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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-III-07)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 290 a 297):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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III – CAVALEIRO DO IDEAL

7

Numa dessas ascensões ao Azul, o Cavaleiro do Ideal reconstituiu a figura santificada de Francisco de Assis em I Fioretti, símbolo da fraternidade universal, gênio da bondade, como Kropotkine o era da liberdade, ambos libertários e revolucionários, apóstolos do anarquismo. Martins Fontes leu tudo que se referisse a Francisco de Assis, estudou em pormenores a biografia e assimilou as poesias, escritas em momentos de exaltação panteísta, para depois interpretar o ideal humanitário do célebre taumaturgo, através dos seus versos.

A elaboração destes versos ocorreu durante uma das fases dolorosas da vida de Martins Fontes. Em seus últimos anos, Martins Fontes sofreu profundas desilusões, acerbas torturas, injustas perseguições, ódios surdos, incontáveis invejas; assistiu a deprimentes espetáculos e misérias, ao esboroamento de caracteres pseudo-impolutos, a verdadeiras calamidades morais; e, por fim, vivia atormentado com sérias responsabilidades de família, à qual proporcionava a garantia segura da felicidade a todo o custo, porque amava sua mãe, como ídolo e manancial de inspiração, sob o respeito dum culto quase divino, e porque adorava a memória do pai e mestre dr. Silvério Fontes.

Martins Fontes confiava demasiadamente na amizade, dedicando-lhe culto fervoroso. E os amigos abusavam, na mesma proporção, da sua bondade e do seu talento, sem retribuição equitativa. Esta foi sempre a origem de todas as decepções.

Na Academia Brasileira de Letras, quando vagava qualquer cadeira, com a morte do imortal ocupante, logo se lembravam do glorioso nome de Martins Fontes. Numa dessas vagas, um dos seus maiores amigos, o grande escritor Coelho Neto, conseguiu que Martins Fontes solicitasse a sua candidatura, na certeza absoluta e indiscutível de que no primeiro escrutínio obteria a eleição justa, prêmio ao poeta de máxima grandeza na literatura brasileira. Mas se interpuseram massudos interesses políticos que manejaram a máquina eleitoral, com a imposição de unanimidade para o seu candidato!

Escapou um voto, solitário e anônimo, que afrontou o despotismo com heroicidade, a favor de Martins Fontes. O voto do imortal anônimo simbolizava o protesto dos patronos e dos fundadores mortos da Academia. Durante alguns anos, esse voto foi atribuído a vários acadêmicos, amigos do poeta que procuravam se justificar covardemente. Mas o mistério se desvendou depois de passar o perigo duma perseguição política, e Martins Fontes, como náufrago do Navio Fantasma da Academia, abraçou-se ao único salva-vidas que flutuava com dignidade: Goulart de Andrade!

Mais tarde, a Academia Paulista de Letras, que Martins Fontes admirava, quis atraí-lo, oferecendo-lhe a cadeira patrocinada por Vicente de Carvalho. Paulo Setúbal se incumbiu dessa missão, cujas palavras generosas de incitamento chegaram a sensibilizar o poeta de Paulistânia, tanta era a suavidade feminil em que vieram envolvidas. Como reforço, Paulo Setúbal trouxe uma carta de Ulisses Paranhos.

A Academia Paulista ressurgia depois de alguns anos de silêncio. Martins Fontes daria vida nova com o seu gênio. A Academia desejava reassumir a direção da intelectualidade do Estado de São Paulo. Enfim, a Academia queria abrir as refulgentes portas do cenáculo aos literatos de valor, modernos e talentosos.

Estas boas intenções não convenceram Martins Fontes, e delicadamente o Poeta declinou do convite, pelo telégrafo, apresentando razões fundamentadas no sincero desdém pela vaidade e exibicionismo das academias em geral, não tanto pelos desastres de deslealdades da suma Academia Brasileira de Letras, que o rejeitou a troco de sonante e inferior mentalidade, mas pelos muitos afazeres da vida espinhosa que o empurrava das lides literárias e artísticas.

Na política nacional, encontrou Martins Fontes o mesmo abuso à sua bondade e tolerância. Apesar do conflito dos seus ideais com a política burguesa, Martins Fontes, profundamente afetivo, com o pensamento nos antigos companheiros de infância que enveredaram na administração pública do País, com a ilusão na influência do seu gênio para a reorganização ou construção duma legislação social, deixou-se embair com as falsas promessas dos políticos que intimamente detestava.

E aconteceu o inevitável. Carlos de Campos, então governador do Estado de São Paulo, num banquete que se realizou no Parque Balneário, em homenagem política à sua musical administração dos negócios públicos, fez um brinde a Martins Fontes, todos de taças erguias, e solenemente o elegeu, ali mesmo, deputado estadual, um novo representante do povo!

Durante os poucos dias de atordoamento glorioso, Martins Fontes se viu cercado de milhares de fisionomias sorrindo, em galanteios forçados, recebeu felicitações dos conhecidos que deixavam o cartão de visita com o endereço e o telefone, certos.

Nas proximidades das eleições, houve dissídio nas hostes, e os interesses do Partido, sempre voraz e insaciável, exigiam sacrifícios para aplacar os chefões e harmonizá-los, imitando o costume dos selvagens que, para animar os deuses furiosos que lhes mandavam raios com aguaceiros torrenciais, atiravam à fogueira um prisioneiro ou um boi que depois comiam entre gritos e danças epiléticas.

Carlos de Campos não trepidou em sacrificar Martins Fontes, cujo valor, para os políticos, era meramente literário…

Passaram-se os anos. Martins Fontes tinha um cargo público, médico da Repartição do Serviço Sanitário, na qualidade de inspetor da higiene, e estava preso aos fios invisíveis a política que lhe tolhiam os movimentos. Morrera o dr. Silvério Fontes. Martins Fontes era o filho mais velho e os encargos da família aumentaram as suas preocupações financeiras. Nisto, Júlio Prestes, seu companheiro de infância, filho do seu grande amigo coronel Fernando Pestes, é indigitado à presidência da República, e começa a campanha de propaganda da candidatura.

Júlio Prestes empreende uma viagem, como sucessor presuntivo do presidente Washington Luís, em caráter semioficial, pela América do Norte, Inglaterra e França, e leva, em sua seleta comitiva, o poeta Martins Fontes, que os políticos ajeitavam para ministro da Educação ou embaixador do Brasil na França.

Martins Fontes, de volta da grande viagem que lhe proporcionou os momentos mais felizes da sua vida, porque a aproveitou para conhecer de perto bibliotecas e museus, e rever amigos, poetas, artistas que ainda viviam na França, em Portugal e Espanha, toma parte na propaganda política da candidatura Júlio Prestes-Vital Soares, falando pela Rádio Educadora e em comício, na Praça Rui Barbosa, num sábado quente de 22 de fevereiro de 1930, ao lado do professor Stockler de Lima.

Como recompensa, o governador do Estado, Júlio Prestes, a 10 de abril do mesmo ano, efetivou Martins Fontes no cargo de delegado de Saúde de Santos, que exercia interinamente em virtude da aposentadoria, forçada por grave enfermidade, do dr. Guilherme Álvaro.

Em outubro estalou a Revolução, chefiada por Getúlio Vargas. O presidente da República é deposto e exilado em 24 de outubro. Os revolucionários ou amotinados depredaram os jornais e as residências dos que acompanhavam a política do governo constituído. Martins Fontes, em vez de se acovardar ou fugir como tantos outros, arriscou a própria vida e correu para junto dos correligionários, dando provas de lealdade e solidariedade no momento de desgraça e ruína, aos que o honraram e dignificaram em outros dias pacíficos e abundantes.

Estranharam certos revolucionários de última hora que Martins Fontes continuasse na delegacia do Serviço Sanitário de Santos e, pela imprensa, começaram a atacá-lo, uns blindados no anonimato, outros às claras, concedendo entrevistas, como fez um velho amigo da família do dr. Silvério Fontes. Por incitamento destes ataques, a interventoria do Estado, por decreto, pôs Martins Fontes em disponibilidade sem vencimentos. Era um golpe terrível que teve de suportar; a ingratidão dum amigo e a vingança dos políticos.

Em Santos, vários amigos socorrem-no, ofereceram-lhe lugares remunerados em postos médicos e hospitais, como aconteceu com o gesto nobre do presidente da Sociedade Portuguesa de Beneficência, Aristides Cabrera Correia da Cunha que, sete anos mais tarde, consentiu, por indiferença, que Martins Fontes fosse afastado do corpo clínico daquele hospital, a título de economia…

Perante tantos infortúnios, houve em Martins Fontes repentino quebrantamento das forças físicas, conquanto o cérebro mantivesse energias incomensuráveis de pujantíssima e exacerbada imaginação, a conceber, fertilissimamente, os motivos mais belos de Arte. Atingia o Poeta à máxima altura do gênio.

Coração sofredor, apaixonando-se ardentemente por tudo e por todos, Martins Fontes era acometido de crises tremendas de revolta contra as insídias dos falsos amigos e dos inimigos, contra as tiranias e as crueldades sanguinárias, contra os usurpadores das liberdades do povo. Então, tornava-se tempestuoso como as tempestades na Floresta da Água Negra. Depois desses rudes momentos de indignação, gozava a doçura da bonança espiritual. Envolvia-se nas brancas e róseas nuvens do sonho. A bondade do seu coração se espargia sobre toda a Humanidade. Embrenhava-se na solidão, em companhia dos heróis do Bem e da Beleza.

Nesse calmo estado de alma, escreveu as poesias que exalçam a figura santificada de Francisco de Assis, e o genial criador da filosofia positivista e da moral positivista, Augusto Comte. E como intermediário dos dois filósofos da Bondade Universal, espalhou dadivosamente as poesias do Sol das Almas, as Canções do meu Vergel, e de Ariel, Indaiá, Tataoca, grandilouvores dos amigos inseparáveis e inesquecíveis.

Francisco de Assis, Irmão do ideal libertário de Martins Fontes, é a figura mais discutida. Nos meios religiosos tornou-se obrigatória a sua adoração como santo, depois que a Igreja Católica reconheceu a grandeza das suas ações em bem da humanidade, sofredora e resignada.

Francisco de Assis é o santo cuja existência na Terra ninguém poderá negar. Não fez grandes milagres, mas seguiu um ideal cuja definição é um mistério para os críticos, para os psicólogos e para os padres da Igreja Romana. Os católicos se apoderaram da singular figura de Francisco de Assis, para ungi-la de nebuloso misticismo, até que conseguiram canonizá-lo e erguer-lhe altares nas igrejas, para que o adorassem como símbolo do desprendimento, da abnegação e do sentimento eterno de fraternidade.

Francisco de Assis, para o poeta Martins Fontes, como no-lo confidenciou, possui maior grandeza moral que a que lhe atribui a Igreja que tudo dogmatiza, porque os atos e os pensamentos do santo representam escandaloso protesto contra os vícios e os preconceitos duma sociedade desorganizada.

Francisco de Assis se afastou das mentiras convencionais e, como não encontrasse entre os homens da sua época o sentido de puro e elevado ideal, preferiu se aproximar da natureza bárbara e singela, adorando-a com o culto dum místico com o fervor dum asceta.

Martins Fontes, sem estar imbuído de qualquer ideia religiosa, nem sentir propensão para se converter a qualquer crença metafísica, interpretou a poesia e as ideias de Francisco de Assis, em versos magistrais de I Fioretti, onde supera a mais requintada arte literária. É como se lêssemos o próprio Francisco de Assis nos sonetos de invocações à vida dos homens e dos pássaros, à natureza agreste e inculta, com profunda emoção e delicado lirismo. As poesias transbordam de sentimento e beleza; exaltam, como interpretadoras dos homens martirizados e escravizados, a visionada ordem social de absoluta liberdade e de fraternidade inconsciente.

Evoquemo-las. Martins Fontes, certa vez, sonhou que Jesus lhe apareceu sobre a montanha, no Silvestre, e o seu coração de ateu alçou-se aos céus, subitamente. Jesus lhe disse: "Ama, sê meu Irmão. E, se não choro, é que em mim se astraliza Prometeu". O Libertário lhe estendeu os braços. Esperando a alvorada, bendisse a fé pela primeira vez. Então, quando amanhecia, com a estrada cheia de luminosidade, pensava em Jesus.

Noutro sonho, Francisco de Assis, em confidência, lhe falou e foi como um bálsamo ou banho lustral, porque desde então tudo amou fraternalmente. Depois o Poeta pousou a fronte no ombro do Santo e, acordando do sonho e abrindo os olhos, verificou que tinha morrido sem saber.

Representando os Cavaleiros da Távola Redonda, os poetas devem desprezar os tesouros, porque, na vida terrestre, eles são os heróis da bondade e da pobreza. Assim eram os poetas da geração de Martins Fontes, para os quais se abriu a Porta pequenina de Assis na terra, conduzindo ao céu.

Daí provinha a admiração de todos pela vida de Francisco de Assis, que aos vinte anos cantava nos saraus de Florença ou de Veneza, onde as mulheres o amavam pela sua bondade e formosura. Era belo e moço, de tez de opala e de olhos de turquesa, e cuja alma se espelhava no corpo. Francisco de Assis, tal como o Poeta, ao ouvir a música, se convertia na distância dum eco e não escondia a paixão que o iluminava.

Na interpretação exata do coro, em estrondo soluçante e crescente, o Santo chorava pela repercussão da música nele. Sentia um beijo em cada flor, um coração palpitante em cada galho. Pelo tempo e no espaço, durante a existência, todos cantam e dizem em súplica – amamos!

Francisco de Assis usava roupas luxuosas e tinha vida boêmia com os moços do seu tempo. Convenceu-se da ilusão de tudo e se despiu em vida, abandonando riquezas e amigos, andando longe do luxo, sem roupagens, nu de alma e de corpo. Recebeu uma túnica luxuosa e um dia numa estrada a trocou por um cordeiro de quem nunca mais se separou.

Assim, a santa pobreza que de Jesus nunca se esquecia foi a companheira dileta de Francisco de Assis, tal como sempre acompanhou os humildes na penúria, consolando-os. Francisco de Assis, em seu misticismo panteístico, volveu-se para a natureza, para os animais e os homens. Amou-os fraternalmente. Abençoava o sol que simboliza o Amor infinitude e porque é a vida e a além-vida. Falando às andorinhas, dizia-lhes que, por serem livres, não estavam sozinhas no Universo.

Orar era trabalhar e quem trabalha vive rindo e cantando. Viver é conviver. Fraternalmente, trabalhemos e cantemos, convivendo sob o mesmo teto. O homem, por instinto, vive em bando e deve ser como os pássaros e as abelhas.

Francisco de Assis fazia apelos aos lobos para que não fossem ferozes e sanguinários, porque viria o dia em que a piedade mudaria os lobos em cordeiros. Francisco de Assis dialogava com o leão que, como possivelmente era na época em que os animais falavam, se lamentava de ter sido repelido do pecado mortal, merecendo como os entes humanos as punições do inferno, da dor e do castigo perpétuo, com horror de si próprio, e louvando a bondade, a santidade e a doçura do Irmão Francisco que também se considerava ser imundo, escorraçado e vil, e se desconhecia, parecendo-se com os outros e quem sabe se talvez não fosse a reencarnação de si próprio, sem saber quem era.

Francisco de Assis, ouvindo o rouxinol a cantar, punha-se a imitá-lo, ao desafio, mas em breve se cansava e se convencia de que ele fora antes feito para ouvir e o rouxinol para cantar. Francisco de Assis via um bando de crianças e logo se juntava a ele para brincar, mas se rapazes devassos o concitavam a gozar a vida liberrimamente, murmurava preces ao Pai Altíssimo pedindo que lhes perdoasse porque nessa idade, sem a pureza da inocência, não sabem o que fazem.

Francisco de Assis, nessas orações, ainda agradecia ao Pai por tê-lo batizado com o nome de Francisco e exultava quando concitava a criatura a amar o seu criador e fraternalmente bendizer a vida. Francisco de Assis, como os homens não compreendiam ao Senhor, o louvava pelo Sol, pela Lua e as Estrelas, pelo Vento, pela Água, pelo Fogo, pela Terra, pela Vida e pela Morte, em que se manifestava a secreta energia da sua Providência.

A fonte na mata espelha o arvoredo, sacia a sede às aves. Ali, há sombra, silêncio e sonho, e Francisco de Assis quando se debruçava nela via o seu rosto. Então vinha rezar a esta quinta onde brotava a fonte. Era tal o poder da sua santidade que, segundo a lenda, as árvores se transformavam em vinhas. Também, por onde passasse, nos vinhais, tornava a uva azul em "Lacrima Christi". Aquele lugar parecia o Carmelo, com a água a fluir, os campos cheios de rosas, num ambiente doce e belo, onde se ouvia o Poverelo rimar palavras de amor. Frei Juníparo passou horas nessa paz santificada e, comovido, orando, disse:

- Como será, Senhor, a tua bondade se há um homem tão perfeito?

Enlevava-se Francisco de Assis quando ouvia uma voz de mulher a cantar canções de amor em que se falasse de Jesus, porque ambos, Jesus e Amor, se identificam, considerando que o Amor Universal, expresso naquela identidade, abrange a criação inteira. E Francisco de Assis amava, acima de tudo, as florinhas escondidas entre as ervas, porque eram anônimas na sua pobreza, tal como as freiras, noivas de Deus, cujo convento o Santo batizou com o nome de Clarissas.

A bondade célebre de Francisco de Assis chegava ao ponto de lamentar a ideia de ter querido retirar, por mero descuido, a túnica do fogo que a devorava, para aumentar as chamas. Não se devia apagar a luz duma candeia. Quando a luz oscila, alenta-se. No incêndio há o esplendor da liberdade, o calor do ânimo, o clarão da fé, não se devendo soprar a labareda na sua luta violenta de querer fugir.

Francisco de Assis, cansado e moribundo, quis, ao por do sol, ver o Universo, e concluiu que amou a tudo, menos a si. Falando a si próprio, lamentou que somente penas tivesse dado ao corpo e então, pelo sacrifício de tantas caminhadas, pediu-lhe perdão. À hora da morte, ainda quis ouvir o cântico de qualquer frade, precisava ouvir música e ouviu o coro dos anjos, na alucinação dos últimos momentos de vida.

Não obstante a admiração pelas qualidades humanitárias e pela fraternidade universal, ambas positivas, de Francisco de Assis, este santificado por interesse de perpetuidade da Igreja Católica, Martins Fontes desiludia quem o queria e quer convertido a um credo religioso, sem que se compreendesse também a universalidade da sua fantasia, criando seres, mundos, deuses e mitos.

Martins Fontes percebeu melhor que ninguém, seguindo um princípio filosófico de Pompeyo Gener, que o mundo religioso é a mais alta e perfeita obra de imaginação do homem, nascido poeta, pelo que ele não cria na existência de Deus que, para si, era a própria Natureza, era uma abstração, tal qual um perfume-luz.

O Poeta condenava a atitude dos frades que, em São João de Latrão, pediam ao Senhor que os castigasse com as penas do Inferno. Enquanto aí dentro do claustro há a mentira eterna, a tortura, o cilício, o desprezo da carne, o sacrifício inútil, lá fora há o sol pagão, a volúpia, a ridência, o gozo de viver.

Pelo amor à Perfeição, Martins Fontes se confessava, enquanto tivesse o cérebro lúcido, como ateu piedoso ou lírico anarquista, um livre pensador. E explicava: a natureza é amoral. Nela existe a indiferença. Revela-se sempre fascinante e descomposta, transformada, continuamente, em lodaçal. Só acidentalmente se desvela em ser formosa. A imperfeição corresponde à imparidade que obedece à mesma lei da assimetria.

Desesperado, ansioso, por toda a parte do Poeta procurou Deus e não o achou. Então, em seus costumeiros arrebatamentos de ironia, prestava culto ao Mestre Lucifer, Belzebu, Satan, Mefisto, que o adestrou nas malícias, nas prestidigitações, que o inspirou com a flama escarlate do seu gênio.

Martins Fontes firmava-se na diretriz filosófica de que, partindo do concreto para o abstrato, do homogêneo para o heterogêneo, o homem, evolutivamente, precisa tocar, palpar, ver para crer. Nisto se baseava o ateísmo de Martins Fontes. Todos, dizia o Poeta aos amigos íntimos, na esfera em que vibravam, sabiam quanto era amarga a sua descrença, conheciam quanto era sincera nele a negação. Tornou-se livre pensador ainda menino.

O milagre da estupefaciência fantasista, porém, inúmeras vezes o tinha feito tresvariar, como náufrago desesperado. Em desdobramento de personalidade, atingia os limites extremos da ilusão. E conceituava que era a Ideia que conduz tudo: a inteligência e a matéria, o bem e o mal, o homem e o destino humano.