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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, na Folha - 16

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Affonso Schmidt foi também colaborador do jornal paulistano Folha da Manhã, (que daria origem ao jornal Folha de São Paulo e ao grupo homônimo. Na edição de terça-feira, 11 de fevereiro de 1937, página 6, foi publicado este texto do escritor (acervo Folha - acesso em 9/4/2016 - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Cagliostro

(Copyright da Imprensa Brasileira Reunida Ltda. (I.B.R.) - Exclusividade  no Estado de S. Paulo para a "Folha da Manhã")

Afonso Schmidt

Cagliostro pertence ao número de homens a quem a história não perdoa. Quem toma da pena para escrever sobre ele sente-se na obrigação de apresentá-lo como a flor dos charlatães, explorando uma época que, nesse caso, devia ter sido de extrema candura.

Eu, na minha simpatia pelos condenados da história, procurei conhecer um pouco da vida desse personagem e encontrei duas coisas que ninguém me havia dito: o homem - fosse ele quem fosse - era um gênio e a sua época nada tinha de cândida, pois já conhecia a Encyclopedia e um grupo de artistas, filósofos e cientistas como poucas vezes o planeta tem reunido.

A primeira referência séria que encontrei sobre Cagliostro, que a história apresenta sob diversos nomes, metido nas aventuras mais estrambóticas, foi a visita feita por Goethe à casa em que ele, o Grão Copta, o Marquês de Fênix, ou simplesmente Giuseppe Balsamo, nasceu e passou os primeiros anos de sua atilada mocidade. Nas imediações de Palermo, nessa Sicília que parece um canteiro de rosas sobre o Mediterrâneo azul.

Conta-se que ele, então Giuseppe Balsamo, para sair de lá, embrulhou um ourives em sessenta onças de ouro. muito deveria ter-se arrependido, porque ao longo de sua vida, nos momentos de triunfo, aparecia sempre aquele velho com cara de gavião, a reclamar-lhe as sessenta onças de ouro. Mas isso não é lógico. Cagliostro dispôs de milhões e poderia ter resgatado essa dívida com juros principescos.

A verdade, porém, é que a sua biografia tida como documental ainda hoje é a de Luiz Figuier, que para isso se socorreu de processo feito pelas autoridades do Santo Ofício, processo que o atirou ao Castelo de Santo Angelo, de onde ele vivo ou morto desapareceu, sem deixar sinal. Seu prestígio foi tão grande na França que, um dia, quando os soldados de Napoleão chegaram a Roma, quiseram libertá-lo e até mesmo festejá-lo como faziam anos antes, em Paris, mas não o encontraram: apenas uma inscrição profética nas muralhas daquela fortaleza. Nada mais. Como se vê, a sua biografia peca pela origem, pois sai das páginas de um processo que parece ter sido feito não para julgar mas para condenar o amigo do cardeal príncipe de Roha, implicado no famoso "Caso do colar".

Todas as tramoias atribuídas a Cagliostro me parecem discutíveis.

Na Rússia, uma família aristocrática, tendo um filho de poucos meses à morte, desenganado pelos médicos, chamou-o. Não havia mais nenhuma esperança. Ele estudou o caso e propôs levar a criança para a sua casa, onde curou o pequeno enfermo e o devolveu à família. Foi um sucesso nunca visto. Tempos depois, surgiu a suspeita, a suspeita apenas, de que o mago tivesse substituído a criança enferma. Então, a rainha Catharina, que via com maus olhos as relações da esposa do bruxo com um de seus oficiais, porque ela tinha ciúmes do Exército inteiro, ameaçou-o, encheu-o de dinheiro e facilitou-lhe a fuga.

É o caso de perguntar que mãe seria aquela que a princípio, no momento mais oportuno, não percebeu a roca do filho, mas que disso passou a desconfiar algum tempo depois... O desfecho desta história parece ligá-la a uma das inumeráveis intrigas da corte russa daquele tempo, agravada pela ciumada que deveria ter despertado entre os médicos de São Petersburgo a cura daquela criança.

O mesmo deu-se em Paris, com um príncipe de sangue, irmão do cardeal de Rohan. Foi o próprio cardeal quem levou Cagliostro ao pé do ilustre enfermo, já condenado à morte pela ciência. O mago olhou-o e disse: "Curo-o". Prescreveu um vidrinho do seu elixir e predisse a marcha da doença. Tudo se deu como ele havia dito, e o príncipe dentro de pouco recuperou a saúde.

A Academia das Ciências registrou essa cura. Aliás, por outras vezes, já se tinha mostrado muito amiga de Cagliostro, o que era levado em conta da altíssima proteção política de que gozava o Grão Copta.

Diante desses dois fatos que eu cito ao caso, os que não conhecem alguma coisa sobre Cagliostro pensarão, naturalmente, que se tratava de um curandeiro. Longe disso. O famoso elixir era apenas um dos mais pobres aspectos da sua pretendida sabedoria. Como filósofo, ele deixou uma escola mística; como cientista, completou e aperfeiçoou Mesmer; como taumaturgo, alarmou o grande Claude Louis de Saint Martin, que a seu respeito escreveu: "Cagliostro é o tormento da verdade". E recusou-se a ser-lhe apresentado. Ora, se fosse apenas o charlatão que consta no processo, Saint Martin ou não teria ligado maior importância aos seus feitos, ou então o teria desmascarado.

A segunda fase da vida de Cagliostro parece-me brigar com a primeira. Da leitura que fiz, ficou-me, apenas por força da lógica, a suspeita de que há nisso tudo um truque histórico, para denegrir a sua memória. Cagliostro não é Giuseppe Balsamo, não é o barão de Fênix, não é nenhuma dessas figuras criminais com que o confundem: Cagliostro é Cagliostro. Um homem que, século e meio depois de desaparecido, ainda dá vertigem em quem o estuda.

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