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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - BIBLIOTECA NM
Cais de Santos, de Alberto Leal (04)

 

Clique na imagem para voltar ao índiceAlberto Antônio Leal nasceu em Santos em 1908, falecendo em 1948. Foi médico, romancista, novelista, teatrólogo, cronista e radialista. Sua obra mais conhecida foi o romance Cais de Santos, de 1939.

O exemplar número 171, reencapado, sem a capa original de Luigi Andrioli, tem 212 páginas e foi editado e impresso pela Cooperativa Cultural Guanabara (Rua do Ouvidor, 55, 1º andar, Rio de Janeiro). Nesta transcrição - baseada na 1ª edição existente na biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio de Santos (SHEC) -, foi atualizada a ortografia:

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Cais de Santos

Alberto Leal

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O fim da caçada

Uma tarde, José Praxedes vinha saindo pelo portão da Docas que abre sobre a praça do Mercado.

Na bacia, numa grande canoa, fumegava um fogãozinho de tijolos, com uma caçarola em cima, onde saltavam na fervura caroços de feijão mulatinho.

- Eta cheirinho bão! com petite!

Carregada de melancias, uma chata entrou pelo canal rebocada pela gasolina Marieta.

A molecada saltava na rampa de pedra, atirando cascas de banana e de melancia à água lodosa, ou se despencava pelo declive em carrinhos feitos de caixote com rodas de cama velha, tal qual brincava o moleque Praxedes, quinze anos atrás.

Da seção de animais, desprendia-se o odor forte de galinhas e de cabras, e um cabrito balia, compassado e tremido, abafando o arrulho dos pombos.

Uma araponga branquicenta martelava o ar, fazendo doer os ouvidos.

Acorrentados aos poleiros, baitacas e papagaios grasnavam imitando os gansos das gaiolas de arame. Patos espichavam o pescoço, dentro dos viveiros, e se diziam uns aos outros a onomatopéia sabida pelos garotos da rua: quem foi que viu? quem foi que viu?

José Praxedes, junto a uma banca de verduras, encontrou-se com Graciema.

- Vim falar com o Chico, por causa de um recado que ele tem que fazer. Agora vou tomar o 8 (N.E.: bonde da linha 8).

- É cedinho ainda. Vamos passeiá um pouco.

Passaram por entre as bancas externas, contornaram o prédio do Mercado que começava a fechar os portões, saíram na Rua Bitencourt.

Praxedes encaminhou a moça pela Rua Dr. Cockrane, parou à porta da casa onde alugara um quarto. Pigarreou e deu à voz o tom mais natural possível:

- Moro aqui. Vamo entrá um pouquinho?

- Não, Praxedes. Não fica bem.

Recomeçaram a marcha, em direção ao cemitério. Quando Graciema o percebeu, benzeu-se: cruz! Onde viemos parar!

- A gente agora sai por aqui, pega a linha do 15; fica mais perto.

Foi levando a moça para os lados desertos de um capinzal, quase na orla do cais.

A noite chegava, e um acendedor da City, com a longa vara ao ombro, passou junto deles e acendeu o combustor a gás.

- Xi, que tarde!

Praxedes impelia a moça para o matagal.

- É só atravessá este matinho, tamo lá.

Na entrada do capinzal ela parou.

- Eu não vou por aí. Tenho medo!

- Vamo, bem. Aqui não tem cobra, corta caminho, passo todo o dia. Agora p'ra dá a vorta, fica longe p'ra burro.

Deu sozinho uns passos à frente, abrindo picada através dos altos caules verdes do capim-melado. Graciema veio atrás.

- Eu sei piá nhambu! - pensou Praxedes.

Bem no meio do mato, o capim dava quase na altura do peito. O estivador colheu a mulher pela cintura, derribou-a na verdura.

As hastes tremularam em torno, e cerraram uma cortina verde à volta deles. Graciema tremia, assustada.

- Não faz assim, Praxedes! Eu não sou destas!

Praxedes encostava a boca na boca de Graciema, e as suas mãos lhe subiam sob o vestido, desatando as roupas íntimas.

- Não faz, Praxedes! Eu sou moça solteira!

Recorreu de novo ao pio de nhambu, o melhor de todos:

- Eu caso, Graciema; dêxa que eu caso! Você não me gosta?

- Gosto, mas não faz... não faz... me larga!

- Se me gosta, dêxa, Graciema. Eu caso!

- Jura, Praxedes?

As mãos despedaçaram a roupa que não cedia, e subiram pelo vestido, rumo ao corpinho.

Era preciso piar mais e melhor:

- Juro, Graciema; pelos cabelos brancos da minha mãe!

A mãe de Praxedes morrera moça, doente do peito, com a carapinha ainda preta.

Mas o pio não falhara: Graciema fechou os olhos, entregue, e os olhos de José Praxedes também se fecharam, na fúria dos espasmos.

***

Graciema começou a visitar Praxedes no quartinho da Rua Dr. Cockrane.

Sempre a mesma promessa: eu caso, dêxa as coisa ameliorá! - e o mesmo ardor na posse.

Graciema já duvida: casará, mesmo? Ou só a quer para isto? Os seus olhos se enchem de tristeza: para isto, só?

A moça anda nervosa. Porque o Chico a contrariou, deu-lhe um beliscão valente, e o irmão saiu chorando, dizendo que ia contar tudo ao pai.

Ele disse aquele "tudo" com um tom esquisito. O Chico saberá? E se souber? Deus do céu!

O Chico sabia, o beliscão estava doendo, e o moleque ficou com ódio da irmã.

- Pai!

- Tu já trouxe a féria, vagabundo?

- Pai, o sinhô sabe? A Graciema me deu um beliscão!

- Bem feito.

- Me deu porque com raiva, mais eu não tenho a curpa. Pai não sabe? A Graci anda de putaria c'um mulato da estiva. Vai no quarto dele quase toda a tarde. Eu já vi.

Quando Graciema chegou da rua, vinha pensando que o Praxedes era um bruto: sempre lhe magoava o corpo, e ainda era bem capaz de abandoná-la assim... Assim!

Quando entrou na salinha de jantar, o pai não explicou nada: segurou-a pelo braço, torceu-o, e soltou-lhe no rosto todos os palavrões que dizia aos burros da União de Transportes, quando estes escoiceavam ou davam para empacar.

Depois pôs o boné, arrastou a filha atrás de si, e foi com ela levar a queixa ao delegado, na Praça dos Andradas.


Antigo portão de acesso às instalações portuárias da CDS

Foto cedida pelo Museu do Porto de Santos, no arquivo de Novo Milênio