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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - S. FLOREAL
Sylvio Floreal (1)

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Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade - exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda, o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (ortografia atualizada nesta transcrição) - e que em 29/12/1940 Affonso Schmidt também começou a publicar no jornal paulistano O Estado de São Paulo:

Sylvio Floreal

Affonso Schmidt [*]

Há anos, escrevi um palmo de prosa, evocando Sylvio Floreal, curiosa figura dos nossos meios literários. Crônica escrita à pressa, limitei-me a fixar as recordações que me foram caindo da pena, ao longo de duas tiras de papel. Nunca imaginei, porém, que esse escrito despertasse tamanho interesse por aí afora. Recebi, após a sua divulgação, cartas de Santos, do interior do Estado, de Mato Grosso e Goiás, e até do Rio de Janeiro, onde, geralmente, não encontra repercussão o que a gente escreve aqui pela província...

Aos que me pediram miúdos detalhes sobre a vida desse atribulado escritor - um dos poucos que entre nós não adotaram, como ganha-pão, a carreira jornalística - respondi prometendo que, com vagar, publicaria trabalho mais pormenorizado. Levei, como se vê, muito tempo para cumprir a promessa. Mas - antes tarde que nunca. Dito isto, vou aproveitar a oportunidade desta colaboração destinada a A Tribuna para dizer o que sei relativamente à personalidade inconfundível de Sylvio Floreal.

Ali por 1910, se não me engano, agonizava em Santos um jornal chamado A Vanguarda, que, na sua efêmera existência, chegou a alcançar dias de popularidade. A redação estava instalada na Praça dos Andradas e o último proprietário e redator-chefe era um senhor português, do comércio, que, mais tarde, extinto o jornal, retirou-se para Lisboa, à Rua dos Retrozeiros.

Eu desempenhava as atribuições de redator "faz-tudo": tinha casa, comida, roupa lavada e, aos domingos, uma notinha nova, de 5$000, para a farra. Mas naquele tempo as notas de 500$000 andavam aos pontapés pela Rua 15 de Novembro e eu, com a minha migalha, não me atrevia a nada, absolutamente nada...

Mas, afinal, não tenho queixa do Magalhães. Acho até que recebia de mais por um trabalho incerto, feito entre compridas leituras e conversas fiadas que tomavam a noite, com Fábio Montenegro, Custódio Pereira de Carvalho, Zózimo Lima e outros, que frequentavam a casa. Até admiro que o Magalhães me tivesse aturado tantos meses.

À noite, escrevendo numa mesinha que ficava ao pé da porta, eu era a pessoa naturalmente indicada para atender ao escasso público. Em certo dia da semana, havia música no jardim: as moças da praça passeavam na calçada e os rapazes conversavam em grupos, mais atentos às namoradas do que às palavras que diziam. Eu olhava para o noticiário ainda por fazer e sentia uma inveja inferior daquela gente feliz, que vivia alegremente a sua vida. Isso nas noites em que havia música. Nas outras, porém, enquanto o jornal trabalhava, o jardim se povoava de líricas rãs que dialogavam no silêncio. Num boteco da Rua S. Leopoldo, funcionava incessantemente aquele gramofone que só tinha um disco e assim mesmo rachado: rakt, rakt, rakt...

"Minina, vamos ao vira,
Ai,
Que o vira dá viração!"

Ali pelas 10 horas da noite, naturalmente, depois da reunião do "conselho diretivo", um rapazola da Federação Operária, que ficava ali por perto, ia ao jornal levar o comunicado do dia seguinte. Não lembro precisamente a data do nosso conhecimento, mas, desde o primeiro dia, ele se havia mostrado de uma intimidade tocante. Era Fulano p'ra cá, Sicrano p'ra lá.

Tinha as mãos grossas, duras e comidas pela cal. Vestia calça de riscado e um grande paletó castanho que quase lhe chegava aos joelhos. Não raro, quando gesticulava, as mangas engoliam as mãos. Além do mais, era dentuço. Tinha a profissão de servente de pedreiro, redigia os manifestos da Federação Operária e conhecia autores nacionais e estrangeiros. Sua memória era alarmante. Citava de cor páginas inteiras de Vargas Villa, Mário Mariani, Octavio Mirbeau. Ele próprio falava num estilo imaginoso, com afirmações escandalosas, para em seguida saborear na fisionomia do ouvinte o efeito que as palavras produziam.

Só algum tempo depois cheguei a saber o nome desse amigo íntimo; era um nome tão comum que logo depois esqueci. Domingos Alexandre. Não tinha sobrenome. Mas ele, que sentia fumaças literárias, escolhera um belo, um vistoso pseudônimo para tais ocasiões: Sylvio Floreal! Devia ser filho espiritual de Ernesto Herrera. Esse Ernesto Herrera, que no Brasil poucos conhecem, era um jovem escritor uruguaio de muito talento, mas boêmio como um gato. Aqui chegou passageiro clandestino de um vapor inglês. Enquanto entre nós esteve, viveu pelos sindicatos, sempre a escrever peças teatrais, "La Moral de Mísia Paca", ou "El Lion Ciego". Não tinha a menor preocupação com a roupa nem com a comida. Uma vez convidei-o para almoçar: aceitou. No mesmo dia convidei-o para jantar e ele recusou terminantemente.

Por quê?

Porque não desejava habituar-se a almoçar e jantar todos os dias.

Certo domingo partiu para o Uruguai, como havia chegado: passageiro clandestino, nos porões de um tramp (N.E.: navio que não cumpre linha regular).

Aqui deixou, com a fascinação de seu exemplo, uma dúzia de escritores proletários. Regressando à pátria, fez-se professor público e morreu numa terça-feira de Carnaval. Hoje seu nome é contado entre os maiores da literatura platina; suas peças, com as de Florêncio Sanchez, constituem o mais belo patrimônio do teatro uruguaio.

Sylvio Floreal escrevia fabulosamente. Não havia papel que chegasse. Li os seus primeiros escritos, a lápis, em papel de embrulho. Na rua, anotava frases - as suas memoráveis frases - na margem estreita de um jornal. A caligrafia não passava de garranchos de meninos de escola. A falar verdade, se teve algum estudo foi muito pouco, talvez a Cartilha e os cadernos Garnier, numa escolinha de bairro. Nada mais.

Ribeiro Couto, uma vez, aconselhou-o:

- Sylvio Floreal, você precisa de escola...

Ao que ele respondeu, com a convicção de um Flaubert:

- Eu tenho a minha escola.

Recusava-se, pois, a compreender.

O que ele sabia de leitura e escrita foi obra sua, exclusivamente sua, naquela grande e encoscorada mesa da Federação Operária, diante do exemplo de Ernesto Herrera, ou discutindo com os camaradas da construção civil.

Depois desse tempo, como era de meu feitio, desapareci. Voltando a Santos, durante a grande guerra, encontrei-o ainda mais aperfeiçoado, fazendo paradoxos cabeludos que escandalizavam os cafés. Já era literato, absolutamente literato. Tinha-se feito inteiramente por si próprio, a começar pelo nome; não devia nada a ninguém. Talvez devesse uns maços de cigarros no Café Paris.

Por esse tempo, fundei um vespertino, com oficinas na Rua Martim Afonso e redação no Largo do Rosário. Como era natural, a redação acabou por funcionar na oficina, enquanto a salinha alugada para tal fim ficava às moscas. Prometi-lhe um ordenado para fazer este serviço: passar o dia no escritório e atender ao "público", um "público" que nunca deveria aparecer ali. Pois no dia seguinte Floreal recusou o emprego; não queria ser jornalista, pois, na sua opinião, escrever para o público desvirtua o artista, engrossa a sensibilidade, torna-o incapaz das belezas sutis do estilo...

Um dia reuniu a maçaroca dos manuscritos e tocou para S. Paulo. Interrogado, coçava o queixo com a mão aberta, gesto que era muito seu, e proclamava a divisa:

"Hoje ou nunca!"

Chegou à capital com as mãos abanando. Não tinha casa, não tinha comida, não tinha nada. Nem sequer contava com a simpatia dos antigos camaradas da Construção Civil, porque ele, abeberando-se de um certo D'Annunzio que por aquela época fazia furor nas rodas, proclamara-se aristocrata, nietschiniano, inimigo irreconciliável do que chamava - o homem comum.

Viveu os primeiros meses pelos cafés, escrevendo um pouco por toda parte. Era muito acessível e o seu caso atraía simpatia: mas a sua linguagem, rica de paradoxos rebarbativos, alarmava os tímidos. Ele bem sabia disso, mas nunca sacrificou uma bela frase por coisa alguma da vida. Conheceu, portanto, todas as gradações da penúria, até mesmo a vigília ao relento, nas noites de garoa paulistana.

Atirando-se de ponta-cabeça na literatura, e consciente do próprio valor, recusava qualquer ocupação que tirasse tempo às letras. De uma suscetibilidade à flor da pele, talvez mal compreendida, abespinhava-se quando lhe ofereciam colocação que julgava abaixo dos seus méritos. Deram-lhe um pequeno emprego nos Correios, para que ao menos pudesse morar numa pensão de estudantes, mas em breve Sylvio Floreal deixou de comparecer ao serviço. Não suportava aquela humilhação quotidiana de assinar o ponto...

Poderia ter trabalhado nos jornais, como é de regra entre os nossos literatos, mas a sua pena fina não estava aparada para a obra de carregação do noticiário; só aceitaria de cronista para cima. Se tivesse nascido há um século, em Paris, figuraria entre "Les biveur d'eau", de Henri Murger.

Só muito depois, quando as suas lindas crônicas, coloridas e originais, começaram a ser publicadas num grande diário, foi que ele conseguiu ter quarto e jantar certo. Mas por esse tempo, com os primeiros êxitos, já o seu amor próprio tinha ultrapassado os limites do tolerável. E esse orgulho literário foi crescendo à medida que os livros apareciam: "Ronda da Meia-Noite", "Coragem de amar" e "Altitudes".

Mas, Sylvio Floreal não era homem para estacionar nesses triunfos: abalançou-se a um romance que, segundo parece, não correspondeu às expectativas. Desgostoso, julgando-se perseguido pela crítica, viajou. Dos Estados de Mato Grosso e Goiás, onde se abeberou de panoramas novos, trouxe um livro verdadeiramente interessante: "Brasil Trágico".

A vitória, então, sorriu-lhe docemente. Assim conquistou - e com quantas dificuldades! - um lugar nas nossas letras. Deu-se então um fenômeno curioso: ele, que nos maus dias era intratável, tornou-se, na vitória, um simples, um sentimental, um delicado amigo.

Era o fim. Há dez anos - em certa manhã de 1929 (N. E.: correto é 1928) - acharam-no morto no quarto em que residia, numa velha casa de cômodos da Rua Senador Feijó. Sua morte foi tão brusca que, quando os amigos souberam, ele já estava no necrotério, e dali foi para a cova, no caixão da Santa Casa. Velaram-lhe o corpo algumas mulheres sírias, moradoras da mesma casa de cômodos, e que o conheciam, segundo disseram, de o ver entrar e sair pelo escuro corredor ladeado de quartos.

Assim viveu, sofreu e triunfou literariamente Sylvio Floreal, um cronista que deu cor ao seu tempo. Foi a mais poderosa vocação literária que conheci. O pouco ou o muito que ele fez - julgue-o quem quiser - representa o mais belo milagre da inteligência e da vontade. Poderia ilustrar uma página de Samuel Smiles.

Neste período de evocações históricas de Santos, Sylvio Floreal é um nome a ser lembrado.

[*] Colaboração especial para A Tribuna, na Edição Comemorativa do 1º Centenário da Cidade de Santos.

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