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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
Paulo Eiró e o biógrafo Affonso Schmidt

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O jornal paulistano Folha da Manhã publicou este artigo nas páginas II e VII/caderno 2 da edição de sábado, 20 de julho de 1941 (ortografia atualizada nesta transcrição):

A matéria, no jornal Folha da Manhã de 20 de julho de 1941

Imagem: reprodução/Acervo Folha de São Paulo

 

Paulo Eiró e seu biógrafo

Vicente de Paulo Vicente de Azevedo

"...contar a história de um poeta que amou; mais do que isso, de um poeta que enlouqueceu de amor..." eis a tarefa que Affonso Schmidt tomou a peito e realizou. E como se houve?

Das várias maneiras de escrever uma biografia, a mais fácil consiste em alinhar nomes, datas, fatos, lugares e acontecimentos públicos. Acrescentam-se à vontade (como se diz nas receitas caseiras) algumas anedotas.

Menos fácil, e por isso mesmo muito mais rara, é a história interna, aquela que menos se ocupa das datas e da vida do corpo, e nos transmite algo da essência imortal e imponderável que animou a mísera carcaça.

Colher, surpreender através de atitudes, da tradição e dos escritos, o sentir do que se foi e merece ser memorado.

Ninguém mais indicado para biógrafo de Paulo Eiró do que Affonso Schmidt. Como ele, poeta do melhor quilate; como ele, de fina sensibilidade. E foi molhando a pena no próprio coração que Affonso Schmidt traçou a triste e simples história de um poeta moço que enlouqueceu de amor.

Emoção, não a transmite quem a não possui. A mais dolorosa tragédia, contada friamente, pode impressionar, mas não comover.

Seguro no conhecimento da história pátria, Affonso Schmidt colocou admiravelmente Paulo Eiró no quadro de 1830 a 1860.

Com mão de mestre delineou as figuras menores. Recorta-se na "Vida de Paulo Eiró" o perfil evangélico de Francisco Antonio Chagas, seu pai.

Do segundo casamento daquele a quem os íntimos alcunharam "Chico Doce", dada a lhaneza da acolhida e afabilidade do trato, nasceu Paulo Eiró.

Na casa do pai, mestre-escola em Santo Amaro, reinaram a paz e a virtude, irmãs inteiras da pobreza. Porque o lar de Paulo Eiró, como o lar paulista de antanho, desde a fundação da cidade, até o surto do café, não era somente modesto: era pobre.

De manhãzinha, depois da caneca de café ou do caldo verde, e, à guisa de pão, a cuia de farinha de milho, seguiam para a vila. A escola ficava no centro da vila, na Rua Direita.

Em 1847, contava Paulo Eiró 11 anos quando teve o primeiro contato com a Academia de S. Paulo.

Emygdia Clementina, a primogênita do segundo casamento do pai, prestara exame para professora pública. Ao atravessar as "gerais", cruzaram um grupo de estudantes. Mestre Chagas e seus filhos, simples no trajar, despertaram a atenção dos moços pelo ar de dignidade sem afetação.

De mãos dadas seguiam atrás Paulinho e a prima. Passaram os velhos, e os estudantes se descobriram em silêncio. O casal de priminhos, sempre de mãos dadas, alcançou o grupo; eis senão quando entre os rapazes uma voz se ergueu sonora, num tom de galanteio e de leve ironia:

- "Saudamos o grande poeta e a sua Musa!"

Era Bernardo Guimarães, poeta acadêmico consagrado, um belo rapaz de cabelos revoltos, de grandes olhos claros com singular brilho de sonho e de demência...

Há frases que traduzem um destino. Anos passados, bastas vezes, a horas caladas da noite, enquanto o coto de vela ameaçava morrer no castiçal de latão, ou a chama do candeeiro de folha bruxuleava misteriosa; quando lá fora trilavam grilos, coaxavam rãs, e nem sequer, na antemanhã, os galos tentavam ainda despertar o sol -, soavam aos ouvidos do adolescente, brincavam na sua imaginação repleta de sonhos, as palavras que valiam por uma profecia:

"... o grande poeta e a sua Musa!" "E ao repeti-la via na penumbra das arcadas, o estudante Bernardo Guimarães a sorrir-lhe com seus olhos grandes e claros, onde repontava um pouco de sonho, um pouco de loucura..."

Que estranha geração aquela, a que pertenceram Bernardo Álvares de Azevedo, Aureliano Lessa, Fagundes Varella... A breve trecho da vida de Paulo Eiró, surpreendemos nitidamente traços de Fagundes Varella, semelhanças com Álvares de Azevedo, identidades com todos. Convencionou-se chamá-los românticos. O mesmo mal os afligia. Um não conformismo os atormentava. Eram como seres desambientados. Longe de conhecerem o gosto da vida, a sede de viver, os prazeres fortes e sãos que a natureza proporciona, mostravam-se enamorados da morte. A ideia do suicídio borboleteava feia no seu cérebro.

Nota comum a todos é a precocidade intelectual. Os companheiros de escola ainda gaguejavam as últimas lições da cartilha, e Paulo Eiró já vertia à primeira vista um texto francês para o português.

Sentado à mesa, o livro aberto diante dos olhos, lia em voz alta para as irmãs.

"Em certo ponto, o pai interrompeu-lhe a leitura:

- Que livro é esse que vós estais lendo?

- Gil Braz de Santilhana, de Lesage.

- Em português?

- Não, senhor, em francês..."

Adolescente, os versos que escrevia eram lindos. Submeteu-se aos exames de preparatórios. Logo no primeiro, o de geografia, alcançou sucesso sem par. O cons. padre dr. José Joaquim do Amaral Gurgel, presidente da banca, enviou carta de parabéns ao velho mestre-escola: "Seu filho fez um exame brilhantíssimo. Passeou, pelo globo terrestre, como quem passeia pelas ruas de Santo Amaro. Lágrimas de prazer me vieram aos olhos, aplaudindo-o publicamente". Francisco Chagas impara de orgulho daquele filho: não conheceria limites a sua glória.

Precoce de inteligência, precoce no amor, a paixão pela prima, a Musa, borbulhava no coração do poeta.

Naquele ano, quando a tinguijada reuniu no mês de agosto, o "mês da velha" à beira da lagoa, a família santamarense, os primos não se largaram. Aquilo preocupava os pais. Ao recolherem, na intimidade da alcova, nhá Gequinha muito séria disse ao marido:

- "O Paulinho continua com seu namoro. Este ou qualquer outro entretenimento virá prejudicar os estudos do nosso filho".

Ao que ele respondeu:

"Mecê tem razão. Mas eu temo sentir-me demasiadamente orgulhoso de nosso filho".

Os dois ficaram mudos, pensativos; aquele entusiasmo pela carreira do filho era bem mais forte do que eles.

Provando serviços prestados durante mais de quarenta anos, e por autênticos documentos, as suas enfermidades, o mestre-escola Francisco Antonio das Chagas obteve sua aposentadoria. Nomeado para substituí-lo o filho Paulo. Fixara, então, o sobrenome tomado a longínquo antepassado, o capitão Miguel de Eiró que em 1705 se casou em Santo Amaro com Ianez Domingues de Pontes, sobrinha do venerável padre Belchior de Pontes.

Durante quatro anos seguidos, Paulo Eiró regeu a escolinha de Santo Amaro. Foram anos fecundos e de relativa tranquilidade. Não era homem para se limitar ao trato mofino das cartilhas e do b-a-ba.

Cedendo ao impulso de fugir à realidade, viver em mundo de ficção ator ele próprio - organizou representações no teatrinho de Santo Amaro. Dentre as suas produções literárias do gênero teatral se destaca "Sangue limpo", onde Paulo Eiró se revela francamente pela abolição da escravidão, como em várias poesias desfralda a bandeira republicana.

Algumas peças se destinavam a desopilar a população santamarense.

"O programa terminou com a comédia 'Terça-feira de entrudo', representada por Proença, Julio Guerra, um moço que anos depois devia morrer heroicamente no Paraguai, e outros já conhecidos do público. Era uma peça escrita exclusivamente para rir. Mas o melhor não estava escrito. Foi quando o Antoninho Pato reparou que Pedro Hannickel, seu compadre, estava com a vista da calça desabotoada. E, interrompendo o papel, como se nada fosse, enxertou:

- Entre parêntesis, compadre, abotoe as calças..."

Durante esses quatro anos, Paulo Eiró deu-se à embriaguez do trabalho, como quem procura esquecer, como quem procura alhear-se do ramerrão cotidiano. Durante momentos, horas talvez, viam-no tão absorto, que parecia estar vivendo noutro mundo.

Aparecem, já, as primeiras nuvens da tormenta que acabaria por toldar por inteiro a sua razão: entregava-se a passeios intermináveis, léguas e léguas a pé, esquecido de se alimentar, esquecido da família, esquecido de tudo. Era a fobia ambulatória, cuja explicação é a fuga de si mesmo, a procura de um pouso, de um mundo que não é deste mundo, onde o enfermo se encontre livre dos tormentos que o perseguem. Com essa mesma anomalia psíquica, vamos topar em Fagundes Varella, Álvares de Azevedo, e também - quem sabe? - em Castro Alves, sem dúvida mais equilibrado que os outros. Sofreu o acidente de que resultou a perda do pé, achando-se em arrabalde afastado, só, a pretexto de caçar.

Desiludido de seu grande amor, pois a Musa mostrava decidida preferência pelo outro primo, com quem veio afinal a se casar - via Paulo Eiró cada vez mais próximos seus horizontes.

O demônio da angústia martelava dia e noite no seu coração. Só por estreita fresta conseguia ainda sua imaginação fugir. "Sei que a serenidade não consigo, enquanto me restar uma esperança".

Obteve licença do governo e matriculou-se na Academia de Direito. Alvo do trote dos estudantes, "o poeta nem sequer erguia os olhos. Continuava com passo firme, batendo a ponteira da bengala nas pedras da rua e, enquanto lá em cima os colegas se descabelavam numa assuada, alcançava serenamente o largo de São Francisco. Era como se não fosse com ele. E a sua infinita tristeza impressionava os transeuntes".

Frequentou as aulas? Interessou-se pelos estudos? Prestou algum exame?

O mais provável é que a Academia tenha sido para ele fonte de decepções intelectuais. Dias sombrios se sucedem, até que uma tarde um próprio (N. E.: mensageiro expresso) chega à casa de Francisco das Chagas levando carta dirigida a Emygdia. Trêmula de pressentimento, em voz alta, a família ao derredor, leu:

"Minha Mana - São Paulo. Eu disse coisas que passaram por impostura, e que não o eram. Desde quarta-feira de Trevas têm-se passado espantosos mistérios na criação. É necessário morrer porque eu fiz voto de dar meu corpo, minha alma, minha vida para a salvação do que pudesse ser salvo, antes de saber de onde vinha. Não é suicídio; é cumprir um voto. Console meu pai, tenha fé nas minhas palavras, e conserve meus papéis com cuidado, porque me hão de ser precisos. Adeus, até outra existência - Paulo".

Este curioso documento, dado que a letra do poeta haja sido traduzida com fidelidade, é uma autêntica despedida de suicida. Pululam as contradições, além das falhas de senso: "... tem-se passado espantosos mistérios na criação..." Não teria ele escrito: "... no meu coração"?

Leia-se o restante, suprimindo as palavras "não é suicídio" e "porque me hão de ser precisos" e teremos o adeus de quem se vai matar.

Façamos alto para registrar que as mesmas ideias fatais açoitaram a mente de Álvares de Azevedo e de Fagundes Varella.

Longe dos seus, sentindo-se exilado "na sua terra", o poeta da Lira dos Vinte Anos apela para as imagens idolatradas para dominar a tentação:

"Ó minha mãe! minha mãe! nunca mais te verei! Meu pai! Meu santo pai! E tu, mãe de minha mãe, que sentias por mim, que enxugavas minhas lágrimas com teu cabelo branco, pensando no teu pobre neto! adeus! Perdão! Perdão!... Creio que chorei. Tenho a face molhada... A dor me enfraqueceria? Não! Não há outro remédio, morrerei".

Varella tem crises de angústia tão violentas que receia se lhe rebente o coração. Desaparecer durante dias e semanas, não surpreendia a ninguém. Mas de uma feita deixou um bilhete de despedida: ia se matar. Não realizou o intento. E a explicação chocha que deu do bilhete, quando tornou ao convívio dos colegas, parece confirmar a sinceridade da despedida: queria, disse, observar o efeito que a notícia de sua morte causaria no meio estudantino...

Affonso Schmidt assinala a influência de Álvares de Azevedo sobre Paulo Eiró. E transcreve uma bela página, ignorada, em que o poeta santamarense relata o único encontro que tiveram: na igreja de São Francisco, ao pé do catafalco erguido para as exéquias de um estudante, João Baptista Pereira, suicida por amor...

Nas quatro faces da coluna fúnebre, Eiró leu versos que lhe pareceram detestáveis.

Senso crítico não lhe faltava para apreciar os versos e qualificá-los. Mas equivoca-se ao atribuí-los a Álvares de Azevedo.

O suicídio por amor provocou uma florada de versos e discursos. Álvares de Azevedo, que principiava o curso, incumbiu-se da oração à beira do túmulo. Não lhe pertencem os versos.

Malograda a tentativa de seguir o curso acadêmico, mete-se na cabeça do poeta a ideia de se matricular no Seminário Episcopal. Não houve quem, nem o que o demovesse. Mas a inquietação não lhe dá sossego. Suas atitudes, mal compreendidas, não convinham como exemplo aos jovens seminaristas. E partiu para Sto. Amaro um emissário que voltou com Francisco Antonio das Chagas.

O quadro em que o biógrafo de Paulo Eiró descreve a entrevista, no parlatório do Seminário, entre o velho mestre-escola e o padre reitor, é um baixo-relevo de admirável nitidez.

Como se não bastasse despedir o filho, o padre exige a destruição de seus versos:

"Se o senhor professor ler as suas poesias - e ele é um poeta admirável! - verá que alguns cadernos precisam ser destruídos, por eivados de modernismos...

"Francisco Antonio das Chagas sobressaltou-se. - Destruídos?" Esquecido de que falava a um pai, rígido, sem resquício de piedade, o padre bateu nos braços da poltrona: "Queimados!"

O velho tentou, em vão, colher, nas costas da mão engelhada, a lágrima que rolava dos olhos; e no mais intimo de seu ser repetiu a frase humilde: Deus está castigando o orgulho que eu tinha deste filho!

Pobre Francisco Antonio das Chagas! A dor de um pai que vê o filho consumir-se dia a dia, e a passos largos aproximar-se a hora da despedida -, por incomensurável que seja, pode-se conceber. Mas excede aos âmbitos da imaginação o suplício de assistir à fuga da razão, a alienação mental do ente em que depositava todas as esperanças. "Nessun maggior dolor..." O homônimo do pobrezinho de Assis oferecia a Deus o seu tormento. Mas longe estava de esgotar o cálice de amarguras.

Diante da experiência do Seminário, Paulo Eiró encasquetou continuar os estudos em Mariana. Ou era pretexto para nova fuga?

Partiu a pé, tomando a estrada do Rio de Janeiro, que devia conduzi-lo até Embaú, junto à Serra da Mantiqueira, e daí para Minas.

Durante meses não tiveram notícia dele. A mãe teve-o por morto. Quanto do pai, vez por outra, no silêncio e na solidão, o demônio tomava a forma sedutora do raciocínio e soprava pensamentos que logo repelia: Melhor seria que morresse mesmo, antes de novos e maiores sofrimentos...

Tomando por base o soneto Fatalidade e com um nada de fantasia, o biógrafo de Paulo Eiró descreve-o assistindo por mero acaso ao casamento, na Sé Catedral, do primo Juca com a Musa.

Não se encontra, nas tradições de família, tão cuidadosamente conservadas, a mais ligeira notícia de que se houvesse tentado qualquer tratamento para a moléstia mental que afetara o poeta. A psicopatologia, que estuda as enfermidades do espírito, e a psiquiatria, que se ocupa de seu tratamento, estavam longe de sua infância.

E o mal crescia. Dificilmente ele, que fora tão dócil, era conservado nos limites da chácara. Anjo tutelar, verdadeiro anjo de guarda se mostrou então a velha escrava Anna. Só a ela atendia quando, nos seus acessos, se atirava contra a cerca de amoreiras, e se feria todo, e punha em farrapos as vestes. Trazia-o para casa, curava-lhe as feridas, e ele, como criança de colo, deixava-se mimar pela ternura da mãe preta.

Chegava a compor versos. Num dia destes, ao saber da morte de Gonçalves Dias, falsa notícia espalhada com o adminículo de que fora num naufrágio, compôs a quadrinha:

Deus, num acesso de amor

Ao poeta soberano,

Deu-lhe por berço o equador

E por túmulo o oceano.

Mas o equilíbrio entre a razão e o desatino se tornava de mais a mais precário.

Conseguiu, num domingo de maio, à hora da missa, iludir a vigilância dos pais. Tomou o caminho da vila. Entrou na Igreja, e causou enorme escândalo dando apartes ao vigário durante a explicação do Evangelho.

No dia seguinte, com os olhos rasos d'água, Francisco Antonio das Chagas dirigiu ofício ao presidente da Província, pedindo a internação do filho. Admirável documento onde se espelha a mais funda dor que pode cortar o coração humano:

"Ilmo. e Exmo. Sr. vice-presidente,

"Francisco Antonio das Chagas, da Vila de Sto. Amaro, com mais de oitenta anos de idade e paralítico, que vive unicamente de seu ordenado de professor aposentado de primeiras letras, e com avultada família a quem sustenta e mantém; tem um filho de trinta anos de idade, de nome Paulo Emílio, o qual há oito a nove anos vive alienado, como é sabido nessa cidade, o qual filho tem vivido com o suplicante até hoje, ora mais ora menos atacado da alienação; agora, porém, tem se tornado tal que passa a apresentar-se em público, e até no Templo, como aconteceu ontem, dez do corrente, à hora da Missa Conventual, proclamando ao povo reunido discursos sediciosos e irreligiosos, pelo que se faz mister impedi-lo em parte que tenha essa liberdade; faltando porém ao suplicante os meios para isso, vem suplicar a v. exa. se digne, a bem desta família e do público, mandar recolher ao Hospital de Alienados dessa cidade a este desgraçado, onde possa receber agasalho e curativo; o suplicante, confiado na bem conhecida bondade e retidão de v. exa. - E. R. Mcê - (a.) Francisco Antonio das Chagas". (N. E.: E. R. Mcê é abreviatura da fórmula redacional "Espera Receber Mercê").

Não tardaram, vindos de carro, uns homens de S. Paulo para conduzir o enfermo. Choravam os parentes. Soluçavam os escravos. Para não assistir à cena, a velha Anna levou ao rosto o avental de algodãozinho.

De sua cadeira de paralítico, Francisco Antonio das Chagas ergueu trêmulas as mãos para o céu e exclamou:

"Fui castigado do orgulho que tinha deste filho! Deus me feriu no que eu mais amava na terra!"

Internado, "duas vezes por mês vinha a pé de Santo Amaro para visitá-lo, a bondosa escrava Anna, que com tantos mimos o criara. Trazia-lhe roupa limpa, cheirosa; aparava-lhe os cabelos e as unhas e, quando saía, era sempre uma despedida de umedecer os olhos".

"Anna! Mãe-preta de Paulinho! Quero colocar aqui no teu nome sem sobrenome, a flor esquecida, humilde, tardia, da minha ternura, por todas as mães-pretas da nossa terra!"

Pouco lhe sobreviveu o poeta. Contando trinta e cinco anos, faleceu de meningite.

Tema a desafiar os estudiosos e entendidos é o diagnóstico da moléstia mental de Paulo Eiró. Seria a demência precoce?

O leitor curioso perguntará: E a Musa? Que fim levou a Musa?

Casou-se, teve muitos filhos, foi muito feliz. Morreu de velha e nunca se esqueceu do poeta cismador. Não, não me animo a transpor para minha prosa insonsa a deliciosa página em que Affonso Schmidt conta o fim da Musa.

*

Imensa, a produção literária de Paulo Eiró.Uma grande parte se perdeu. Quem sabe se a melhor?

Completa o volume uma coletânea de versos do poeta. Organizou-a, anotou-a, o dr. José R. Gonçalves, neto colateral de Paulo Eiró. Poeta, ele próprio, escritor primoroso, com paciência e perseverança dignas de imitação, mostrou-se "o melhor parente do mundo" (como pitorescamente o chamou Monteiro Lobato): recolheu da tradição familiar e de cuidadosas pesquisas o material que a pena mágica de Affonso Schmidt transformou na formosa novela A Vida de Paulo Eiró.

No gênero, biografia de poeta pátrio, não conhecemos melhor.

De natural excessivamente retraído, Affonso Schmidt se mostra legítimo irmão de sangue de Álvares de Azevedo e Fagundes Varella: despreza a glória.

Contam biógrafos de Chopin que, com surpresa, vizinha do espanto, quando ele morreu em Paris, verificou-se que não possuía nem mesmo a fitinha vermelha de cavalheiro da Legião de Honra.

Tenho sérios receios de que, daqui a cinquenta anos, quando se escrever a história da literatura contemporânea, o capítulo em que figurar Affonso Schmidt termine por estas desconsoladas palavras: nem sequer foi membro da Academia Brasileira de Letras.

Vicente de Paulo Vicente de Azevedo.

Continuação da matéria, na página VII do jornal Folha da Manhã de 20 de julho de 1941

Imagem: reprodução/Acervo Folha de São Paulo

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