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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 43

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 6 da edição de 21 de setembro de 1945 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Primavera

A cena se passa, altas horas da noite, em um cafezinho de arrabalde. O caixeiro está atrás do balcão. O único freguês é um velho que cochila sobre o copo de vinho. O boêmio entra, fatigado de perambular pelas ruas. Dirige-se ao empregado.

- Boa noite...

O homem não responde. Ele vai a uma das mesas, abanca-se e fica com a cabeça apoiada nas mãos. Só então o caixeiro parece vê-lo.

- Olhe, se entrou para dormir não temos conversa!

- Traga um café.

- Assim é que a gente se entende. (Serve-o, com um bocejo). Vá passando o cobre, que aqui é na ficha.

O rapaz procura a moeda no fundo do bolso.

- Tome lá, homem.

Fica a saborear o café. A noite, lá fora, é silenciosa e azul. De repente, cachoam as notas cristalinas de um piano da vizinhança. O velho desperta e se põe a marcar compassos, com o cachimbo.

- Quem é que estas horas está tocando piano?

- É o maluco.

- Que maluco?

- É um compositor que mora na sobreloja. É meu amigo. Eu conheço toda a gente do bairro.

- Ah, sim... E porque é que o chamam de maluco?

- Porque ninguém o compreende. De dia dorme, de noite vagabundeia. Quando a lua branqueia os telhados, ele vai ao piano e... Escute...

Volta a marcar compassos com o cachimbo e adormece sobre o copo de vinho. Nesse momento, num canto do café, aparece a Desconhecida. É moça, fina, espiritual, reluzente de sedas, faiscante de joias. Comprime ao peito uma braçada de rosas. O rapaz a vê e fica perplexo. A música continua. Ela nota o pasmo do freguês e leva o dedo aos lábios, impondo-lhe silêncio. Psiu! Depois vai, pé ante pé, e senta-se à sua mesa.

- Vamos lá, diga boa noite...

- Escute, o taverneiro é um homem de mau humor e não gosta destas pilhérias. Além disso, ele já está comigo por aqui... Quer tomar alguma coisa?

- Eu? Sim... Um Madeira.

- Desculpe, mas...

- Sim, um Madeira, vou pedir...

- É que...

Aflito, vasculha os bolsos.

- Bobinho... Eu não quero nada. Vim aqui, apenas, para lhe fazer companhia.

- Uf! Está bem. Mas de onde é que você está chegando, a estas horas?

- Dali, da noite.

- Assim elegante?

- Milagres de setembro. As chácaras estão floridas. Os ipês parecem uma poeira de ouro...

- E que veio fazer?

- Isto: enfeitar a sua mesa, assim...

Enquanto ele toma o café, ela vai espalhando rosas pela mesa, pelo chão, pelas cadeiras, vai florindo tudo.

- Você é atriz?

- Não.

- É aventureira?

- Também não.

- É dama da sociedade?

- Muito menos.

_ Uma fada?

- Eu?... Ora essa!

- Então é maluca...

- Talvez.

- Ih... Sempre me acontece cada uma! O caixeiro vai vê-la e correrá comigo. Moça, siga o seu caminho!

Mas o empregado vai à mesa, tira a xícara e não vê a mulher, nem as rosas.

- Olhe, dê-me um copo de água.

- Daqui a pouco, pede um palito e um jornal.

Serve o copo de água e volta ao seu posto, a lavar xícaras.

- Moça, quer água? Está límpida e fria.

- Não tomo água a esta hora. Porque não prefere um copo de vinho?

- Ora, deixe de pilhérias.

- Pois não deixarei você beber essa água. Faz mal. (Mergulha três rosas no copo). Aí tem moscatel. Experimente.

- Será possível? É vinho! E agora, como farei para pagar o caixeiro?

- Não seja tolinho... O caixeiro não existe. Fui eu que tomei de um carvão e pintei um boneco na parede.

O rapaz levanta-se e vai examinar o empregado. Toca-lhe no braço:

- Vejamos...

Mas o caixeiro mostra-lhe os dentes:

- Não me toques, que eu sou inlétrico!

A desconhecida ri. E segreda-lhe:

- Venha cá. Diga-me a frase que você ainda não disse.

- Qual delas?

- Uma frase de amor.

- Mas isso é uma loucura. Não entendo nada. Não compreendo...

No silêncio do café cascateia novamente a música. O velho acorda, marca uns compassos e adormece.

O rapaz exclama:

- Lá está outra vez o músico que toca piano quando a lua branqueia os telhados.

Vai à porta e olha para fora.

- A noite está de enlouquecer.

Durante a sua ausência, a Desconhecida desaparece, o velho ronca, o caixeiro lava a louça. O piano passa a tocar em surdina.

- Onde estará aquela mulher? Desconhecida! Ó desconhecida! Ninguém!

O caixeiro reclama:

- Já lá está você, outra vez, com o demônio no corpo?

E o velho:

- Mas que barulho! Deixem-me dormir!

O rapaz dirige-se ao caixeiro:

- Onde foi aquela moça que estava sentada à minha mesa?

- Que moça é essa? Não vi moça nenhuma!

- Aquela que sentou ali, que transformou a água em vinho e que espalhou todas essas rosas pela casa...

- Que vinho? Que rosas?

- Você não vê como o café está todo enfeitado de rosas?

- A! com quem estou lidando... Ora vai-te para a casa do diabo!

O velho acorda de novo, acende o cachimbo e pergunta:

- Afinal, que foi que você perdeu?

O boêmio está de pé perplexo, no meio da sala. A música cascateia. O velho fuma, observa-o e sacode a cabeça com ar compungido. O namorado dirige-se a ele:

- Você a conhece?

- Conheço toda gente do bairro.

- Então, diga-me quem é ela. Quero ir procurá-la!

- Ah! Conheço-a há muito tempo. É uma doida. Anda a florir as tristezas do mundo e a dourar as durezas da vida. É...

- É...?

- Hoje é 21 de setembro. è d. Primavera!

A música envolve a casa, a rua, o bairro, a cidade e o céu. Nunca houve na terra uma noite tão azul.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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