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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA
José Baptista Coelho (João Phoca) - 2

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Sobre este jornalista e escritor, que também usou o pseudônimo de Victor Brazil, o site eletrônico santista Artefato Cultural publicou este artigo (acesso em 6/2/2012):

Valdir Alvarenga
Editor da revista Mirante de poesia e tem um blog, o http://aospesdasletras.blogspot.com

 Literatura
O santista João Foca

 

Nascido João Baptista Coelho, em Santos, no dia 1º de janeiro de 1877, veio a falecer no Rio de Janeiro a 3 de julho de 1916, aos 39 anos de idade. Fez os estudos primários em sua cidade natal e os secundários, em São Paulo, matriculando-se posteriormente na Escola Politécnica do Rio de Janeiro. Foi no Rio de Janeiro que iniciou no jornalismo.

De volta a Santos, colaborou no jornal “Diário” e pertenceu a um grêmio dramático, para o qual escreveu peças. Com os atores Chaby, Jesuina Saraiva e o pintor e caricaturista Jorge Colaço, fez uma excursão pelo Pará, realizando conferências humorísticas. Com a atriz Abigail Maia, considerada  a “rainha da canção brasileira” e o ator  Luiz Moreira, constituiu um trio  artístico que percorreu o interior de São Paulo.

Escreveu dramas, partituras, tornou-se conhecido libretista. Deixou o livro de contos “Os Caiçaras”, de edição póstuma, em 1917, com prefácio de Júlia Lopes de Almeida e capa de Benedito Calixto.

Escreveu também: O compadre (teatro),  Fado e Maxixe (teatro), Não venhas (paródia de Quo Vadis), Culpa Antiga (drama), O 116 (teatro), Grogotó - Galeta, burleta (comédia ligeira, geralmente musicada), A volta do Filho (peça de costumes) e traduziu Hotel das Famílias.

Fez ainda, com Bastos Tigre, revista   teatral chamada O Maxixe (1906). Assinou vários trabalhos com o pseudônimo  João Foca.

Leia, a seguir, o conto “O ladrão”, de Os Caiçaras

 

Os Caiçaras, de J. Baptista Coelho (João Phoca).  Capa: Benedito Calixto

Imagem publicada com a matéria

 

O LADRÃO

Em casa de Pedro Monjolo, ninguém pregara olho naquela fria, longa noite de maio. Ninguém, nem o mesmo o dorminhoco do Jango, que costumava deitar-se com as galinhas, mal o sol desaparecia por trás dos morros distantes da cidade.

É que o Jango tinha uma adoração imensa pela irmã -  Ritinha -  e ela lá estava coitada, presa à cama pelas maleitas bravas, tornada branca, magra como um esqueleto, de  corada, rechonchuda que sempre fora.

Todo o sítio caíra numa tristeza enorme, desde que  faltava a animá-lo, a dar-lhe vida, a garrulice de Ritinha – um diabrete de sete anos, irrequieta, alegre como uma caambaxilra, palradora, barulhenta como uma gralha.

Pobrezinha! Cuidado não havia, não havia  remédio caseiro que lhe não tivessem dado, solícitos, amorosos, os pobres pais.

A moléstia, porém, pertinaz, obstinada, cruel, a tudo resistia. Nada a fazia ceder; nem  o  chá de cascas de lima de umbigo, infalível para certos doentes; nem a garapa azeda, fervida com gengibre, que nas praias vizinhas tinha a reputação de “tiro-e-queda”; nem umas “homeopatias” trazidas da cidade pelo Pedro; nem mesmo  o uso de um breve, com uma oração de Nossa Senhora do Monte, que já havia posto de pé, só com trazê-lo um dia ao pescoço, uma boa centena de enfermos.

Tudo debalde, tudo!

Os acessos repetiam-se, uma vez ao dia, outra à noite, cada vez mais fortes, mais demorados, acompanhados sempre de tremores de frio, que faziam a pequena estrebuchar na cama, a bater os queixos como um catete.

E lhe punham os beiços e as unhas roxos como os de um afogado.

O Jango sofria talvez mais do que ninguém com os sofrimentos da irmã. Ela era a sócia insubstituível dos seus  brinquedos; faltando-lhe a Ritinha, faltava-lhe tudo, nada lhe dava prazer. Esquecera as gaiolas e as arapucas; embiocara-se no quarto da enferma e só deixava a beira da cama quando ela dormia.

Saía, então, apressado  e ia buscar qualquer cousa, para lhe dar, quando acordasse.

Trouxera já do porto uma canoinha de três palmos, com todos os seus pertences – velas, remos, paneiro, poita, tudo, sem esquecer o nome - Pachola -  pintando as letras brancas na proa, com que o João do Engenho o presenteara no dia do Ano Bom -  canoa que era os  encantos da  Ritinha. Catara na praia as mais lindas coroanhas, os melhores minguitos, os mais louros borrolões; tirara, nas pedras, pindás e ovos de trinta-réis; descobrira até – com que trabalho, santo Deus! - um ninho de beija-flor com três ovinhos microscópicos, lindos, lindos!

A Ritinha, no entanto, não dava importância àqueles presentes que, em outra ocasião, a fariam saltar de alegria; lançava-lhes apenas o seu olhar brilhante, ardente de febre e voltava o rosto, a gemer, a gemer, de cortar o coração às pedras...

Aquela noite, então, fôra medonha. O acesso viera, às 11 horas, violento como nunca. Agora, com a madrugada, caíra ela numa modorra, mas a desesperada mãe temia que os tremores voltassem ao romper do dia.

Oh! Era horrível, angustiadora aquela idéia! Se fossem iguais aos da noite, a filhinha, tão fraca, tão debilitada, não resistiria. Era preciso atalhá-los... Mas com quê, Santo Deus, com quê?...

Teve uma lembrança.

Sim, sim... era isso... era.

Saiu pé ante pé. Foi ao seu quarto. Voltou daí a pouco, trazendo na mão um papel já amarelado. Chamou o marido, que cochilava.

 Pedro, se a gente mandasse buscar este remédio – disse baixinho.

 - Que remédio?

      - Este que  o doutor da cidade receitou pra você, quando você teve as sezões.

     - Ah!...

O marido ergueu-se e, manquejando,  firmando-se à parede, foi até a cadeira, onde estava a vela, escondida por uma tábua, para não incomodar a doente. Olhou a receita, voltou-a entre os dedos e, atirando-a para cima da mesa, disse, desconsolado:

     - Era bom, era, mas quem há de buscar, na vila? Com o talho que dei no pé, não boto nem daqui na fonte, que fará na vila.

     - Eu vou, papai; se mecê deixa, eu vou – ofereceu de um canto o Jango.

     - Vai, nada. Você é gente de ir sozinho na vila, seu medroso!

     - Vou. Duma vez eu já fui no Sítio Grande, não foi, mamãe? Sozinho da silva! – gabou-se.

     - A Benedita confirmou. O Pedro deu ao pequeno a receita e o dinheiro e ele, tomando o bastão de embira e o chapéu de palha, saiu.

     - Tinha dado alguns passos, quando a voz do pai o deteve.

     - Jango! Oh! pestinho!

     - Nhor?

     - Tome pelo atalho; não vá pelas pedras que a maré está alta e o mar, picado.

     - Nhor, sim.  

Vinha clareando o dia.  Apagavam-se as estrelas e o crescente da lua, esmaecido, pálido, errava no céu como um farrapo de nuvem branca. Lá embaixo, sobre o mar azul, brilhava ainda, derradeira estrela, a luz viva e crua do farol da Moela.

O Jango caminhava, apressado, batendo o capim melado com o bordão, para derrubar o orvalho.

Ao chegar ao carreiro, que leva à fonte, parou.

     - Estava ensonado; não seria mal lavar a cabeça...

Enveredou direito à bica. Pela calha, feita de troncos de embaúbas, descansada em forquilhas, a água corria, múrmura, cantando, num  fio branco e transparente. Aparou um pouco nas mãos.

     - Dianho! Tá friinha!...

Tirou o chapéu e, resoluto, num arranco, meteu a cabeça sob a bica. Esfregou bem o rosto – os olhos principalmente; depois, ergueu-se, sacudindo-se, alisando para trás os cabelos e pôs o chapéu. Para aquecer, largou a correr. Desceu assim todo o morro.

Quando atravessava a queimada nova, um ruído fê-lo estacar, medroso. Olhou: eram três pombas legítimas que, assustadas, erguiam o vôo, ruflando as asas, estrepitosamente. Riu do seu medo.

Seguiu; ia agora a passo miúdo, mas ligeiro. Passou o mandiocal, o campo de capim melado, atravessou o jundu, e chegou à  praia.

O mar, de um azul puxando para verde, estava tocado da viração de fora, todo eriçado. Erguia ondas enormes e vinha quebrá-las, desatinado, de encontro às pedras do costão, negras de marisco, enlambuzando-as de espuma.

O céu, de azul desmaiado, coloria-se para o lado do nascente de um cor-de-rosa vivo, que ia gradativamente desmaiando para um roxo leve, muito tênue.

Do meio do jundu, que parecia uma imensa cabeleira verde, aparada de pouco, erguiam-se, semelhantes a penachos de capacetes guerreiros, as plumas brancas das uvas.

Caminhando, o Jango examinava atentamente o cisco, que a maré deitara à praia, a ver se encontrava alguma coisa interessante para levar a Ritinha.

Atrás, na saída da praia, junto da porteira, ele vira e deixara marcada, para colher à volta, uma flor de gragoatá – a flor predileta da irmã.

Seguindo a recomendação do pai, tomou  pelo atalho debruado de grama e que corre, em ziguezague, por baixo de ramalhudas, copadas árvores.

Em pouco, estava na outra praia, cercada de morro, que a fecham  de lado a lado, livrando-a dos ventos de fora, tornando-a mansa, serena, e lhe dão o aspecto de uma ferradura colossal

Avistava já a casaria branca da vila, ainda adormecida.

Num pulo chegava lá.

Para distrair, deu de andar pela ressaca, a esbordoar com o bastão os siris que, ao vê-lo, fugiam amedrontados, erguendo, agressivos, as grandes unhas brancas, veiadas de azul.

Vagaroso, lento, erguia-se, sobre o mar, o sol afogueando as águas movediças, a areia clara e o matagal distante.

Chegando à vila, o Jango foi direto à farmácia. Estava fechada; bateu com força. Abriu-se uma janelinha e a cabeça do boticário apareceu. O pequeno deu-lhe a receita.

     - Quinino... É preciso preparar. Demora um quarto de hora.

     - Eu espero.

     - Vá então lá para a frente, que eu vou abrir a porta.

O Jango entrou e sentou-se no banco de espera. Pôs-se a olhar, admirado, aquela variedade de frascos, vasilhas, boiões, enfileirados nas prateleiras da armação. Junto dele, dividindo a sala, uma grade envernizada; por trás, um   balcão, tendo em cima uma  balança de braços e conchas douradas e dois enormes frascos, um azul, outro vermelho. Sobre a porta do fundo, um relógio.

Na sala vizinha, onde o farmacêutico preparava as cápsulas, um curió  cantava na sua gaiola de arame, presa ao teto.

Em frente a casa, no largo coberto de tiririca, galinhas ciscavam, cacarejando.

Não havia ainda passado o quarto de hora quando o boticário apareceu, embrulhando uma caixinha.

     - Pronto.

     - Quanto custa?

     - Dois mil réis.

O menino levou a mão no bolso da camiseta e não encontrou o dinheiro. Curvou a cabeça, abriu o bolso e espreitou.

Nada. Procurou no outro:  nada também. Remexeu as algibeiras das calças; examinou o chão em volta. Ainda nada! Não encontrava a maldita nota que o pai lhe dera!

Empalideceu; o queixo foi-se-lhe franzindo aos poucos; as pálpebras encheram-se de água e, levando o braço aos olhos, desatou a chorar.

     - Per... di... o... dinhei... ro – soluçou, arquejando.

Homessa! Muito bonito!... Veja lá nos bolsos... Não está? Vá então procurar ali ao lado, embaixo da janela... Ande, mexa-se, homem!... Quem sabe se caiu, quando  você tirou a receita... Vá, vá; deixe-se de choro.

Foi, apesar de lhe parecer baldado aquilo...

     - Qual, caíra no caminho!... Que fazer agora? Pedir ao homem que desse o remédio, prometendo pagar depois?

Mas ele não o dava, com certeza... E, se desse, como pagaria?... Pedir o dinheiro a alguém, na vila?...  A quem?.. Não conhecia ninguém... Não o levar? E se a Ritinha morresse por falta dele?...

Essa lembrança negra, agoireira, fê-lo tremer horrorizado...

Sempre a chorar, voltou à farmácia; estava deserta, o homem andava lá por dentro, a lidar...

Sobre o balcão, embrulhada em papel azul, a caixinha, a caixinha em que estava a salvação, a vida da irmã adorada..

Acudiu-lhe uma idéia; repeliu-a envergonhado só de a ter concebido.

Ela, porém, voltou insistente, persuasiva...

Tirar sem o boticário ver... Mas era um furto!...

Pelos olhos passou-lhe uma nuvem escura... Viu a irmã na cama, pálida, sem forças, a morrer... à porta, o pai, numa aflição, num desespero,  a esperá-lo; a mãe, ao pé da cama a chorar e a rezar...

Era um furto, era... mas era também a vida de Ritinha...

Não hesitou mais. Os cabelos eriçados, os olhos esbugalhados, a tremer, encolhendo-se, passou entre dois paus da grade, rojou-se pelo chão, como uma cobra, sustendo a respiração. Tomou a caixinha sobre o balcão. Veio afastando até a grade, passou-a outra vez. Nisto ouviu bulha dentro. De um salto, alcançou a rua. O chapéu ficara sobre o banco; não fez caso. Largou a correr com quanta força tinha. Parecia-lhe que o perseguiam; faltava-lhe ânimo de olhar para trás.

Sempre à disparada, ofegante, suando de cansaço e de medo, atravessou o atalho e as praias. Não via nada, não sabia onde estava, guiado apenas pelo instinto... De repente, tropeçou e caiu; ergueu-se rápido. Lançou um olhar em torno. Estava no mandiocal do sítio!  Estava salvo!

Veio-lhe um assomo de coragem; olhou para trás, de relance... Ninguém!  Os seus olhos muito abertos encontraram apenas, lá embaixo, junto da porteira, a flor escarlate do gragoatá, destacando-se em meio da folhagem verde-negra do jundu como uma nódoa de sangue...