Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult063l26.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 06/30/12 15:02:12
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 26

Leva para a página anterior

Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 6 de novembro de 1940 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Em Palmeira - há meio século

A pobreza da Colonia Cecilia

Quando os passarinhos começaram a sua grazinada alegre nas árvores do terreiro, Cardias levantou-se, correu o pano de aniagem que servia para tapar a única janela do tugúrio e espiou para fora. Clareava. O céu se fazia cor de púrpura: na planície cinzenta, levemente ondulada de colinas, os pinheiros se iam adensando na distância em manchas esfumadas. Os mais próximos, na sua conformação de gigantescas taças rasas, pareciam transbordar de uma aguapé cor de rosa: era o primeiro toque de luz nas suas copas.

Tomou de um trapo branco - última lembrança daquilo que outrora havia sido toalha - e seguiu para o riacho. De passagem, notou que os companheiros ainda dormiam. Fratello, o cachorro de Ciccio, estava enrolado no lugar em que, na véspera, ardia uma fogueira. Aves afoitas que mariscavam inutilmente no terreiro, voaram à sua aproximação. As ervas do caminho pendiam encharcadas de orvalho e, batendo nas pernas do colono, molhavam-nas. A lama fina e gelada da beira do córrego entrou-lhe por entre os dedos dos pés, fazendo-o estremecer.

A meio mergulhada na água, havia uma tábua larga: era ali que a velha Rosa, então a única mulher da Colonia, ensaboava e batia a roupa dos companheiros. Ao lado, no capim rasteiro, via-se estendida uma calça de zuarte, do Cicio. Se a calça azul estava ali, ele nesse dia, com certeza, devia envergar a oura, aquela que nos bons tempos tivera cor de ferrugem... Sorriu.

Ajoelhou-se na tábua, fazendo esforço para não afocinhar no charco. Então, no cristal da água viu o próprio retrato. Achou-se mudado, quase não se reconheceu. Estava felpudo como um teppista. Tinha a pele tisnada pelo sol, os dentes escuros. E, ensaboando o rosto com sabão de cinza, raspando com as unhas os nós da da barba, lembrou-se de ouros tempos.

Fora um rapaz quase bonito. Em Florença, no Conservatório e depois na Escola de Agronomia como estudante, as mulheres olhavam-no com ternura. E seus colegas, onde estariam eles? Teriam progredido com tudo aquilo a que chamavam família?  Só ele ali estava, mais pobre que um mendigo, esmagado pelo sonho de uma humanidade melhor. Ah! Aquela ponte! Quando voltou, viu a velha Rosa à beira do rancho, amarrava na cabeça um lenço de ramagens e retorcia a boca avelhantada, num rictus de mau humor.

- Você hoje dormiu bem.

- Ora, para que levantar. Não há o que comer...

Só então Cardias lembrou-se de que a caixa se encontrava vazia e a despensa inteiramente desprovida de gêneros. Coçou a cabeça. Estendeu um olhar em volta. O milharal apareceu-lhe crescido todo agitado ao vento da manhã, mas nem sombra de espiga. Na horta, de canteiros bem esquadrejados, o verde apontava na terra escura. Mas para que servia aquilo? Para nada. Não havia sal, açúcar, pão, carne...

Os outros colonos foram aparecendo nos seus ranchos, interessados na conversa. Piero, sempre enrolado no cobertor, sentou-se à porta e se pôs a rir de um modo escarninho. Aquilo não era homem, era um toco de pau, daqueles que a gente encontra retorcidos, mas imóveis nas esquinas. Se não lhe botassem a comida na boca ele morreria de fome. E daí era já algo deprimente. Só dizia palavras desgastantes, incomodativas.

Que concepção tacanha tinha ele do ideal - ai, daquele ideal que era todo luminosidade e harmonia!

Na casa dos Bottai havia fogo: uma fumaça azul saía alegremente pela única janela. Cardias foi até a porta e olhou para dentro:

- Que é isso? Fogo? Para que?

Lá dentro havia duas pessoas: uma blasfemou, outra pôs-se a rir.

E as horas foram passando. Os sinos cantaram maciamente na distância. Dentro de pouco, como fizesse frio, todos estavam sentados num retalho de sol, a discutirem bizantinismos ideológicos. Para Cardias, aquilo não era, nem de longe, o que havia sonhado. E a culpa não era da terra, do governo local, nem mesmo das classes conservadoras que ainda não pensavam em defender-se: era o resultado das taras de milênios, da má compreensão de todos. E ajuntava:

- A sociedade velha deformou a nossa compreensão da vida. Somos uns pobres chineses a quem, de um momento para outro, houvessem tirado os sapatinhos de ferro que durante milênios lhes foram deformando os pés. Estamos livres, mas não sabemos andar. Conquistamos a liberdade, mas para morrer de fome...

Os circunstantes protestavam. Piero bradou:

- E que tem você com isso? Viemos para aqui, acaso, com o intuito de constituirmos um principado em que você dispusesse de nós outros como de súditos: Nesse caso preferimos o rei, o patrão, o carabiniere!

Foi quando se ouviu um canto alegre. Era Ciccio, o gigante ruivo. Ele morava um tanto afastado numa pequena casa, tão pequena que para nela entrar precisava curvar o reforçado busto. Quando tinha hóspede, dava o interior da casa e dormia diante da porta, com os pés ao relento... A porta e a janela não tinham folhas para fechar. Quem quisesse, entrava e saía a qualquer hora do dia ou da noite.

Aquele homem não precisava de nada na vida. Não tinha nada. Não queria ter nada. O verbo possuir não oferecia significação para ele. Sua linguagem pobre, escassa, ignorava os possessivos. Fizera aquela casa e chegara a ter duas mudas de roupa: todos sabiam que aquela "propriedade" era um trambolho na sua vida: vivia a oferecê-la aos companheiros, na esperança de que alguém lhe fizesse o favor de aceitar.

Il campanil de Pisa

Pende perché deretto non pó star...

Eram os seus stornelli. Quando entrou no terreiro, mais ruivo, mais corado, mais desajeitado, com uma mecha de cabelos agressivamente espetada para a frente, os companheiros puseram-se a rir, sem mesmo saberem porque. Sua presença era agradável e animosa. Não precisava falar para transmitir coragem. Bastava vê-lo. E ele se orgulhava de ser útil, mesmo dessa forma, à colônia.

- Por que riste?

- Por nada. Estamos com fome.

- Pois eu já fiz a minha merenda.

Ninguém acreditou.

Então ele, sem dizer palavra, voltou ao rancho e de lá trouxe uma broa das grandes e dois palmos de salame, um jacazinho de mate e um pacote de açúcar. Diante da alegria dos amigos, cortou um bom naco de carne, deu-o ao cachorro que, sem cerimônia, se pôs a comer. Depois entregou aquela riqueza à velha Rosa que era assim uma espécie de "ministra" do Interior. Todos se animaram. O próprio Piero saiu do seu lugar e entrou no grupo.

- Vamos comer o resto do cachorro...

Dali a pouco a mesa estava posta e todos, alegremente, quebravam o jejum.

Piero, com a boca cheia, perguntou:

- Onde teria ele roubado?

Houve protestos: Ciccio não era ladrão.

E ele não pode ouvir tais palavras porque já seguia em direção a Palmeira. Cardias conseguiu alcançá-lo.

- Companheiro, venha comer.

- Já comi.

- É mentira.

Ele não deu resposta. Adiantou-se a a gingar o corpanzil. Fratelli então pôs-se a dançar à sua frente. Depois, desembocando na estrada do governo, perdeu-se entre umas árvores.

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Leva para a página seguinte da série