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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA
Menotti Del Picchia (5)

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Um dos articuladores do Movimento Modernista de 1922, Menotti Del Picchia participava intensamente das atividades sociais e culturais santistas, publicando regularmente suas crônicas no jornal A Tribuna de Santos, como a referente ao Recreio Miramar e esta, transcrita no livro 36 mil dias de Jornalismo - A história nas páginas de A Tribuna (de Eron Brum, 1994, Editora A Tribuna, Santos/SP):
 
A delícia de falar mal

Menotti del Picchia

Foi Afrânio Peixoto quem, com sutileza e graça, disse que a coisa mais deliciosa da vida é a gente falar bem de si mesmo. A idéia parece superficial, mas é profunda, porquanto só nós mesmos sabemos o segredo de dizer apenas aquilo que nos agrada.

Se um terceiro nos elogia, pode ele não ter o tato de gabar unicamente aquelas qualidades que desejamos ver exaltadas. Assim, o parvenu odiará quem, querendo bajulá-lo, disser que ele é um homem que se fez por si e surgiu do nada.

Comparável à delícia de falar bem de si, só há o prazer de se falar mal de outro.

Pensando bem, gabar-se é diminuir o mérito alheio. Há no auto-elogio uma espécie de insulto à virtude dos outros. É, de certa forma, ser discretamente malicioso.

Como "falar mal" é um vício chic e muito generalizado, perdeu ele, hodiernamente, a sua maldade ingênita, para se tornar um outro sport elegante. Todos perdoam essa irreverente petulância, porquanto é tão recíproco e reproche que, geralmente, não há quem não se dê por pago e satisfeito na bizarra esgrima da maledicência.

É já o instinto da sociabilidade que nos arrasta ao pecado. É natural que uma conversação, como uma fogueira, necessite de algo sobre que se abordoe ou chameje. E como seria tedioso passar-se uma noitada a falar de arte, de cavalos e de política, é justo que, sob disfarces de aquilatar qualidades e medir virtudes, se aplique ao vizinho uma dosesinha de ironia e impiedade. A certeza de que ele, em outro grupo, está a pagar-nos com a mesma moeda, anima a ânsia iconoclasta e desemperra a língua vacilante.

Geralmente o torneio começa como línguas bífidas de serpentes. O veneno aparece diluído em sorrisos de galanterias, ou na tisana da condescendência. Depois a frase vem mais cortante, o sarcasmo mais acerbo. No fim, anavalhante, o epigrama desembainhado como uma lâmina, corta e sangra...

- Mlle. já viu como Mlle. B está corada?

- Belas cores... Ou valsou demasiado, ou...

- Talvez ouvisse do sr. Z alguma frase mais ousada...

- Ou, talvez, a lâmpada do toucador estivesse escura, e não reparou no excesso de carmin que esparramou no rosto...

- Talvez ambas as coisas, excelentíssima...

Isso, como se vê, é natural, simples, cristalino como um correr de água mansa... O homem é malicioso de nascença. A perversidade vem desde o Éden, digerida com a fatídica maçã que os claros dentes de Eva trincaram, por nossa desgraça.

Não faltarão por aí risos hipócritas que julguem mal estas verdades. Já Pascal disse que o homem tem um terror instintivo da sinceridade, e Max Nordau escalpelou corajosamente o verniz de preconceitos com que se esconde a formosa deusa que só vive nua.

Como vingança contra estas palavras leais, por-se-ão a falar mal desta crônica e estaremos vingados! Dirão que há algum cinismo em expormos assim, sem tules nem véus, um dos mais deliciosos pecados hodiernos. Em todo o caso, no fundo das suas consciências, como no fundo turvo de um lago, os ouviremos dizer, penitenciando-se: "- Afinal de contas, é isso mesmo. O cético cronista tem razão".

A maledicência é um mal a que ninguém escapa. O homem não fala tanto mal dos outros por perversidade, como por amor a si mesmo. Não há no mundo quem não julgue sempre superior ao seu próprio semelhante. Tirássemos essa deliciosa ilusão do homem, e ele, enjoado da sua personalidade, humilhado da sua inferioridade constante, perderia a alegria de viver.

É mister que se mantenha o formoso engano de nos julgarmos mais bravos, mais belos, mais talentosos que os nossos vizinhos. É esse egoísmo que traz a emulação e a glória.

Compreendendo essas coisas, perdoamos, apiedados, as mofinas com que nos tentam arranhar a piedade. É que, pelo mesmo fenômeno psicológico, temos a doce ilusão de estarmos muito acima do bote rasteiro do maledicente.

Falar mal... Diminuir outrem... Eis a grande delícia da nossa eterna ilusão. Tirar a outrem virtudes é, de certa maneira, aumentá-las a si próprio. Humilhar nosso semelhante é engrandecer-se perante ele.

Na verdade, nossa malícia não tira nada nem humilha. Mas nossa ilusão é que se rejubila e exulta, e, para o mundo subjetivo, a realidade é nada e o engano é tudo. Nossa vida interior é espectral e ilusória. As emoções são trasgos, são fantasmas que nós mesmos criamos. Assim, se imaginamos ter tirado de um espírito o fulgor de uma qualidade, nossa alma goza como se todo o mundo constatasse a verdade do nosso triunfo.

Aí está, parece-nos, a razão sutil da delícia de se falar mal. Nessa causa íntima está o perdão piedoso. O pecado diminui e encontra absolvição na nossa fragilidade; o crime desaparece mediante nossa contingência.

Distingamos, porém, essa malícia inconseqüente da perfídia e da calúnia. Essas infâmias só vicejam nas almas de lesma.

A mania de falar mal toma, dia-a-dia, aspectos delirantes, de verdadeira obsessão. É assim que, não se tendo, às vezes, de quem se maldizer, acaba-se ferindo a própria individualidade. Nesse sentido, como maravilhoso símbolo, engendrou-se a história do barbeiro que, tendo falado de todo o mundo, de parceria com seus fregueses, estando só na loja, a limpar um espelho, viu-se nele retratado e, parando, obtemperou:

- E também tu, o que pensas? És, acaso, melhor do que os outros? Saberás, afinal, que não passas de um refinado velhaco...

Humanidade! Humanidade! Glória a ti, que és bela, que és audaz, que és perfeita! Tiveste o dom mágico de procurar no próprio mal o sabor picante das tuas delícias... É do carvão negro que arrancas, claro e fúlgido, o diamante que corusca como um sol!

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