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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA
Narciso de Andrade (8)

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Artigo publicado no suplemento AT Especial do jornal santista A Tribuna, em 1 de fevereiro de 1992, página 7:
 

Ilustração do chargista Seri, publicada com a matéria

A aventura da poesia em Santos

Narciso de Andrade (*)

A existência de uma forte corrente de poesia que flui através do tempo e permanece como uma das marcas desta cidade é irrefutável. Nem a criação de estabelecimentos de ensino superior fechados em si mesmos, pouco atentos à história e ambiência do cais, conseguiu calar o som do verbo em poesia que canta sobre cada recanto desta sonora ilha-cidade. Virá do mar esse destino, das mensagens trazidas nos ventos que coam distâncias para depositar o resíduo de suas canções nos ouvidos dos poetas; do mar, dos ventos, das circunstâncias iniciais, da tradição de bravura e resistência, da ressonância dos poemas no ambiente humano circundante, restrito embora.

Difícil, explicar o que seja a poesia; difícil definir as suas origens em relação a determinado lugar. Mas que este lugar, posto à beira do Atlântico, tem a marca da poesia, isSo tem. E não são os seus filhos apenas quem o diz: a história da literatura brasileira está timbrada pela presença de nossos poetas maiores.

O feroz crítico Geraldo Ferraz, que sabia das coisas, ao analisar a Rosa Desfolhada da santistíssima Zezinha Rezende: "Há uma tradição de poesia em Santos e não será demais remontá-la ao próprio Patriarca e não é necessário ir tão longe. As notas que Vicente de Carvalho e Martins Fontes feriram com seu estro as águas atlânticas, não deixaram ainda de fremir na literatura brasileira". Nessa mesma página de crítica, Geraldo se refere delicadamente à "tradição secular que fez de Santos um ninho de grandes cantores".

Considerado impiedoso nas suas críticas, Geraldo Ferraz não era homem de fazer concessões. Não obstante, não pôde deixar de considerar a cidade como um ninho de granes cantores. E olhem que, nesse tempo, ele andava às turras com a chamada intelectualidade local, esse grupo inefável de respeitáveis criaturas que ainda pensavam que a literatura é o sorriso da sociedade e, depois do parnasianismo, nada mais se fez de bom na poesia brasileira.

Geraldo lutava, como lutou Cassiano Nunes, por estabelecer na ambiência local um parâmetro mais avançado na recepção, fruição e análise da criação artístico-literária, instigando à busca pela contemporaneidade como condição primeira de permanência. O processo de renovação, por um movimento peculiar da inteligência, constitui a ponte por onde circulam as idéias novas que irão se encontrar com as conquistas permanentes do pensamento. A modernidade não importa, nem a pós-modernidade: importa esse movimento de pesquisa, de procura contínua, e esse encontro do novo com o perene.

O fluxo da poesia em Santos é perene porque é natural e vem sendo renovado no correr do tempo. Nem toda a camada de poesia local é de boa qualidade; contudo, a par de um reacionarismo ilógico de certos grupos, existem aqueles que não aceitam e se insubordinam contra a estagnação buscando atualizar-se e manter-se a par das conquistas da contemporaneidade. Não é possível cantar a mesma cantiga no mesmo tom, sempre; nem a voz é a mesma, nem o sentido permanece íntegro. Isso como vale para a música, as artes plásticas, artes cênicas, e assim por diante.

As minorias esclarecidas são mais importantes na democracia das artes do que as maiorias inertes. A inércia não faz parte do sistema das idéias sempre em ebulição face ao fato novo, gerando a obra que marca, define, caracteriza e projeta o momento. Mestre Antônio Cândido, em Formação da Literatura Brasileira, com sua aguda visão crítica, destaca e analisa os momentos decisivos do surgimento e desenvolvimento da literatura brasileira. Santos também teve seus momentos de maior importância e projeção que, nas devidas proporções, merecem ser relembrados para uma visão melhor de nossa paisagem literária.

Lá por volta de 1915/1920 aqui viveram e conviveram Afonso Schmidt, Fábio Montenegro, Paulo Gonçalves, Galeão Coutinho, Álvaro Augusto Lopes, Cleómenes Campos, Menotti Del Pichia, Ribeiro Couto entre outros. Lavraram o mesmo solo trabalhado por Vicente de Carvalho e Martins Fontes. A maioria veio a se destacar também no jornalismo, como costumava acontecer naqueles tempos, quando era intensa a interação literatura-jornalismo. Os conceitos eram outros, o exercício da atividade literária era uma aventura; o traço da vida boêmia aproximava e unia em um mesmo grupo escritores e jornalistas.

Em fins da década de 30, começo dos anos 40, acontece o pesquisismo. Um grupo de escritores que levavam a sério a literatura e aqui viviam, passa a se reunir para discutir temas ligados à atividade literária, procedendo a uma revisão profunda de conceitos. As reuniões se realizavam aos domingos porque nos outros dias da semana todos tinham que trabalhar; daí a frase famosa do crítico Cassiano Nunes: "o domingo é o nosso dia útil". Como se vê, já não mais o timbre de boemia de outros tempos; a literatura encarada a sério. Foi com essa gente que aprendi o absoluto respeito à criação do artista, do escritor, do poeta, geralmente tão mal compreendidos. Do grupo dos pesquisistas, aí estão, em plena atividade, Cassiano Nunes e Francisco de Marchi.

Mais recentemente, anos 60/70, com projeção até nossos dias, a formação do Grupo Picaré, constituído por jovens poetas da denominada geração mimeógrafo. Publicaram livros, promoveram passeatas, ergueram varais de poesia que, aos domingos, ainda se realizam, sob a batuta do poeta Valdir Alvarenga, a manter em circulação, há anos, heroicamente, a revista de poesia Mirante. Outro poeta, Jair de Santos Freitas, autor de Rota Rota, conduz com eficiência os destinos da revista Artéria, publicação de alto nível patrocinada, sem intromissões restritivas, pela Prefeitura Municipal.

A gente pode caminhar na vida pelos caminhos da ordem ou da aventura. Quem busca segurança e certeza segue o caminho das ordenações rígidas; outro é o caminho da arte e da verdadeira literatura. O poeta autêntico anda na contramão da vida, fiel a si mesmo, às suas idéias, numa exemplar aventura humana despida de ambições menores e plena de dignidade.

Aqui se coloca a figura humana de Roldão Mendes Rosa, que viveu em clima de constante e ardente testemunho da verdade maior contida em sua mensagem poética. Viveu assim e assim cumpriu o seu tempo de poesia de perene beleza. Com discrição, e fiel harmonia a um ideal preservado desde muito cedo - era menino e já fazia versos e se expunha nas páginas da imprensa, espaço único ocupado por sua obra no tempo de vida. Sem vaidades, recusando convites maiores, porque desde sempre soube identificar em si mesmo a marca de poeta. Esta marca defendida com fidelidade absoluta em qualquer circunstância, distinguia-o nos espaços citadinos onde convivemos durante mais de 40 anos. Nunca teve receio nem qualquer constrangimento em ser reconhecido como poeta. Porque, de fato, era o poeta.

Devo parar: antes, a lembrança para o lançamento de Poemas do Não e da Noite, que vem sendo noticiado por este jornal. É a poesia santista prosseguindo através do tempo. Em verdade e beleza.

(*) Narciso de Andrade é advogado e poeta.

Capa da revista alternativa santista Picaré nº 4, de junho/julho de 1992

Imagem: acervo de Novo Milênio

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