe?

- Obrigada!

Quando o moleque já está no portãozinho de grades de madeira, Graciema se lembra: seria para beber, aquela água?

- Oh! menino!

- Sinhora?

A água cantarola no telhado, nas folhas das árvores, no guarda-chuva do menino.

- Sua mãe quer esta água p'ra que, hein?

- É p'ra lavá o rosto dela: tem uns pano na cara dela, dona Hermenegilda diz-que tira com água fruída.

- Ah! pode levar. Sai tudo, sim!

Olha o níquel na palma da mão: $400; dona Rufina como é pão-duro! Também, pela água fluída que leva...

Enquanto Terezinha dorme, aproveita para fazer tricô. Ganhou duas meadas de lã, de dez tostões cada uma. Foi o Agenor quem deu. Ela não queria, mas o negro disse: não é p'ra você - é p'ra nossa fia!

Nossa filha... Graciema pensa que preto é bom, preto é melhor que branco e que mulato. Praxedes é mulato, fez mal a ela; madrinha é branca, quer pôr as duas na rua. Agenor é preto, registrou a Terezinha e quer casar-se com ela, Graciema.

Ela sabe que não merece: não é mais moça-donzela. Se casasse, depois o Agenor podia dizer assim - você é uma ordinária, você é resto dos outros que eu de pena trouxe para minha casa.

Podia dizer quanto desaforo quisesse, e ela teria que se calar, porque tudo era verdade. Mesmo que gostasse do Agenor, não se casaria com ele.

Este negócio de cor, é bobagem. Por isto, não. Ela é moça branca, filha de português, porém a mãe era mulata.

Agenor tem carapinha, mas o coração dele deve ser branco. Que tolice! Já viu uma fita no cinema Campo Grande que era assim: O preto que tinha a alma branca.

Se coração de gente tivesse cor, o do preto seria mesmo branco, e o do Praxedes negro, e o da madrinha roxo (ela detesta o roxo: é cor de caixão de defunto!)

Se casasse com o Agenor, ele poderia dizer desaforos, e teria razão. Que vergonha! Peior do que naquele dia, na Santa Casa, quando irmã Simplícia perguntou: quer que eu avise o seu marido que é para hoje?

Irmã boa, a irmã Simplícia! Parecia mesmo Nossa Senhora! Foi quem escolheu o nome de Terezinha. E ela, Graciema, é uma ingrata; não voltou mais à Santa Casa para falar com o doutor, com a dona Maria, e beijar de novo as mãos de Nossa Senhora. Precisa, e a Terezinha também!

Batem à porta. Deve ser outro freguês de água fluída.

- Pode entrar!

- Com licença, Garciema!

- Ah! Seu Agenor, com esta chuva?

O estivador entra, procurando em vão um capacho ou um saco velho para deixar nele ao menos metade do barro que traz nas botinas.

- Vô sujá a casa!

- Não faz mal, a gente limpa. Não é tão grande assim...

O negro se aproxima do caixote de Elixir de Nogueira, apanha a mãozinha da criança: minha fia, minha fia...

Depois tira do bolso um embrulhinho de papel cor de rosa. Graciema conhece o papel das Lojas Brasileiras, nada além de 4$400 ou de 8$800, conforme a seção. Abre o embrulhinho que o negro lhe entrega.

- Que bonita! Uma figuinha!

- Diz-que tira o máu-oiado: é vermeia!

Graciema procura um fio de linha na caixa de costura - linha azul, serve. Enfia a figuinha e passa o colar improvisado no pescoço da filha. Terezinha sorri.

- Parece que gostô!

- Decerto! O senhor sabe os gostos dela: não viu o chocalho, outro dia?

De repente, Agenor fica sério. Pigarreia. Olha para a criança com medo de que ela chore, como da outra vez.

- Garciema!

O tom é grave e duro. O nervoso parece que lhe inteiriça as cordas vocais. Quer dizer coisas doces e a voz sai assim, áspera, funda, solene que nem discurso no sindicato.

- Garciema! Não vos fala Agenô Vianna da Anunçação!

Graciema arregala os olhos: é discurso, mesmo!

- Não vos fala, ripito, Agenô Vianna da Anunçação!

Tem uma dúvida: será que o Agenor está com bobagem de espiritismo? Mas não, ele prossegue:

- Quem vos fala é a imagem representativa dos sofrimento que Vossa Senhoria tem me causado e porduzido. Olhai bem p'ra mim, olhai bem p'ra minha fisionomia, Garciema, e ela dizerá as hora de tormento, de noites e noites horríveis de insonhas que sofro fisicamente.

- Está doente, seu Agenor? Quer água fluída?

Agenor treme, esbugalha os olhos, franze a testa, num esforço titânico para relembrar as frases que escreveu naquelas últimas noites. O papel está com ele, no bolso de dentro do paletó... Ah! se ele pudesse pegá-lo!

- Não perciso nada, Garciema. Só que me escuite até o finar.

Terezinha começa a chorar, implicando com aquela fala. Decididamente, não suporta discurso! Agenor ergue a voz, é o único remédio:

- Pois, cumo tava dizendo... Dona Garciema: é esta image sofredora de home pobre mas trabaiadô, preto mas de morar honesta, que... que...

Sua o pobre Agenor e não se lembra do resto. É uma pena: a declaração está bem feita, ele tem a certeza... Se pudesse dizer tudo, Graciema ficaria convencida... Um esforço mais...

- Cumo tava le dizendo: esta image sofredora...

(Que diabo, este pedaço eu já sortei... cumo é mêmo o finar?)

- Cum licença, Garciema: dêxe eu acabá de estes tróço... (arranca o papel do bolso, procura a página e lê) que... (foi aqui que eu parei? foi!) que comparece perante Vossa Senhoria, aos pés de Vossa Excelença...

- Levante-se, seu Agenor, por favor, não se ajoelhe!

-... de joeios, sim, para supricar-vos mais uma veis o que é do vosso pubrico e notório conhecimento: Vossa Sinhoria deseja se reunir-vos nos sagrados laço do matrimônio cumigo, Agenô Vianna da Anunçação?

A porta rangeu, e Dona Hermenegilda, média-vidente-poliglota e doutrinadora, entrou.

- Sua sem-vergonha! Eu logo vi! Na minha casa, sua peste!

O estivador se levanta, assustado como se visse um espírito materializado e não a invocadora deles.

- Cachorra! De bandaiera c'o preto, hein! Não arrespeita os espírito que tão nesta casa, não arrespeita o anjo da guarda da sua fia, hein, sua ordenara!

- Madrinha, não diga isto!

- Pensa que eu não vi, este negro de joeios, bejando as suas coxa? Sua porca! Sai de uma sem-vergonhice e vem fazê otra na minha casa! Cachorra!

As lágrimas rolam dos olhos sofredores de Graciema. Ela não diz palavra, mas está ajuntando as suas coisas.

Agenor quer explicar:

- Dona, eu não tava fazendo coisa de envergonhá a casa de ninguém, eu tava era...

- Cala a boca, negro sujo! E bote-se na rua, senão chamo a poliça, seu ordenaro!

Agenor sai, grave, digno, como se acabasse de falar no sindicato, e vai ficar sob o beiral onde as gotas d'água caem, tinem e salpicam o seu rosto, como uma poeirinha úmida.

- Bruaca! Vai p'ra zona, duma veis! Tu não é mulhé de respeito, mêmo. Vai p'ro beco, anda! Lá é que é o teu lugar. Me desmoralizando a casa... Que vão pensá os espíritos de luis de mim? Vão pensá que o Vira-Mundo e os otro espíritos sofredôs tomaram conta de minha casa!

Graciema faz uma trouxinha com as roupas, põe a filha ao colo.

- Tenho pena é da inocente, c'uma mãe desavergonhada assim!

No fundo da alma está contente: que bom, não chora mais de noite, posso dormir o meu soninho!

Graciema não tem guarda-chuva. Põe o velho saco de aniagem, que serve de cobertor à Terezinha, sobre a sua cabeça e a filha.

Dona Hermenegilda a enxota, com gestos de mão, como se enxotasse uma galinha que lhe viesse sujar dentro de casa.

- Vai t'embora c'o preto, vai! Amanhã tu tá na zona, na certa! Ordenara!

Agenor segura a criança, abriga Graciema sob o seu guarda-chuva. Dá-lhe o braço para descer a escada de quatro degraus de madeira podre.

A madrinha espia da porta, e descompõe sempre.

- Me envergonhando a casa, afugentando os espíritos de luis, seus ordenaros!

O estivador está com raiva: ah! se fosse um homem! D. Hermenegilda tem uns fiapos de barba no queixo e um buço de duas cores - ruivo e branco - sobre o lábio.

Agenor não pode bater nela... Abre a taramela do portão, Graciema passa.

- Seus semvergonhos!

Agenor não se contém. Vira-se e diz, bem alto:

- Oie aqui: proquê a sinhora não vai fazê a barba... sua fia da puta?

Agenor soltou o palavrão porque ele já o estava engasgando: fazia dez minutos que o tinha atravessado na garganta, querendo sair.

Disse, agora está satisfeito. Mas a moça também ouviu, o estivador fica envergonhado e pede: descurpe, sim, Garciema?

Graciema se vira: a madrinha ainda está na porta da casa, congesta, murmurando decerto alguma reza contra eles.

A moça, na chuva, sabe que agora vai começar uma vida bem diferente, talvez mais difícil ainda que até agora. Precisa ir se preparando. Precisa... Grita para a megera:

- Sua filha da puta!

Que diabo! Ela tem que saber dizer nome feio, também... Faz falta, na vida! Quem não sabe dizer, só ouve dos outros!

Agenor sorri satisfeito. Aconchega a Terezinha ao peito e diz:

- Oia! perdemo aquele dezanove!

***

Meia hora depois, d. Hermenegilda vai ver quem está batendo. Maria dos Anjos, de guarda-chuva escorrendo água, está à porta do quarto, sobre o último degrau de madeira podre.

- eu, cumadre. Vim se tem uma aguinha fruida p'ra mim.

- Pois olha: foi bom a senhora vindo. Sabe que a Graciema...

Maria dos Anjos sorri, orgulhosa. Que é que ela não sabe, desde a Rua Senador Dantas até a bacia do Macuco, desde a Bacia até o ferry-boat do Guarujá? Sabe, sim!

- Já sei, cumadre: a Graciema fugiu c'o preto! Vi eles ainda não faiz quinze minuto, no  bonde dezenovi. Por isto vim p'ra le dizê...

- Fugiu nada! Eu é que enxotei aquela porca!

Sentada já na velha arca de pau onde a dona da casa guarda a rouparia, Maria dos Anjos sorri, extasiada: que assunto!

Deixa de lado a vaidade de noticiarista emérita e pergunta, sem ocultar aquele demônio da bisbilhotice que lhe anima as rugas do rosto e faz os olhinhos terem lampejamentos de ansiedade que sabe próxima a ser satisfeita: cumo foi, hein?


Macuco, com o canal de navegação do porto, vendo-se ainda à direita o antigo gasômetro
Foto: Poliantéia Santista, de Fernando Martins Lichti, 3º vol., 1996, Gráfica Prodesan, Santos/SP