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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - P. MARCOS
Plínio Marcos (9)

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Escritor "maldito", teatrólogo, Plínio Marcos nasceu em Santos em 29/9/1935 e morreu na capital paulista em 19/11/1999, um ano depois de receber o título de Cidadão Emérito da Câmara Municipal de Santos. Amigo de Patrícia Galvão, com quem trabalhou junto na peça Barrela, Plínio tem um marco de homenagem no Centro de Cultura de Santos, que aliás recebeu o nome daquela escritora e jornalista. Dez anos após seu falecimento, o semanário santista Jornal da Orla republicou em seu site na Internet as crônicas de Plínio Marcos que haviam saído na edição impressa desse jornal na década de 1990:

Janela Santista - Plínio Marcos
O manco

O Manco era gamado em futebol. O único papo que ele sabia levar era a respeito de bola. Dispensava quás-quás-quás sobre mulher, fumo e os cambaus. Não queria nem saber. Se o assunto era bola, aí, sim, ele se ligava. E não dava colher de chá, queria saber mais do que todo mundo. Só que nunca tinha vez.., era manco, não podia bater na redonda.., isso entornava o caldo. Dava apenas pra torcer, e na bronca. Quando o bate-boca engrossava, sempre alguém saía pela tangente:

- Tu não entende bulhufas. Nunca foi de bola, é perneta. Só sabe cartear. De fora é mole, no campo é que se pode ver.

Aí o Manco se fechava em copas, se enrustia. Mas de cuca fundida, todo picado de raiva, a cachola só batendo num jeito de calar a boca da curriola que não botava fé nele. Matutava, matutava e sempre batia com a fuça na parede.

Entrava pra tudo quanto era diretoria de time de bairro, com a intenção de chegar a escalador de time. Mas não dava pedal: a negada só queria o Manco pra cobrar recibo. Ele costumava segurar as pontas como cobrador uns tempos e depois, aos poucos, ia se assanhando, metendo o bedelho na distribuição de camisa e tal e coisa e coisa e lousa. Logo estourava um salseiro, e era sempre o Manco que ia a escanteio.

Foi numa dessas que ele se tocou que só ia poder botar banca quando fosse o dono do time. Partiu pro pau. Devagar, nas encolhas, sem se abrir com ninguém.

Um dia o Manco apareceu com um jogo de camisas. Novinhas. A moçada desconfiou: o Manco sempre foi pé-de-chinelo, nunca teve grana; vivia mal paca, com um emprego mixuruca, salário-mínimo e olhe lá. Sem dar pala, o Manco azucrinou o pessoal:

- Com essas camisas só joga cobra.

A negada xeretou, o Manco apareceu com um saco de chuteiras e meias; logo surgiram os calções. O pessoal gozou a fuça do bruto:

- Vai jogar sozinho? Camisa não ganha jogo...

O Manco tirava de letra. Encostava nos bons de bola, cochichava e deixava andar.

Não tardou, o Libertador estava sem centroavante, o Flor do Norte sem goleiro, o Beira-mar sem ponta-esquerda, o Bacia sem seus trunfos, o Santos Dumont sem meio time. Então, o Manco chegou ao boteco onde o Santa Cruz tinha tabuleta e botou pra quebrar:

- Vamos lá, valer um caneco?

Em campo, o time do Manco entrutou o Santa Cruz: cinco a zero. E não parou mais, foi pegando os timões da várzea santista e dando pau. Aurora, Aquário, Praia, Vasquinho, Santa Cecília fizeram fila e entraram no couro. Com um time que só tinha bolão, o Manco, mostrando ser grande escalador, ganhou fama de cara que entendia. O time era uma seleção! Virou honra jogar contra o Manco e seus cupinchas; jogar no quadro dele era a glória. Além do mais, tinha come-quieto. tinha disso: o Manco pagava bicho de vitória. Com essas e outras, o timão ficou um ano invicto.

Um ano sem perder! Um ano inteirinho, jogando todo domingo, com sol ou chuva. Pra comemorar o feito, o Manco arranjou um festival. Enfeitou o campo com bandeirinhas, comprou uma pilha de taças e convidou todos os melhores times da várzea pra se pegarem. Pra prova de honra contra seu time, convidou o misto do Jabaquara.

Foi lenha. No dia do festival, os leões se comeram. Quando chegou a hora do pega-pra-capar, time do Manco contra o Misto Jabaquara, teve um esquinapo. Mal o time do Manco pisou em campo, a enorme torcida que juntou pra ver o racha se assustou: do outro lado do campo, a polícia entrou com tudo, pra valer. Só o Manco entendeu; quis cair fora, mas não deu: foi em cana. Nem teve jogo.

A moçada foi pra delegacia buscar o dono do time, mas não teve arrego. O delerusca explicou:

- A gente estava na captura desse manco há muito tempo. Ele é ladrão. Só hoje pudemos ferrar o lalau.

Na prensa, o Manco se entregou, justificando:

- Poxa, como é que eu ia manter o time?

Janela Santista - Plínio Marcos
O pio do Macuco

Com a vida custando os olhos da cara do jeito que está, tem gente se agarrando em fio desencapado, matando cachorro a grito, jacaré a beliscão, fazendo qualquer negócio pra defender o feijão de cada dia. E isso já faz tempo... Por isso, não causa espanto a profissão escamosa do Onorino: ele vivia de matar macuco. Todo santo dia se metia nas matas de Mangaratiba, ajudando a acabar com a espécie dessa ave para garantir a continuação da sua — ou seja, para sustentar mulher e quatro filhos.

Outrora paraíso de macucos, inhaúmas, jacus, jaguatiricas e outros bichos, as matas de Mangaratiba eram alvo também de esportistas, caçadores de fim de semana. Como Antoniel da Cruz e Adolfo de Castro, gente bem plantada dentro da sociedade — mas nem tanto que desse pra caçar leão na África. Antoniel e Adolfo se enfeitavam de caçadores e metiam as fuças nas matas de Mangaratiba, com mochilas de badulaques: facão, espingarda de grosso calibre, própria para derrubar elefante; repelente contra inseto; cerveja em lata; e um apito de chamar macuco.

Um dia, parece até que Antoniel e Adolfo combinaram horário com o Onorino. Entraram na mata no mesmo instante, só que por lados opostos. Os dois caçadores de araque lamentavam o cano que o Nego Leléu deu neles; o Leléu, que não era otário, prometeu que ia, mas logo se mancou que seu papel na fita seria o mesmo que crioulo em filme de Tarzã e não compareceu; não ia passar o dia carregando o saco dos caçadores pra virar isca de onça. Nem por isso os otários se acanharam. As primeiras horas da matina, se enfurnaram mata adentro.

Antoniel e Adolfo foram logo assoprando o assobio de fêmea de macuco pra atrair macuco macho. Do outro lado, Onorino avançava também, piando como fêmea de macuco para atrair macuco macho. Mas, do jeito que andam matando bicho no Brasil; daqui a pouco só vai ter caça noturna, na Praça da República e afins... Os caçadores bateram perna pra chuchu nas matas de Mangaratiba, com pio de fêmea de macuco e tudo; e não apareceu nada. Nem do lado do Onorino, nem do lado de Antoniel e Adolfo. Mas ninguém afinou; os três foram levando.

Chegaram à serra do Rubião. Sempre piando, subiram a serra. Onorino de um lado, movido pela necessidade; Antoniel e Adolfo do outro, movidos pela vaidade. Ninguém recuou. Ninguém queria sair de mãos vazias. Se o caçador profissional chegasse em seu mocó sem pelo menos um macuquinho filhote, teria que agüentar a filharada esperneando de fome. Se os caçadores esportistas chegassem em casa sem pelo menos um macuquinho filhote, teriam que agüentar uma gozação danada. Nesse embalo, os três iam subindo a serra do Rubião nas matas da Mangaratiba.

Gente de fibra estava ali: subiam assoprando o pio de macuco fêmea pra chamar macuco macho sem perder o fôlego. Nessa toada, chegaram quase ao pico, Onorino de um lado, Antoniel e Adolfo do outro. Estavam próximos quando o Onorino escutou o piado do apito dos dois caçadores. Saudou Ogum, santo guerreiro da floresta, e caprichou no assobio de macuco fêmea.

Os dois caçadores se tocaram, ligaram as antenas, firmaram o pensamento e ouviram o piado que o Onorino soltava. Retumbaram de alegria. Silenciosamente, imaginando ser um macuco dos grandes, os dois se deitaram no chão e foram rastejando pelo mato, rumo ao som que o Onorino assobiava, macuco fêmea chamando macuco macho. De vez em quando, um dos dois dava um assopro no apito de macuco fêmea, esperavam a resposta e avançavam.

Com mais experiência, o Onorino estranhou que a resposta ao seu pio de fêmea chamando macho fosse outro pio de fêmea. Mas, como sempre tinha idéias de jerico, falou consigo mesmo: "Tamos roubado... Até no meio dos bichos tá faltando macho. Vê se pode, macuco fêmea responder chamado de macuco fêmea. Mas já que tá aí, deixa chegar".

Onorino armou a espingarda de chumbo grosso; foi piando e armando a mira na direção em que imaginava que a caça ia aparecer. Não estava enganado. Arrastando-se como cobra, Antoniel e Adolfo foram se chegando. E, aí, não prestou. O ouvido apurado do Onorino escutou o barulho de galho quebrando; escutou o mato espalhando pelo movimento dos corpos dos outros dois caçadores e se assombrou.

Pelo esparramo, imaginou que uma jaguatirica se aproximava. Não fez questão de conferir. Deu no gatilho e mandou bala. Onorino acertou em cheio nos dois caçadores. Adolfo foi direto falar com Deus. Antoniel, mais feliz, foi guindado para um hospital, todo chamuscado. Onorino vai ter que gastar muita saliva pra rachar essa muimunha, até se conformar que não tem mais macuco nas matas de Mangaratiba. O homem acabou com a ave. E, pelo jeito, pra se divertirem, os homens vão se acabar entre si.
Janela Santista - Plínio Marcos
O tarô do ano novo

Na virada do ano sempre me aparece gente de todo tipo pedindo previsões para o futuro. Eles acham que cada destino - das nações, das cidades, dos povos - está inscrito nesse grande livro que é o tarô. Com paciência, explico que não existe jeito nem maneira de se adivinhar o futuro; existe, sim, uma lei fatal que se baseia em causas e efeitos: a ação de hoje certamente terá conseqüências amanhã - a regra vale tanto para um país quanto para um indivíduo. Aí as pessoas querem saber para que serve o tarô. Mais uma vez, explico: as lâminas do tarô refletem o inconsciente coletivo e, portanto, o inconsciente do consulente é projetado nos arcanos do baralho.

Alguns se satisfazem com a resposta, outros passam a se interessar pelos mistérios das cartas, e há os que insistem que tem um sujeito ou uma fulana aqui ou ali que adivinha o futuro lendo o tarô. Eu não me presto a isso. Eu, que lido com artes e magias há mais de 40 anos, por essa luz que me ilumina, garanto: esses adivinhos são mistificadores, truqueiros que, sem nenhuma cerimônia, trapaceiam os incautos que se sentem desnorteados.

Nos dias que correm, as aflições são tantas... Vem gente de todos os cantos pedindo uma esperança. Neste final de ano, participei com meu tarô do "Projeto Mundão", do Sesc de São Paulo. Numa noite, atendi 120 pessoas. Foi uma batalha durante quatro horas sem parar. Todos queriam saber as coisas do campo do amor ou se iam continuar trabalhando. Na grande maioria, a preocupação com o emprego era desesperadora. Dava pena. Esse é um medo realmente assombroso no nosso tempo. O que o tarô pode dizer? Nem é preciso ir ao livro mágico para prever... Analisando os fatos que a imprensa noticia, está escancarado um futuro encardido para o brasileiro que vive de seu suor.

O jogo é duro. As pessoas querem um milagre para resolver a sorte. Pessoalmente ou pelos meios de comunicação. Jornais, emissoras de rádio e de televisão estão repletas de previsões.

Tive um grande amigo, o Omar Cardoso, que fazia um programa de rádio na base da astrologia transmitindo para mais de quinhentas emissoras pelo país afora. A saída do Ornar era encher o balão da freguesia: "para você que nasceu em Libra, o dia vai ser ótimo no amor e nos negócios; saúde plena". Depois de uma montanha de anúncios, ele voltava: "Para você que nasceu em Capricórnio, dia lindo, bom para o amor; tudo certo no trabalho e também com a saúde". Urna vez, questionei:

-Todo dia você diz para todos os signos que está tudo bem. E aí?

- Que é que tem? Eu não vendo futuro, vendo esperança - explicou. Com certeza, por isso fazia tanto sucesso com seu horóscopo.

Eu conto essa história porque é isso que eu sei fazer, contar história. Como a do caso de um pai-de-santo que, quando procurado por grávidas querendo saber o sexo da criança, fechava os olhos e não vacilava: "Vai ter menina". Depois que a freguesa saía, ele anotava numa caderneta o nome dela e escrevia: menino. Quando a mulher voltava para reclamar o erro, ele mostrava a cadernetinha e ganhava a parada. Tem essas coisas...

Nesses dias, veio a mim urna senhora que queria que eu lhe dissesse como seria o ano do coelho para ela. Eu não sabia nem que tinha ano do coelho. A mulher ficou furiosa.

Veio outra querendo que eu explicasse como seria o ano do louco. Haja saco! Cada corrente inventa um nome pra cada ano. Se eu quisesse, poderia prever sem erro; basta se ater à lei fatal de causas e efeitos que rege todas as coisas, mas não faço esse papel.

Já o Fernando Henrique Cardoso não vacila, fez uma previsão leviana para 99 que não tá com jeito de acertar; político faz muita graça e diz muita bobagem. Lendo os jornais, a gente acerta. Mas, não se trata de adivinhação. E só uma questão de perceber o que já está escancarado. Não dá outra: quem planta vento, colhe tempestade.
Janela Santista - Plínio Marcos
O telepata

Trabalhávamos num show de um cabaré escroto na zona portuária de Santos. Eu, um contador de histórias parangolé, bico-de-pato. rosca-empanada, quas-quas, bolacha, cachaça. cocada, ou-vai-ou-racha, ou quebra-a-tampa-da-caixa Ele, um telepata. Pra nós dois, aquela vida era um martírio. Imundície.

Por que a gente continuava lá? Sei não. Talvez pra cumprir com grandeza a miséria que nos coube por destino. O que sei é que, quando acabava minha parte, eu ia prum boteco próximo e bebia todas - até chumbo derretido, se servissem. Logo depois, vinha o telepata. Estava sempre pior do que eu. Já chegava se lamentando, não fazia cerimônia. Tudo o que dizia vinha do fundo da alma. Bebia, bebia e ia se abrindo:

- Pois é, palhaço. Eu sou telepata. Juro que sou. Eu recebo mensagens. Podes crer.

Eu ficava quieto. Respeitava a dor do bruto, que era grande. E, depois, a gente aprende que cada louco tem a sua mania. Aquele ali queria ser telepata. Ficava longo tempo em silêncio; a expressão ia mudando, passava da tristeza à revolta. As vezes, afivelava na cara um máscara de conformismo e de repente se alterava e explodia:

- Que merda! Que merda! Sou um telepata! Devia ser respeitado, incentivado a desenvolver esse dom. Mas aqui nesta merda só recebo esculacho. Ninguém dá valor.

Noite após noite, ele vestia um smoking velho e sujo, uma capa roxa brilhante, um turbante oriental com uma pedra vermelha no meio da testa, e entrava na pista da espelunca acompanhado de sua parceira, Helen Morena, que usava um biquíni dourado. Ela colocava uma venda preta nos olhos dele e ia pro meio do público. Ai começava a folia. Passavam a mão na bunda da pobre mulher, davam beliscão nas coxas. Ela estrilava, o público ria. E provocava:

- Adivinha o que eu quero, gostosona...

E eu? Não é difícil, nem precisa perguntar pro otário...

Era um massacre. Tinha noite que eles não conseguiam completar o número. O telepata xingava o público e saía do palco sob vaias. Para Helen era ainda mais difícil. Os cafajestes a agarravam e, se os seguranças não agissem rápido, com certeza ela seria violentada. Para o dono do cabaré um grande sucesso. Para o telepata, a suprema humilhação. Só mesmo indo direto pro boteco. E dá-lhe desabafo:

- Palhaço, este é um país de filhos-da-puta. Em qualquer lugar do mundo... olha, não é conversa... No tempo da guerra, teve um tal de Zener que inventou um baralho para treinar telepatas. Simples, muito simples: uma estrela, uma esfera, um quadrado, uma cruz, umas ondas... E, lá na escola, os aprendizes de telepata eram treinados com as maiores regalias: bolsa de estudo, comida todo dia... Mole... Tem até hoje essa escola só pra desenvolver o talento do aprendiz de telepata. Não é como aqui, que um sujeito como eu é desprezado.

Pombas, tenho que viver enganando. Um cara com tanta aptidão ser forçado a abandonar sua arte, sua magia, e virar um charlatão, obrigado a depender de uma puta como essa Helen Morena. Isso me assusta, palhaço. Estou na mão da putona. Se ela quiser me sacanear, é só inverter a combinação.., aí não acerto nada.

E caía num estado de depressão absoluta. Ficava bebendo, quieto. Eu ia pra lá e pra cá, levando um papo com uma mulher, com outra, com uns amigos, contando umas piadas... O pessoal ria, meu humor melhorava. Mas de repente o telepata me chamava:

- Palhaço, chega mais.

Eu ficava de saco cheio de ter que aturar a figura. Mas ia, era colega - sempre fui solidário. Toda hora ele vinha com uma novidade.

- Olha, palhaço... Sabe que no tempo da guerra a marinha dos Estados Unidos fez uma experiência de entortar o patuá? Pegaram dois telepatas; trancaram um no porão de um submarino e o outro num quartel, durante três meses. Deram um baralho Zener para cada um. Todos os dias, numa hora combinada, o telepata que estava na terra passava uma mensagem pro que estava no fundo do mar. Era só a mentalização de uma carta - uma estrela, uma esfera, um quadrado, uma cruz, umas ondas... Eles iam marcando o dia, pra conferirem a quantidade de acertos no final da experiência... Tá vendo como as maiores potências do mundo se ligam em telepatia? Aqui, um cara como eu... tô aí, jogado...

- Essa experiência americana deu certo? - dei trela.

- Sei lá. palhaço, eles enrustem o resultado. Os russos tinham porradas de espiões... americano não é bobo de ficar revelando segredos tão importantes. Os russos também faziam experiências do tipo, mas aqui, ó, que revelaram alguma coisa. É isso, palhaço, a telepatia é a comunicação do futuro. Quando os ETs chegarem à Terra...

- Corta essa, corta! - protestei - Não vai ser um otário de cabaré de beira de cais...

- Porra, palhaço... Deixa. Esquece. Eu tenho é que falar comigo mesmo. Só pinta idiota na parada.

Eu tinha vontade de mandar o bruto pra... Mas dava desconto. Ele resmungava um pouco, pagava a conta e ia embora.

Numa noite, ele chegou no boteco pior do que nunca. Pediu um vinho, uma coisa ruim que quando caía no mármore manchava. Foi bebendo e xingando:

- Aquela vagabunda! Aquela porca da Helen Morena! Vagabunda. aprontou comigo!

- O que aconteceu? - perguntei por perguntar.

- O que aconteceu, palhaço? Ela me traiu!

- Mas desde quando você liga pra mulher?

- Não ligo. E se ligasse, não ia ser pruma vagabunda dessa. Ela me traiu passando o nosso número prum cafetãozinho de puta pobre. A ordinária e o canalha já estão arrumando um cabaré pra se apresentarem. O pilantra até mandou fazer uma roupa igual à minha. Um chucro e uma vagabunda...

- Mas nunca vão tirar o seu lugar, você sabe o que faz - eu quis consolar.

- Isso é verdade, palhaço. Juro, eu sou telepata. Não toda hora... mas de repente... minha mente... Não é quando eu quero... mas de repente... Agora o sacana e a piranha vão usar meus truques. Até eu arrumar uma mulher nova, ensinar... Não, palhaço, não agüento mais... Estou velho: sessenta e cinco anos, quarenta de ofício. Não agüento mais ensaiar outra mulher... que logo vai me deixar. Que merda de vida, que merda!

Saí de perto. Ele nem notou. Bebeu até o último gole daquele vinho nojento e foi embora.

No dia seguinte, o rapaz do hoteleco onde ele morava chamou a polícia e avisou a gente: O telepata tomou guaraná com formicida. Deixou um bilhete: "A Helen Morena me abandonou. Bom pra ela. Mas eu não tenho mais saco pra ficar ensaiando, ensaiando, ensaiando outra puta pro meu número de telepatia. Adeus".

Janela Santista - Plínio Marcos
O último tocador de tambu

Nas quebradas do mundaréu, bem onde o vento encosta o lixo e as pragas botam os ovos, mexe e vira havia festa de tambu. Tambu é uma dança de umbigada. Homens de um lado, mulheres do outro, o cantador improvisa uns versos no meio da roda; canta primeiro pras mulheres, depois para os homens, até todos poderem cantar juntos; então o cantador se afasta e, batendo palmas no ritmo, homens e mulheres vão se aproximando até darem a umbigada.

Três instrumentos entram no tambu: pau-oco ou sete léguas, um pau de sete metros com um couro esticado na ponta capaz de ecoar na mata por sete léguas; quingenguê, uma espécie de atabaque pequeno; e chocalho.

O Almofadão, crioulo cheio de truques — gostava de se apresentar bem trajado, com roupa branca, de um branco de anúncio de televisão, dai o apelido —, era um grande puxador de tambu. Mandava ver, dava um recado sentido. E todos o respeitavam. Não havia batuqueiro que dispensasse as festas onde o Almofadão cantava e batia tambu. Por essas e outras, o coroa reinava.

E seu filho, o Almofadinha, desde pequeno dava as fuças nesse pagode, dizendo no pé como príncipe que era. Por ser pivete, abafava, O pai não descuidava, levava o moleque num cortado. Antes de saírem, o velho Almofadão examinava o filho de cima a baixo, pra ver se estava tudo como mandava o figurino.

Quando retornavam das festanças, conferia mais uma vez seu menino; se ele não estivesse coberto de poeira, tal e qual um tatu, levava cascudo, pois era sinal de que não tinha se espalhado como devia um bom batuqueiro.

Assim, o Almofadinha foi crescendo e ganhando nome no seu pedaço. O velho Almofadão se sentia tranqüilo pra morrer. Sabia que, quando fosse falar com Deus, o tambu não iria pro beleléu. Seu filho amado estaria firme para manter o axé da família, remando o barco mesmo contra a maré.

E salvaria o tambu apesar da onda da música estrangeira, que já naquele tempo era só o que se escutava nos veículos de Comunicação. Foi por essa fé que, no dia em que seu coração rateou, o velho Almofadão nem se afobou. Deitou, fechou os olhos e, na proteção dos seus orixás, se apagou.

Pro Almofadinha, perder o pai — antes de mais nada, urna companheirão de batuque —, foi um golpe de entortar o patuá. Ficou jururu. Mas deu descanso de alça pro Almofadão com todas as honras de mestre batuqueiro. Fez o couro do cabrito gemer; chorou no quingenguê até botarem terra em cima da carcaça do velho Almofadão. E, diante da cova rasa que coube ao Almofadão, o Almofadinha jurou, pela luz que o iluminava, que seria um tocador de tambu até seu último suspiro. Se tivesse filhos, passaria a eles os macetes do negócio.

Porém (sempre tem um porém), logo a mãe do Almofadinha esticou as canelas, com saudade do marido. Ao ficar sozinho, o Almofadinha, desacorçoado naquele lugar onde tudo lembrava seus mortos queridos, juntou seus trapinhos, seu quingenguê e mais uns badulaques e se arrancou. Saiu sem rumo, à procura de um mocó pra começar nova vida. Nessas andanças, o Almofadinha teve que bater perna à toa pelos caminhos esquisitos do roçado do bom Deus. Pra se escorar, resolveu bater seu quingenguê nos botequins, esperando que algum bobalhão, entusiasmado com seu som, lhe adiantasse alguma graninha. Qual o quê...

Foi tocar e causar espanto: ninguém entendeu. As orelhas viciadas em ritmos estrangeiros estranharam aquela batida. De início, pensaram que o Almofadinha era africano; só quando abriu o bico, viram que era brasileiro. E aí gozaram o desgraçado às baldas. Encabulado, o Almofadinha puxou uns versos pra provocar as moças, versos de sucesso garantido no seu antigo pedaço: Campinas, Tietê Pederneiras/Aqui em São Paulo não tem moça batuqueira. Coitado! Tomou a maior vaia da paróquia e, depois da vaia, esculachos mil.

Invocado com o passa-fora, o Almofadinha meteu o galho dentro e se retirou. Foi matutar no seu canto.

Por acaso, escutou uma música tocando num rádio. Estrangeira, naturalmente. Mas o Almofadinha não se mancou, era música e era isso o que importava. Dono de um ouvido privilegiado, prestou atenção e morou no ritmo. Achou uma sopa. Bateu no seu quingenguê e não teve chibu. Na sua bobeira, até achou legal.

Continuou tocando e não demorou pra se sentir à vontade. Demorou menos ainda pra aparecer um freguês todo animado com a batida do Almofadinha, anunciando com banca de entendido: "Poxa, bicho! Tu é o máximo nessa tumbadora. Chega mais".

O Almofadinha se aproximou, entrou de sola com o som que pegou de orelhada. Só recebeu elogio: "Bárbaro’, "Supermodermo", "Demais", "O Bicho curte legal", "E bidu mesmo", animava a galera.

E, engabelado, o Almofadinha entrou de gaiato na pala da moçada. Esqueceu rápido sua origem, seu velho pai, o Almofadão companheiro e amigo. Aprendeu as milongas da nova curriola, os ritmos das rádios. Foi convidado para fazer parte de um conjunto de garotões cabeludos. Aceitou. E passou a chiar coisas de lascar, com a boca mole de mascar chiclete:

— Sem essa, bicho! Tambu já era.

Deve fazer o velho Almofadão se remexer na cova de tanto desgosto.

* Texto originalmente publicado na edição de 12/09/1999.

Janela Santista - Plínio Marcos
Paixão de Cristo em Mafuá

Nas comemorações da Semana Santa eu sempre sinto uma saudade imensa dos tempos em que era artista de circo. Nessa época, embaixo de qualquer lona, do melhor pavilhão ao pior mafuá, todos os circos montavam a Paixão de Cristo. Era um agito.

Produtores saíam atrás do figurino; as roupas, armaduras de soldados romanos, eram alugadas na Casa Teatral. Empresários saíam por todos os lados em busca de atores para os papéis da peça; eles iam sobretudo no Café dos Artistas, que ficava e ainda fica ali no Largo do Paissandu, centro velho de São Paulo, e acertavam os contratos. Ali encostava uma multidão, procurando e sendo procurada.

- Preciso de um Pilatos, de um Pedro, de um José de Arimatéia e de uma Madalena.
- Eu faço Judas e só vou com minha mulher, que faz a Maria.
- Maria eu já fechei com a dona Aurora; todo ano ela trabalha comigo. E Judas eu já tenho. Só preciso de Pilatos, Pedro, José e Madalena.

E todo mundo ia se arrumando aqui e ali. No início, os empresários iam escolhendo os melhores atores e pagavam bons cachês. Depois, o trato era feito com qualquer canastrão, a preço baixo. Só não era possível descuidar do ponto, que precisava ser bom para garantir o texto.

Mas havia muitos artistas que sabiam o texto de cor. A Ana Rosa, hoje estrela da tevê colorida, nos seus tempos de circo sabia a peça de fio a pavio. Era um assombro:

"Some o sol na montanha, não tarda a noite a chegar"... A Aninha sabia fala por fala, sabia todas as vírgulas da Paixão de Cristo. Era linda e é linda. Tinha enorme talento; e por essas e outras ela está aí abafando na novela da Globo. Outras desse naipe eram a Vic Militelo, a Júlia Faia, a Biloca Viana. Mas como a Ana Rosa não houve igual. A Aninha fez todos os papéis. Até de Pedro ela entrou; colou barba, pôs cabeleira e não deu vacilo.

Entre os homens também havia os que sabiam o texto de cor. Porém (e sempre tem um porém), era gente que recitava a Paixão em bar, depois bebia e, na hora do espetáculo, esquecia o texto - e, pior ainda, não escutava o ponto.

Mas deixa isso de lado. O que quero contar e o que pesa na balança é que uma vez, num mafuá armado no alto de uma pirambeira, o circo estava apinhado, abarrotado a três de alto, com gente se agarrando pelos picos para não escorrer pelos ralos. Os artistas dando tudo o que podiam, fazendo das tripas coração.

Entre um ataque e outro, a turma auxiliar se mexia. Num dado momento, estavam amarrando o Jesus na cruz - é bom que se diga, o Nazareno estava meio bêbado - e a cruz balançava a torto e a direito. Prende aqui, firma ali, segura acolá e tal e coisa e coisas e lousas, até que conseguiram, já atrasados para abrir o pano. Nisso passa um contra-regra, também meio bêbado, fumando.

Imagine a cena! O Jesus pede uma traga, o rapaz mete o cigarro na boca do Cristo. O sinal toca, a cortina começa a abrir e todos saem, só os artistas ficam. O Jesus tenta cuspir o cigarro, mas a bagana gruda no verniz da barba e fica presa nos lábios. O Jesus tenta soltar o cigarro com a língua e o movimento faz a cruz balançar. Falar ele não podia, pra não chamar a atenção do público - que está emocionado, pois nunca jamais viu um Cristo com tamanha expressão de dor. E o cigarro vai queimando os lábios do Nazareno.

Chorando, Maria e as outras não percebem o drama que se dá lá no alto da cruz. Com grande esforço, o Jesus consegue desgrudar o cigarro da boca. O alívio não dura uma fração de segundo sequer, pois a bituca acesa cai bem dentro da tanga do Cristo. Naquele monte de pano enrolado, o cigarro só podia queimar pra valer. Bem no pinto do Jesus! A dor dói, isso não é mole nem pra Jesus. Ele não resiste e berra:

- Fogo! Fogo!

As pessoas da platéia também berraram "Fogo"! e saíram em disparada. As Marias todas se mandaram correndo do palco. Até o bom ladrão fugiu da cruz. Só o mau ladrão sacou que o fogo era na tanga do Cristo. Conseguiu apagar o incêndio, Mas o pinto do Jesus já tinha virado um carvãozinho.
Janela Santista - Plínio Marcos
Perdeu o melhor

Santos é urna cidade pródiga em grandes artistas, não canso de dizer. E não canso de citar o genial músico Gilberto Mendes, compositor respeitado no mundo inteiro. Glorioso incrível, mistura música clássica com o popular e assombra.

Mas deixa isso de lado por enquanto. Assim como esse mestre de violão que é o idealista Manzione e a jovem e bela Flávia Prando, artista de fina sensibilidade.

O que pesa na balança nesse momento é a saudade do tempo que eu vivia em Santos, curtindo serenatas e a boêmia lá na Vila dos Bancários.

Morro de saudades do Flavinho Moura, um violão tão sonoro, um marco no cavaquinho... Do Hercílio Cruz... De tantos cantores, como Fernando Galvão, Gilberto Sanches, Nego Braga... Entre tantos, Luciano Fonseca se destacava sempre como um senhor cantante... Tinha Maurici Moura... Tinha Lúcio Cardim, grande compositor... Tinha vários regionais. Na Vila não faltava músicos de primeira: Burgos da flauta mágica, Adamastor do violino, seu Joaquim, seu Adhemar do Cavaquinho, Morro de saudades! Às vezes, vinha meu tio Gilberto, também de violino. Aí a gente cantava:

Na Vila Sapo
a vida é boa
não há sopapo
nem sururu
Tudo é risonho
e bem fadado
reina a alegria
e a harmonia
Contente e feliz estou com meus amigos
nesta alegria
Cantando feliz estou
o cateretê da nossa Vila

Ah, tempo bom! Flavinho do violão e Luciano Fonseca, grandes artistas... Quando me firmei na tevê Tupi, fiz de tudo pra levar o Flavinho, o Julinho Bittencourt e o Luciano pra lá. Mas, qual o quê? Nenhum deles quis deixar Santos. Uma pena. Sei lá se foi... Eles eram peixes, não saíam da beira da praia. Lá a gente curtia música e papo.

O sonho do Luciano Fonseca (sem dúvida o maior cantor de Santos) era ser cantor da Rádio Cacique. Mas ia em todas, até chegar a ser o grande crooner da orquestra do Mário Folganes (que tinha o Braguinha do violão, e muita gente). Batemos muitos shows juntos, o Luciano e eu, mais o Flavinho Moura no violão; eu como o palhaço Frajola. Alguns são inesquecíveis.

Houve um memorável concurso de calouros num parque de diversões que se instalou no campo do Vasco da Ponta da Praia. Tinha três séries, uma por dia, mais a final. De tanta gente que se inscreveu, a escolha do melhor seria por aplauso. Não teve pra ninguém. A turma do Aquário, que éramos nós lá da Vila Bancária, deu a maior força. Deu Luciano Fonseca no primeiro dia. No segundo, ganhou Nego Braga, bom cantor e soldado da Polícia Militar; a meganhada toda veio à paisana e só podia dar Nego Braga, que, além de ter torcida, era um ótimo sambista.

No terceiro dia caiu uma chuva que Deus mandava. O único candidato que apareceu foi o Alfredo Hálito. O dono do parque quis transferir o concurso para outro dia, mas a família do Hálito encardiu. Andaram de roda-gigante, apostaram em porquinho-da-India e tudo o mais. E já que tinha gente consumindo, tinha que ter função. E se tinha função, tinha que ter os calouros programados, nem que fosse só com o Alfredo Hálito. O Alfredo cantou e a família aplaudiu. Ganhou o Alfredo Hálito.

O quarto dia, o tira-teima, chegou. O Luciano Fonseca cantou. Quando fomos aplaudir, o pessoal da meganha, a torcida do Nego Braga, atacou a gente. O pau comeu. Um rolo só. A briga foi pra rua. O Nego Braga cantou. E não havia ninguém dele pra aplaudir, estava todo mundo brigando na rua. Fiasco geral. Aí cantou o Alfredo Hálito, um terror. Mas a família dele estava lá e aplaudiu. Foi o único aplaudido!

Ganhou. Recebeu o prêmio: uma garrafa de Cidra e vinte mangos. A alegria do cortiço do Alfredo Hálito foi retumbante.

Mas a nossa turma, a turma do Aquário, e a turma da meganha não se conformaram. Pegamos paus e ferros e desligamos a luz do parque; quebramos as alavancas da luz, ficou tudo no escuro. Um terror: gente pendurada na roda-gigante, berrando de pavor. Veio a polícia, bombeiros e os cambaus. Teve corre-corre, gritaria. Zorra total. Mas não teve pra mais ninguém: foi o Alfredo Hálito que ganhou do Nego Braga, bom de samba, e do grande Luciano Fonseca.

Janela Santista - Plínio Marcos
Pílula Azul

O pobre velho pulou de alegria quando ouviu falar em Viagra. Quem diria...

Ele já tinha tomado tudo quanto era remédio pra dar embalo masculino: guaraná do Amazonas, ginseng, raiz de alcaçuz, vara de gotu, cipó cola, esquizandra, pimenta caiena, pau de resposta, pólen de flores, catuaba, xixi de macaco e tudo o mais que lhe indicavam. Mas, qual o quê!

Antes de desanimar de vez, o velho chegou a levar seu cacete nos melhores rezadores, mandigueiros, benzedores. Tudo em vão. Aí ficou murcho, jururu. Triste. Bem tristão mesmo. Não havia doutor que desse jeito. Até que escutou no bochincho das curriolas a palavra Viagra. Ouviu falar na pílula azul, um remédio americano. Pois é, americano. "Se é bom pra pau de americano, é bom pra pau de brasileiro", pensou o velho.

Se encheu de esperança. Correu atrás de um amigo que ia pros Estados Unidos pra pedir - pedir, não, implorar.

— Me traz a Viagra, a pílula azul, a minha esperança.

O amigo regateou:

— Sei não, parece que já está em falta, não sei se eu vou poder trazer uma caixa.
O velho estrilou:

— Mas que caixa? Me traz logo um container de Viagra. O amigo foi. E o velho ficou esperando, ansioso. Nesse meio tempo, começaram os bochinchos. "Essa pílula está matando, só no Rio Grande do Sul matou seis numa noite", diziam. O velho não ligava. Achava que esses comentários eram só pra tirar os assombrados da onda. Não ele. Pra um sujeito que afirmou que a tal de Viagra deixava cego, o velho vacilou:

— Deixa cego, é? Melhor pra mim. Aí não vou deixar passar nada. Quem não vê cara não dispensa nenhum bagulho. Sabe como é: às vezes, por causa de uma cara feia, um homem perde uma coisa boa.

Nessa toada, o velho ia levando.

Até que a mulher descobriu que o marido estava com idéia de jerico e começou a pegar no pé do bruto.

— Essa droga mata. Tá morrendo gente. Pra que tomar essa porcaria? Quem tem pressão alta é tomar e cair duro. Cardíaco, então, é mais rápido ainda o tombo: é pim, pum; não levanta mais. E diabético? Estremelica e apaga.

O velho se picava de raiva. Xingava a velha companheira, acusando ciúme. Na certa, ela estava implicando com a pílula azul porque sabia que ele, com munição, ia correr atrás das belezocas e ela ia ficar na saudade.

— Você é quem sabe — respondia a mulher — Quer se matar, se mata. Mas não precisa tomar Viagra, toma formicida e pronto.

Sem piedade, o velho ficava cada vez mais cruel com a velha quando ela tocava no assunto, ou seja, sempre. Mas ela não afinava:

— Mata. Mata. Mata mesmo. Pode crer. Gente que parecia forte tomou e tombou. Cuidado, não abusa.

O velho reagia azucrinando a velha com o lero de sempre. Porém (e sempre tem um porém), de tanto falar que a pílula azul mata, ela ia encucando o marido. E... Como dizia Mestre Zagaia, velho cabo-de-esquadra que navegou sem bússola e sem bandeira por águas barrentas e sempre contra a maré:

"Quem tem... tem medo". E se Mestre Zagaia diz, é que é. O velho foi ficando com medo do Viagra. Jurava pros amigos que quando o viajante chegasse com a pílula azul, ele não ia medrar. Mas que estava encucado, estava.

Depois de longa espera, o amigo do velho chegou dos Estados Unidos. Não com um container, mas com pelo menos uma caixa da pílula milagrosa. O velho agradeceu e se fechou em copas. Não disse nada pra ninguém. Nem pra mulher ele contou que estava de posse da pílula mágica. Sabe como é... Hamlet na cabeça, atormentando:

"Morrer, dormir, sonhar. Qual será o sonho que teremos no sono da morte? Essa dúvida cruel é que prolonga por muito tempo a vida do desgraçado".

O velho pensava: "E se tomo esse Viagra e caio duro? O que os aposentados todos da praça vão dizer de mim? Vão rir paca". Veio a noite. Ele deitou ao lado da mulher. Ela dormiu logo. Ele ficou aceso. Ficou matutando, matutando ("Tomo essa pílula ou não? Tomo ou não? Tomo ou não tomo?"). Nessa dúvida cruel, a noite foi passando. De repente, já dia claro, nos primeiros minutos da manhã, o velho se anima e murmura decidido:

—Seja o que Deus quiser. Num impulso, engole a tão preciosa pílula azul. Fica na espera. Não tarda, a calça estufa. O velho fica em ponto de bala. Todo cheio de entusiasmo, acorda a velha e mostra o milagre. Ela também se entusiasma. Aliás, até mais que o velho. Eufórica, abre as pernas e chama; gritando:

—Vem, vem. Vem logo. Esse efeito dura pouco.

Todo alegre, o velho pede paciência.

—Espera aí. Primeiro quero ir mostrar pra turma da bocha.

* Texto originalmente publicado na edição de 28/03/1999.

Janela Santista - Plínio Marcos
Saltimbanco do Macuco

Muitas vezes me perguntam quantas peças escrevi. Umas quarenta, digo como quem confessa. A pergunta seguinte, quase invariavelmente, é de qual delas gosto mais. Sem acanhamento nem cerimônia, digo: todas. Por essa luz que me ilumina, é a mais pura verdade. Todas elas me fizeram o que sou, me trouxeram sucesso e tudo o que ele acarreta. Por causa delas, tive a chance de ser fraterno, bom camarada, de colecionar muitos amigos por todo o Brasil. Elas me deram a certeza de que onde chegar estou chegado; e de que nunca vou passar fome ou frio, pois sempre serei bem acolhido.

Porém (sempre tem um porém), de todas as peças que escrevi, houve uma que foi a primeira, e ela é especial. E volta à cena agora, 41 anos depois, pelo esforço de jovens talentosos que quiseram montá-la (e fizeram um trabalho lindo), a começar pelo diretor Sérgio Ferrara. Se ela ainda vale? Claro; como valeu na estréia, há mais de quatro décadas. Vale mesmo, diz a crítica especializada que se comoveu com o espetáculo em cartaz no Teatro Eugênio Kusnet, em São Paulo.

Isso se deve ao elenco que o Sérgio Ferrara chamou. Gente doada, se entregando ao texto com alma e entusiasmo: Antônio Petrin, Jairo Mattos, Élcio Nogueira, Eric Nowinski, Adão Filho, Antônio de Andrade, Sílvio Restiffe e outros. Tem muito mais gente de grande vigor envolvida, como J.C. Serroni e seus discípulos (cenário) e Beti Antunes (figurinos e produção).

Lembro do mestre Nelson Rodrigues (outro ator enfocado no projeto de ocupação do Teatro Eugênio Kusnet em 1999, 2000), que dizia com meiguice: "Você sempre deu sorte de encontrar bons atores e diretores para seus textos. Pois é, aí estão o Sérgio, o Petrin e os outros para não deixarem o Nelson mentir. São todos ótimos. O espetáculo não podia ser melhor. Dei sorte outra vez, como em todas as outras montagens de "Barrela", a peça escrita pelo moleque Frajola, do Circo Pavilhão Teatro Liberdade.

Naquele tempo, a estréia no Teatro do Centro Português foi cheia de forrobodó: polícia, censura, urna proibição atrás da outra. Escoramos as broncas e aprendemos que respeito se conquista encarando as encrencas. Tiveram que me engolir. Estão tendo que me engolir ainda, com casca e tudo, e será assim até o final dos meus dias. Uma vez, numa festa em Santos, botaram uma faixa em minha homenagem: "Plínio Marcos, o Saltimbanco do Macuco".

Pois é, esse sou eu: saltimbanco do Macuco, meu bairro querido, o bairro da minha vida, o pedaço de inundo que meu deu tutano, sustento e energia, o pedaço de mundo que forjou em mim amor à vida e vontade de lutar contra qualquer opressor. Por ser do Macuco, me fiz guerreiro. Por ser guerreiro, me fiz lutador pela liberdade de expressão. Por tudo isso, escrevi "Barrela" e, depois dela, um monte de peças.

Recentemente veio uma rapaziada aqui em casa pra saber histórias do Jabaquara; eles vão encerrar o ano na Faculdade com um estudo sobre o nosso Jabuca. Contei casos e mais casos. No final, um dos rapazes me perguntou se sempre fui jabaquarense com sinceridade. "Sempre; uma vez Jabuca, sempre Jabuca", respondi. Depois outro garoto mais atrevido quis saber se sou bairrista. "Não, de jeito nenhum, apenas sou do Macuco; e urna vez macuqueiro, macuqueiro hei de ser para sempre". Há poucos dias, apareceu uma moça muito bonita numa festa se apresentando a mim como leitora do Jornal da Orla: ela coleciona as histórias que eu conto aqui nessa Janela Santista, e tem predileção especial pelas do Jabuca.

A moça se chama Meire e foi aluna de mestre Rossini, folclorista respeitadíssimo. Ela acha que essas histórias do Jabuca (e as do Macuco, e as de Santos inteira) têm vida, são folclore puro, mostram uma visão de mundo, um jeito de viver e de ser. Está certa. Citei esse depoimento dela para a turma da Faculdade de Jornalismo. Com certeza, o mestre Rossini, já falecido (pra prejuízo da Nação), está feliz com essa sua ex-aluna. Quem vai atrás do Jabuca acaba mexendo com os quilombos da Nova Cintra, folclore legítimo, de primeira linha.

Pra fechar o circulo, só falta levarmos essa "Barrela", que está em cartaz em São Paulo, para Santos. Podia ser obra de um animador cultural genial como Toninho Dantas... Aliás, na abertura do recente Festival de Teatro em Santos, Toninho prometeu que levaria a "Barrela" pra minha terra de novo. Vou fazer pressão até ele se render... Vamos com a "Barrela" para Santos, com certeza. Eu, o saltimbanco do Macuco, mereço isso. Portanto, fica aqui um recado para o Toninho Dantas: venha assistir à peça aqui em São Paulo para levá-la pra Santos. Estou te esperando.

Texto originalmente publicado na coluna "Janela Santista", na edição de 03/10/1999.

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