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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETA DO MAR
Vicente de Carvalho (3)

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Na sua edição especial de 26 de janeiro de 1939, comemorativa do centenário da elevação de Santos à categoria de cidade - exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda -, o jornal santista A Tribuna publicou esta matéria (grafia atualizada nesta transcrição):
 
Vicente de Carvalho - O Poeta do Mar

Marina de Pádua (*)

A poesia de Vicente de Carvalho está toda embebida de um sentimento amoroso pela natureza. Sua alma profunda de artista, enriquecida de largos conhecimentos de ciência e filosofia, cheia de luminosidade poética, anima todas as coisas. Mas, na sua visão total da natureza, um elemento, uma força se destaca, cheia de uma sedução poderosa e absorvente - o MAR.

Nenhum poeta da nossa língua arrancou desse maravilhoso motivo poético imagens, idéias, ritmos, versos, tão belos.

Vicente de Carvalho nasceu e morreu à beira do mar, em Santos, a cidade das ilhas, das escarpas e dos rochedos. Ele o compara à sua vida, toma-o como confidente, transmite-lhe suas emoções, angústias, idéias e pensamentos. Ouve o doce murmúrio e a revolta tempestuosa de suas águas, nos desesperados arremessos das ondas sobre a terra.

Nas Palavras ao Mar, evoca essa íntima ligação do seu destino, desde o berço, e diz:

"Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas- a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.

Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras;
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...
.......
Ninguém entende, embora,
Esse vago clamor, marulho ou versos,
Que sai da tua solidão nas praias,
Que sai da minha solidão na vida...
Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos
E embale-nos a nós que o murmuramos...
Versos, marulho! amargos confidentes
Do mesmo sonho que sonhamos ambos!"

Se Vicente de Carvalho nasceu assim preso ao mar que lhe inspirou, indiscutivelmente, as mais belas poesias, preso ao mar morreu.

Costumava o poeta realizar, de quando em quando, pescarias, com os pescadores santistas. Sabe-se que estes usam, na pesca de garoupas à linha, iscas apodrecidas. Foi assim que, através de um ferimento produzido pela própria linha, infeccionou o dedo. Desse acidente resultou-lhe a perda da mão esquerda.

Antes desse acidente, teve um dia séria desinteligência com um dos pescadores. Homem valente e vingativo, armou-se esse pescador e foi aguardar sua passagem numa tocaia, a fim de matá-lo.

Passeava Vicente de Carvalho, sozinho e desprevenido, quando seus olhos descobriram, na sombra, o cano da arma ameaçadora e traiçoeira. Imperturbável, seguro de si mesmo, e certo da impressão que sua indiferença, revelação de bravura, causaria ao adversário, parou, sorriu, e acendeu um cigarro.

Diz Roquete Pinto, em um de seus livros, do qual resumiu a narrativa desse curioso episódio, que "o pescador, subjugado pela força moral daquele homem, cuja vida estava no gatilho do seu fuzil, pousou a arma admirado e talvez comovido".

Vicente de Carvalho, antes de morrer, tomou todas as providências finais, não se esquecendo sequer de deixar em casa dinheiro "para as primeiras despesas".

No seu túmulo foram gravados estes versos seus, em que escolheu o lugar em que desejava dormir o último sono:

"O derradeiro sono eu quero assim dormi-lo:
Num largo descampado
Tendo em cima o esplendor do vasto céu tranqüilo
E a primavera ao lado."

Se continuarmos revendo as poesias de Vicente de Carvalho, sobre o mar, verificaremos que ele lhes empresta, quase sempre, os sentimentos e a voz humana.

No poema "Sugestões do crepúsculo", o poeta ouve subir, do marulhar de suas vagas, um sussurro de preces para os céus:

"Ao pôr do sol, pela tristeza
Da meia-luz crepuscular,
Tem a toada de uma reza
A voz do mar

Aumenta, alastra e desce pelas
Rampas dos morros, pouco a pouco,
O ermo de sombra, vago e oco,
Do céu sem sol e sem estrelas.

No seu clamor esmorecido
Vibra, indistinta e espiritual,
Alguma coisa do gemido
De um órgão numa catedral

E pelas praias aonde descem
Do firmamento - a sombra e a paz;
E pelas várzeas que emudecem
Com os derradeiros sabiás;

Ouvem os ermos espantados
Do mar contrito no clamor
A confidência dos pecados
Daquele eterno pecador

             ***

Escutem bem... Quando entardece,
Na meia-luz crepuscular
Tem a toada de uma prece
A voz tristíssima do mar..."

Era tal a obsessão que Vicente de Carvalho tinha pelo mar, que o via por toda a parte.

Ainda mesmo nos versos em que descreve, com a riqueza de imagens e a variedade de comparações de sempre, as montanhas e as florestas, nas ondulações dos terrenos e das matas, descobre a miragem do mar:

"Na sombra em confusão do mato farfalhante
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo.
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Eriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além, levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros macios;
Resvala num declive; e logo, como em fuga
Precipita, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna,
Do fundo dos grotões outra vez se subleva
Surge, recai, ressurge... E assim, como em torrente,
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente."

Não só na paisagem, nas montanhas e nas florestas, vê Vicente de Carvalho o mar. Também o descobre nos olhos verdes.

"Olhos encantados, olhos cor do mar,
Olhos pensativos que fazeis sonhar!

Branca vela errante, branca vela errante,
Como a noite é clara! Como o céu é lindo!
Leva-me contigo pelo mar... Adiante!
Leva-me contigo até mais longe, a essa
Fímbria do horizonte onde te vais sumindo
E onde acaba o mar e de onde o céu começa...

Olhos abençoados cheios de promessa!

Olhos pensativos que fazeis sonhar,
Olhos cor do mar!"

Vicente de Carvalho foi, sem dúvida, um dos maiores poetas líricos do Brasil. Já era assim considerado ainda em vida, quando publicou os seus primeiros poemas, e todas as grandes figuras da nossa literatura contemporânea lhe renderam as maiores homenagens.

Euclides da Cunha, que prefaciou "Poemas e Canções", considera as "Palavras ao Mar" um dos "maiores poemas que ainda se escreveram em língua portuguesa". Muitos outros escritores e críticos situaram Vicente de Carvalho um lugar inconfundível na poesia brasileira.

Vicente de Carvalho possuía uma grande paixão pela música, música que transfundiu em todos os seus versos. Foi um estudioso infatigável; cultivava incessantemente o seu espírito, venerava os mestres, amava e protegia os estudantes.

Ele definiu o sábio como "um poeta que abriu os olhos e sonha de olhos abertos", frase que revela o seu interesse e sua curiosidade por todas as pesquisas científicas e indagações filosóficas.

Na aparência, esquivo e retraído, o poeta de "Fugindo ao cativeiro", maravilhoso poema inspirado num episódio do cativeiro no Brasil, possuía um coração aberto às mais generosas manifestações de simpatia humana.

A força de sua inteligência, a delicadeza de sua sensibilidade, ficaram palpitando em sua poesia, que lhe imortalizou o nome.

Realizou-se, em relação a ele mesmo, o que considerava sua maior ambição: "só explica tão forte empenho posto em granjear tão modesto resultado, como é um livro de versos, aquele fortíssimo instinto, profundamente humano, que se rebela contra a morte, sonhando para depois dela, uma continuação, ainda que modificada, da vida. A ambição de deixar a sua alma ecoando sonoramente em outras almas, através do tempo, é, sem dúvida, o incentivo dos poetas e a ilusão de quase todos eles... que recompensa melhor promete alguma religião aos que estimula, na incerta e penosa conquista do céu?"

(*) Colaboração especial para A Tribuna, na Edição Comemorativa do 1º Centenário da Cidade de Santos.

Poema publicado no jornal santista A Tribuna, em 26 de março de 1964:

Palavras ao mar

                         Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pêlo!
Junto da espuma com que as praias bordas
Pelo marulho acalentada, à sombra
Das palmeiras que arfando se debruçam
Na beirada das ondas- a minha alma
Abriu-se para a vida como se abre
A flor da murta para o sol do estio.

                         Quando eu nasci, raiava
O claro mês das garças forasteiras;
Abril, sorrindo em flor pelos outeiros,
Nadando em luz na oscilação das ondas,
Desenrolava a primavera de ouro;
E as leves garças, como folhas soltas
Num leve sopro de aura dispersadas,
Vinham do azul do céu turbilhonando
Pousar o vôo à tona das espumas...

                         É o tempo em que adormeces
Ao sol que abrasa: a cólera espumante
Que estoura e brame sacudindo os ares,
Não os sacode mais, nem brame e estoura;
Apenas se ouve, tímido e plangente,
O teu murmúrio, e pelo alvor das praias,
Langue, numa carícia de amoroso,
As longas ondas marulhando estendes...

                         Ah! Vem daí por certo
A voz que escuto em mim, trêmulo e triste,
Este marulho que me canta na alma,
E que a alma jorra desmaiado em versos;
De ti, de ti unicamente, aquela
Canção de amor sentida e murmurante
Que eu vim cantando, sem saber se a ouviam,
pela manhã de sol dos meus vinte anos.

                         Ó velho condenado
Ao cárcere das rochas que te cingem!
Em vão levantas para o céu distante
Os borrifos das ondas desgrenhadas.
Debalde! O céu, cheio de sol se é dia,
Palpitante de estrelas quando é noute,
Paire, longínquo e indiferente, acima
Da tua solidão, dos teus clamores...

                         Condenado e insubmisso
Como tu mesmo, eu sou como tu mesmo
Uma alma sobre a qual o céu resplende
- Longínquo céu - de um esplendor distante
Debalde, ó mar que em ondas te arrepelas,
Meu tumultuoso coração revolto
Levanta para o céu, como borrifos
Toda a poeira de ouro dos meus sonhos.

                         Sei que a ventura existe,
Sonho-o; sonhando a vejo, luminosa,
Como dentro da noute amortalhado
Vês longe o claro bando das estrelas;
Em vão tento alcançá-la, e as curtas asas
Da alma entreabrindo, subo por instantes...
O mar! A minha vida é como as praias,
E o sonho morre como as ondas voltam!

                         Mar, belo mar selvagem
Das nossas praias solitárias! Tigre
A que as brisas da terra o sono embalam,
A que o vento do largo eriça o pelo!
Ouço-te às vezes revoltado e brusco,
Escondido, fantástico, atirando
Pela sombra das noutes sem estrelas
A blasfêmia colérica das ondas...

                         Também eu ergo às vezes
Imprecações, clamores e blasfêmias
Contra essa mão desconhecida e vaga
Que traçou meu destino... Crime absurdo
O crime de nascer! Foi o meu crime.
E eu expio-o vivendo, devorado
Por esta angústia do meu sonho inútil.
Maldita a vida que promete e falta,
Que mostra o céu prendendo-nos à terra
E, dando as asas, não permite o vôo!

                         Ah, cavassem-te embora
O túmulo em que vives - entre as mesmas
Rochas nuas que os flancos te espedaçam,
Entre as nuas areias que te cingem...
Mas fosses morto, morto para o sonho,
Morto para  o desejo de ar e espaço,
E não pairasse, como um bem ausente,
Todo o infinito em cima de teu túmulo!

                         Fosses tu como um lago,
Como um lago perdido entre montanhas,
Por só paisagem - áridas escarpas
Uma nesga de céu como horizonte...
E nada mais! Nem visses nem sentisses
Aberto sobre ti de lado a lado
Todo o universo deslumbrante - perto
Do teu desejo e além do teu alcance!

                         Nem visses nem sentisses
A tua solidão, sentindo e vendo
A longa terra engalanada em pompas
Que te provocam para repelir-te
Nem, buscando a ventura que arfa em roda,
A onda elevasses, para a ver tombando,
- Beijo que se desfaz sem ter vivido,
Triste flor que já brota desfolhada...

                         Mar, belo mar selvagem!
O olhar que te olha só te vê rolando
A esmeralda das ondas, debruada
Da leve fímbria de irisada espuma...
Eu adivinho mais: eu sinto... ou sonho
Um coração chagado de desejos
Latejando, batendo, restrugindo
Pelos fundos abismos do teu peito.

                         Ah, se o olhar descobrisse
Quanto esse lençol de águas e de espumas
Cobre, oculta, amortalha!... A alma dos homens
Apiedada entendera os teus rugidos,
Os teus gritos de cólera insubmissa,
Os bramidos de angústia e de revolta,
De tanto brilho condenado à sombra,
De tanta vida condenada à morte!

                         Ninguém entende, embora,
Esse vago clamor, marulho ou versos,
Que sai da tua solidão nas praias,
Que sai da minha solidão na vida...
Que importa? Vibre no ar, acorde os ecos
E embale-nos a nós que o murmuramos...
Versos, marulho! amargos confidentes
Do mesmo sonho que sonhamos ambos!

 

Nota do Almanaque de Santos - 1969, editado por Roteiros Turísticos de Santos, de P. Bandeira Jr., e tendo como redator responsável Olao Rodrigues (exemplar no acervo do historiador Waldir Rueda), em "Jóias da Poesia Santista" - página 178:

Cantiga Praiana

Ouves acaso quando entardece

Vago murmúrio que vem do mar,

Vago murmúrio que mais parece

               Voz de uma prece

               Morrendo no ar?

 

Beijando a areia, batendo as fráguas,

Choram as ondas; choram em vão:

O inútil choro das tristes águas

               Enche de mágoas

               A solidão...

 

Duvidas que haja clamor no mundo

Mais vão, mais triste que esse clamor?

               Ouve que vozes de moribundo

          Sobem do fundo

               Do meu amor.

 Vicente de Carvalho

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