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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 15

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 19 de outubro de 1938 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

O teatrinho

Mestre Chagas andava doente. A casa da Rua Direita já não tinha para ele o encanto de outros tempos. As aulas, da hora do recreio para a tarde, se arrastavam molemente. Constavam de tabuada cantada, ditados de trechos da "Arte de Furtar" e intermináveis exercícios de caligrafia. Enquanto os alunos assim trabalhavam, o professor ficava de cotovelos fincados na mesa, a cabeça apoiada nas mãos abertas, alisando mechas de cabelos grisalhos.

O salão da escola era o mais amplo de Santo Amaro e nele se realizavam os bailes e festas de maior brilho. Quando solicitado a emprestar o salão, Chagas entregava a chave ao pretendente e recolhia-se à casa da chácara, avesso como sempre às reuniões. Nunca fora severo com os alunos. Nem mesmo doente, com os nervos combalidos por cilícios e jejuns, manifestara o mais leve mau-humor. Ao contrário, a falta de saúde tornava-o, segundo se dizia, por demais complacente com as crianças. Naquele tempo não se compreendia semelhante tratamento a escolares. Por isso, houve pais que o procuraram para se queixar:

- Mas seu Chico, o senhor não é bastante "brabo" com os meninos; é preciso distribuir palmatoadas à torta e à direita, botar-lhes orelhas de burro, vergastá-los com a vara de marmelo, enchê-los de susto para que eles aprendam a cartilha...

Então o mestre respostava:

- Não posso. Não tenho jeito para isso. Se precisam de má catadura e instrumentos de castigo, tirem os meninos da minha escola e vão à procura de um carrasco...

Ali por meados de 1855 deixou-se ficar de todo em casa e Paulo Eiró,que havia alcançado carta de professor primário pela Escola Normal, era quem todas as manhãs seguia para a vila, abria a escola e dava as lições. Suas aulas eram vivas e brilhantes e se pecavam por alguma coisa era pela teima do jovem professor em querer ensinar, de uma só vez, tudo o que sabia. Não podia admitir que os alunos deixassem de compreender com facilidade as matérias que a ele eram familiares...

Vendo-se dono por assim dizer da casa da Rua Direita, o poeta, que andava saturado de autores teatrais e escrevia peças com famosa desenvoltura, teve uma ideia que lhe deu muito trabalho e dissabores. Por esse tempo já não mais assinava Paulo Francisco ou Paulo Emilio de Salles, mas Paulo Eiró. Esse sobrenome fora buscar ele a um antepassado, o capitão Miguel Eiró, flaviense brazonado que se casou em Santo Amaro, no ano de 1705, com Ignez Domingues de Pontes, sobrinha do venerável padre Belchior de Pontes.

Paulo Eiró não se sentia feliz nos seus amores pela Musa. Em S. Paulo, de 1852 a princípios de 1855, cursando a Escola Normal, ele ganhou o pouco de que necessitava para os estudos, lecionando no Colégio Galvão. E enquanto lá esteve, residiu em casas de parentes e amigos da família. Encontramo-lo no sobradão de Malaquias Rogerio de Salles Guerra, no Piques; na casa do conselheiro padre Vicente Pires da Motta, na esquina da Rua de S. José com o Largo de S. Bento; e na casa da tia Anna Luíza, casada com o capitão Francisco de Assis Pinheiro e Prado. Essa última casa era nas imediações da Rua da Liberdade, um pouco para a baixada, sendo mais tarde transformada em convento.

A hospedagem que lhe ofereceu o primo Malachias ROgerio de Salles Guerra poderia ser-lhe motivo de grande satisfação, pois a Musa lá residia por esse tempo. Mas a verdade é que tal aproximação não lhe deu muita alegria. Paulo Eiró tinha a felicidade de vê-la amiúde, mas a jovem se mostrava tão indiferente ao seu amor que ele, num dia triste, chamou um escravo e mandou levar a canastra de roupas e livros para a casa do conselheiro padre Pires da Motta. Preferia adorá-la à distância, como um ser inatingível. Foi um período angustioso para ele.

A Musa se havia tornado uma linda moça, requestada em todos os salões, e parecia gostar imenso de dançar. Paulo Eiró vestia-se com apuro e comparecia às mesmas festas, na ânsia de dizer-lhe uma porção de palavras que lhe escaldavam o coração. Mas não contava com o seu temperamento retraído. Nessas reuniões, ficava pelos corredores, sem ânimo de entrar no salão. Passava horas entre as cortinas de uma janela, ou encostado à porta do corredor, a vê-la dançar com os "polcas" mas famosos da época. Quando as amigas perguntavam à jovem quem era aquele rapaz que a contemplava de longe, ela respondia de um modo vago:

- É um poeta que gosta muito de mim...

Uma irmã de Paulo Eiró lamentava-o:

- Coitado do Paulinho, há de sofrer nesses bailes, ele que só sabe escrever...

Formado, voltou para Santo Amaro. Só tinha uma preocupação: conquistar o amor de sua Musa. Preso à escola da Rua Direita, por causa da enfermidade do pai, passava os dias no convívio dos livros, ou então a arquitetar planos. Ele, que havia há anos abandonado os preparatórios, sentiu de um dia para outro um grande desejo de formar-se em Direito. Talvez o título de bacharel comovesse a Musa. E enquanto hesitava em retomar os estudos, quis deslumbrá-la com o teatro, pondo em cena peças de sua lavra e interpretando papéis à luz da ribalta. Talvez a Musa gostasse de vê-lo representar as próprias comédias... E esse desejo se tornou obcessão quando soube que ela iria passar na vila, em casa de nhá Cherú, as festas de S. João e S. Pedro. Sim, era preciso criar um teatro em Santo Amaro...

O poeta, depois de examinar muitas vezes o salão da escola, de medi-lo a palmos e de traçar sobre o soalho compridas linhas a giz, resolveu botar mãos à obra. Obteve nos armazéns alguns quintos vazios, dos que eram importados com vinho, e dispô-los a um canto. O Paiva, doido por essas novidades, encarregar-se-ia do resto.

Esse Paiva, de fato, era pau para toda obra. Nascido na Corte, de boa família, sentindo-se fraco do peito - como se dizia então - fora mandado para Santo Amaro, que gozava fama de bom clima. Ali chegando, deu-se bem, tão bem que, depois de restabelecido, desatendeu as cartas paternas e foi se deixando ficar, numa vida alegre e despreocupada que enchia de pasmo a toda gente.

Perguntava-se sempre por que misterioso motivo aquele rapaz bonito, culto, de boa estirpe, talvez rico, aderira à vida provinciana de uma vila. A verdade é que o Paiva conseguiu ser boêmio em Santo Amaro!

Quando alguém repetia essas objeções, nhá Trindinha esboçava um sorriso diabólico. É que a velha mexeriqueira, lá na sua, estabelecia uma certa relação entre a permanência daquele Paiva na localidade e as belas tranças negras da filha da Chica Zabumba.

Talvez fosse exagero, mas o caso é que esse Paiva da Corte, que nada tinha com os Paivas tradicionais da vila, ali passou grande parte da existência, sem voltar à Corte e sem escrever à família que, por sinal, acabou por esquecê-lo.

O Paiva, assim que Paulo Eiró manifestou o seu intento, compartilhou logo da empresa. Obteve tábuas com os amigos e, arremangado, de martelo em punho, construiu um tablado sobre os cascos vazios, deixando o competente buraco no proscênio, sobre o qual foi colocada a caixa-do-ponto.

Depois, com a mesma atividade, ergueu a boca-de-cena, estendeu o pano-de-boca, constituído por duas ricas colchas adamascadas que se abriam lentamente para a direita e a esquerda, mostrando um palco que pouco a pouco surgiu, com trainéis e rompimentos, mascarando as paredes caiadas do salão.

E para completar a apresentação, houve um corre-corre pelas casas das famílias mais importantes da terra, que forneceram panos de lona, vistosas colchas, móveis, arandelas, lustres, tudo quanto se fazia mister numa récita de grande gala. Diante do palco, na noite do espetáculo, seriam colocados os bancos da escola, para receberem o público.

Paulo Eiró, vendo instalado o teatro, procurou organizar o corpo cênico. Os artistas brotavam como orelhas de pau. Primeiro foram os moços e moças da família, depois toda a mocidade santamarense. Disputava-se um lugar no elenco. Mas as meninas eram acanhadas e se perturbavam com a só ideia de que deveriam aparecer em público e repetir as frases de uma comédia. Depois dos primeiros ensaios, muitas amadoras foram dispensadas. Ficou estabelecido que os papéis femininos coubessem, na sua maioria, a amadores imberbes, devidamente caracterizados.

Houve, como era natural, honrosas exceções. Lá estavam, por exemplo, a Laura e a Conceição que, sem explicação plausível, mostraram-se capazes de representar e, quando foi preciso, deram brilho aos seus papéis.

Organizado o corpo cênico, Paulo Eiró pensou no repertório e, para dar a cada amador aquilo que estivesse nas suas forças, ele próprio escreveu as peças. Assim, tornou-se empresário, construtor de teatro, autor, ator, ensaiador, público e crítico...

A estreia foi marcada para 29 de junho de 1855. O programa, impresso, andou de mão em mão durante uma semana. Constava de três comédias em um ato: O Conde de Paragará, Sganarello e Caipira Logrado.

Santo Amaro fervia de curiosidade. Nhá Trindinha andava numa dobadoura. Os artistas ensaiavam os papéis por toda parte. Algumas frases, de tantas vezes repetidas, tornaram-se dichotes populares. E Paulo Eiró, prevendo a inutilidade do seu esforço para conquistar o coração da Musa, foi o único moço melancólico naqueles memoráveis folguedos de junho...

(Do livro "A Vida de Paulo Eiró", em preparação)

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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