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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - A.Schmidt
O jornalista Affonso Schmidt, no Estadão - 13

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Durante muitos anos, o escritor Affonso Schmidt foi também jornalista no jornal paulistano O Estado de São Paulo, onde publicou reportagens, crônicas e até livros inteiros. Esta contribuição foi publicada na página 4 da edição de 31 de agosto de 1938 (material no Acervo Estadão - ortografia atualizada nesta transcrição):

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

Os médicos daquele tempo 

Algum tempo depois, José regressou acompanhado de seu Jeremias. Era um homem baixo, moreno, escanhoado, de olhos miúdos e apertados pelo esforço contínuo de esmiuçar. Falava continuamente, usando os termos do Chernoviz, mesmo quando se dirigia aos leigos.

Nem bem entrou, dirigiu-se à cama onde já se encontrava estendido nhô João Redondo e se pôs a examiná-lo conscienciosamente. Depois, sabendo o enfermo sem sentidos, voltou-se para os circunstantes e abriu os braços num ar de quem se conforma com a vontade divina. Era, sentenciava ele nesse gesto, um caso perdido.

- Vossuncê bem sabe, seu Chagas…

Nessa frase havia uma alusão aos conhecimentos de mestre Chagas que, tendo-se dedicado ao estudo da botânica, mergulhado no mistério das nossas ervas medicinais, tratava com elas as pessoas da família e todos os que o procuravam na esperança de um alívio para seus males.

Seu Jeremias – aliás Jeremias Gloria – tinha grande prática de farmácia e enfermagem. No fundo de sua casa havia um laboratório que mais parecia lura de alquimista. Ali se encontravam almofarizes, bastões de louça, bocais de vidro contendo substâncias coloridas e séries de vidros de tinturas com rótulo escrito à mão. Passava horas inteiras mergulhado na leitura do grosso Chernoviz e fabricava umas famosas pílulas contra as bexigas, pílulas que nhá Trindinha dizia manipuladas com "jasmim do campo".

Tinha, na sua clínica, realizado curas notáveis. Citava-se, entre outros, o caso do Moysés, um pobre diabo que um dia fora exposto à porta de seu Chagas e que, criado por este, não encontrou felicidade no casamento. Certa noite em que Moyses dormia a sono solto, a mulher anavalhou-o, de combinação com o amante. O corte fora profundo, atingindo mesmo a carótida. Acordou ensanguentado e certamente morreria se o médico não fosse chamado a toda pressa.

Junto com o médico chegou o delegado, pois a ocorrência havia alarmado toda a população pacata daquela vila que, durante anos inteiros, não tinha notícia de um só crime de morte. E enquanto o cirurgião tratava da sutura da artéria e de estancar a hemorragia, o delegado ia fazendo o interrogatório. O ferido fazia um grande esforço, mas não conseguia falar. Arregalava os olhos, emitia um sopro, mas as palavras ficavam na garganta já entupida de sangue coagulado. Via-se que o ferido ansiava por dizer alguma coisa. E sua palavra seria utilíssima para a Justiça.

O fato é que dentro de pouco seu Jeremias pediu um alguidar de água morna, lavou as mãos e saiu dizendo.

- Esse escapou…

Dias depois, o delegado voltou à casa de Moysés e perguntou-lhe o que ele procurava dizer na sua aflição.

- Queria dizer que não foi minha mulher que me anavalhou.

- Mas você sabia que foi ela. Até já confessou na prisão…

- Sabia, mas o que eu queria era inocentá-la.

- Por que isso?

- Porque tinha pena dela.

Talvez estivesse nesse seu procedimento um traço da educação recebida em casa do Chagas, incapaz de acusar a quem quer que fosse, até mesmo os criminosos, até mesmo aqueles que porventura lhe quisessem cortar o pescoço a navalha, em pleno sono.

Seu Jeremias tratou de nhô João Redondo. Fê-lo com um devotamento que parecia acima das forças humanas. Passava horas na cabeceira do enfermo. E- segundo o testemunho de nhá Trindinha – chegara mesmo a levar para a casa do Chagas aquele livro grosso ao qual a população de Santo Amaro, em 1847, se referia com reverência.

Naquele tempo havia na vila um terceiro socorro da pobreza. Era seu Adolpho – Adolpho Alves Pinheiro de Paiva – que tratava pela homeopatia. Pessoa de prestígio, mostrava-se sempre pronto a atender aos que o procuravam. Morava no grande sobrado que ainda hoje existe à direita de quem entra em Santo Amaro.

Todas as manhãs dava consulta a meia dúzia de visitantes. Recebia-os na sala térrea, ao lado do corredor, e depois de ouvir as suas queixas corria à estante, tomava de um livro encadernado em couro, inteiramente tomado por marcas feitas com tiras de papel amarelado nas pontas, e se punha a folheá-lo.

-Tenesmos, camaradas de sangue…

Espiava o paciente por cima dos óculos:

- Você comeu alimentos excessivamente gordurosos?

O caipira não compreendia; ele repetia a pergunta em outras palavras.

- Nhor não. Eu inté ando de corpo doce e não como nada.

Fechava o livro e punha-se a olhar para os dizeres da capa: "Guia Homoeopathica dos Fazendeiros e de todas as Classes do Povo…". Voltava a espiar o doente: "…Pelo Doutor Rigel, traduzido da segunda edição francesa por um homoeopatha brasileiro…". Então, como inspirado, receitava.

- Trouxe o vidro?

- Nhor não.

- Então, onde é que você quer levar o remédio? No bolso?

Quando o pobre se dispunha a sair, de ar desolado, seu Adolpho chamava-o de novo e repetia a frase a que já se havia habituado:

- Está bem. Por hoje eu lhe arranjo o vidro, mas outra vez que me apareça aqui de mãos abanando, não leva o medicamento.

- O quê?

- … a mezinha…

Ia ao fundo da sala, tomava um vidro muito limpo, media oito colheradas de água – das de sopa – e depois se debruçava na pequena estante colocada no centro da mesa e se punha a catar vidrinhos amarelos. Contava as gotas com dificuldade, pois as mãos lhe tremiam de emoção sobre o bocal. Para uns receitava "Aconitum nap", ou "Bryonia alba"; para outro era "Rhus doxit" ou "Apis melit". Nos casos mais rebeldes – a frase era do livro – emprega-se "Mercurius viv." E punha-se a repetir em voz alta os nomes dos remédios e as indicações decoradas do texto.

Temperando o remédio, começava o trabalho de explicação das doses, da dieta, da necessidade de voltar à sua casa dentro de alguns dias. Todas as manhãs era aquela maçada que ele levava a cabo com ânimo de santo e de mártir.

Foi o próprio Jeremias quem uma tarde convidou-o a visitar nhô João Redondo.

- Só por descargo de consciência, seu Adolpho…

Seu Adolpho aceitou o convite. Mas quando lá chegou já encontrou o poeta caipira estirado na cama entre quatro velas, com um Crucifixo sobre o peito.

- É isso, vocês chamam o homeopata depois do padre.

(Do livro A vida de Paulo Eiró, em preparo)

Affonso Schmidt

Imagem: reprodução parcial da pagina com a matéria

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