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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-III-01)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 243 a 254):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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III – CAVALEIRO DO IDEAL

1

A dúvida está agora servindo ao intelecto como um instrumento dinâmico de pesquisa. Ela serve para ladear as dificuldades e obstáculos que encontramos no caminho da verdade. Estamos armados de um relativismo positivo, de uma dialética que é tanto flexível como heroica. A nossa dialética combate, vence e constrói. Sejamos fortes no meio da tempestade. Cada um de nós é um Cavaleiro que caminha na luta contra a demência, a injustiça e a impiedade que escravizam e exploram a Humanidade!

Romain Rolland.

Em todo o esforço de verdadeiro artista, Martins Fontes nos mostrava a Terra Prometida, visão paladinesca do mundo da fantasia onde vivem os sonhos mais caros da beleza e do amor.

Os escritores e os poetas devem tentar a conquista dessa terra, para sentir a atração de tão carinhosa miragem – a Arte. Mas o indivíduo devia se anular, não ser Nada, se abstrair ou se libertar da vulgar e ignóbil vida que o arrasta, implacável e cruelmente, ao suicídio, à solidão ou ao sonho! Passam a outro mundo, de estranhas paisagens, onde as linhas e as cores se confundem numa intraduzível sombra a que chamam abstração, onde nascem as ideias ou os pensamentos profundos que conduzem os passos dos que vivem na terra da Arte.

Martins Fontes pervagava neste mundo. Aqui surge o filósofo anarquista e ateu que exalta e adora os homens, de qualquer crença ou partido, os que lutam pela liberdade e pela paz, irradiando bondade e beleza, aspirando ao sonho nos rosais das estrelas… o infinito, o caos, o esquecimento esterno…

Para atingir a estas regiões, quase inacessíveis, Martins Fontes recebeu a orientação filosófica, no sentido das grandes reivindicações sociais, de seu ilustre pai, dr. Silvério Fontes. Quantas vezes me confidenciou Martins Fontes, sempre repetindo as mesmas palavras de admiração filial e gratidão eterna, de que as conversações mantidas com ele, durante longos anos, lhe valeram por um curso completo sobre as questões que hoje interessam e inquietam os homens e as nações.

O dr. Silvério Fontes foi fundador, em Santos, do primeiro órgão que iniciou os debates e a propaganda dum tema que mal se insinuava à inteligência brasileira, toda ela mergulhada na metafísica e romanticamente alheada do plano em que se processam as profundas transformações econômicas, sociais e políticas do mundo. E Martins Fontes honrou a investidura de Cavaleiro do Ideal.

Visionemos, pois, o mundo filosófico de Martins Fones, onde se formou o outro característico da sua arte imortal, despertado pelos estudos sociológicos e pela leitura dos notáveis pensadores socialistas, cujos princípios constituíram a base do humanitarismo, levado ao grau máximo da perfeição - o anarquismo. Remontemos aos antecedentes.

O dr. Silvério Fontes nasceu a 1 de fevereiro de 858, em Aracaju, no Estado de Sergipe. Depois dos estudos secundários, ele veio para o Rio de Janeiro completá-los, no curso superior da faculdade de Medicina. Lutava com transes financeiros e suportava alegre o compromisso de zelar por enorme família. Era obrigado a repartir o tempo entre os estudos e o trabalho fatigante de lecionar geometria e latim, para angariar o sustento, durante o curso.

Possuía excepcionais qualidades de talento. Com facilidade, distinção e bastante ânimo, doutorou-se em 1880, desenvolvendo a teses "A microbiologia", notabilíssimo trabalho sobre a obra de Pasteur, primeiro estudo aparecido no Brasil referente ao assunto, conforme mo contou Martins Fontes.

O dr. Silvério Fontes se especializou na microbi
[ologi]a de Pasteur e foi o iniciador e o maior propagandista das ideias do sábio francês, no Brasil, onde sorriam (e sorriem!) das inovações científicas e sociais. O dr. Silvério Fontes, no culto a Pasteur, foi influenciado pelo socialismo, resultante das descobertas microbiológicas, achando-as universais e únicas capazes de unir, fraternalmente, a humanidade.

Veio para Santos, em 1881, onde iniciou a carreira de médico, com pouco mais de vinte e três anos de idade. Já trazia alentada bagagem científica, talvez demasiada para o meio tacanho e inculto da desprezada e paupérrima cidade de Braz Cubas. Estávamos num período de grande exaltação política, com a propaganda do extremismo republicano, contra o qual o Império, conservador e monarquista hereditário, movimentava a máquina policial, a ordenar prisões, exílios e inúteis restrições à liberdade de pensamento.

A nobre filosofia de Augusto Comte formava, então, o alicerce da orientação política no Brasil. Os republicanos mais ilustres e cultos eram positivistas. Sob a influência poderosa do eminente filósofo da França, cujas ideias socialistas nasciam sob feliz desígnio, lutava-se no Brasil pela abolição da escravatura negra.

O dr. Silvério Fontes, iniciado nos princípios do positivismo, como única filosofia que satisfazia, naquela época, às suas aspirações de liberdade, fundou, em 1886, o jornal Evolução, para a propaganda intensa da abolição e da república. Nas campanhas da Abolição foi notável a sua atuação, até que os pretos ficaram libertos a 13 de maio de 1888, graças à Sociedade Emancipadora 27 de Fevereiro, fundação criada por Américo Martins dos Santos, tio de Martins Fontes, onde a raça negra encontrava a liberdade e a alforria. Martins Fontes sempre dizia afetuosamente:

- E nós, quanto devemos a essa gente afetiva, que nos embalou a infância, concorreu para a grandeza da nossa Pátria? De quanto lhe somos devedores? Dfe tudo! E nunca pagaremos!

Quando se encontrava com um preto, pobre e faminto, nas ruas da cidade, dava-lhe imediatamente qualquer moeda que tirava do bolso, consolando-o com estas palavras: "Toma! É quanto te devolvo hoje!"

E surgiam as reminiscências da abolição. Lembrava-se do dia 13 de maio. Nessa noite, toda a casa dos avós maternos de Martins Fontes esteve iluminada. Parecia um castelo, aceso, todo florido, preparado para um baile – conta Martins Fontes, num dos seus livros. Ele vestira uma roupa nova de veludo azul, trazia uma gola de renda, calçava botinas altas, amarelas, de abotoar ao lado, de couro da Rússia, muito cheirosas, compradas na "Casa do Cláudio". Na rua, os negros pulavam, batucavam… Da janela central da enorme sala de visitas, aberta para a Praça de José Bonifácio, o dr. Silvério Fontes fazia um discurso, à direita de Silva Jardim, ambos de sobrecasaca preta…

- 13 de maio! Uma data é uma ideia transformada em número!

- Vitor Hugo…

Estrugiam e redobravam aplausos… A algazarra ensurdecia… Cantavam:

Viva o Santo Antonho Bento!
Viva o Santos Garrafão!

A propaganda republicana teve início oficial na sede do Centro Democrático de Santos, com o apóstolo Silva Jardim que, na residência dos pais de Martins Fontes, marcou a data certa da proclamação da República no Brasil. Notou-se, nesta primeira fase da vida do filósofo, a larga visão dos acontecimentos políticos, apesar do ambiente colonial e feudal das cidades, das vilas e longínquas fazendas. Dedicou-se ao estudo profundo dos pensadores materialistas, sob a diretriz positivista, no rumo da ciência pura, dedicando-se à físico-química.

Proclamou-se a república. Promulgou-se a notável Carta Constitucional, inspirada nos ideais humanitários de Augusto Comte, cuja execução fiel traria ao Brasil a felicidade do regime democrático. Bastaram poucos anos para demonstrar a ineficácia da república nos destinos da nacionalidade, porque começaram a incidir nos mesmos erros da política monarquista. Muitos se desiludiram e debandaram das hostes republicanas.

O dr. Silvério Fontes se mantinha em Santos a clinicar com notável clarividência e franqueza apostolar, longe do tumulto dos políticos burgueses. Ele pressentiu o descalabro da República, cujos homens públicos esqueciam os problemas fundamentais, para discutir questões familiares e individuais, em vergonhosas polêmicas que findavam nas reconciliações escandalosas ou nos assassínios de rivais partidários.

O dr. Silvério Fontes se abeberou, no solitário gabinete de trabalho, das doutrinas materialistas. Para ele, havia duas maneiras de filosofar ou de coordenar e regular os conhecimentos: o método objetivo referente ao mundo donde nos vem as sensações à inteligência, e o método subjetivo referente ao homem que forma um mundo à parte por intermédio da imaginação mais ou menos exuberante.

Ele pensava, com Buchner, que não há força sem matéria, nem matéria sem força; que a matéria é eterna, ilimitada e infinitamente divisível, com leis universais e imutáveis que a ideia de Deus, como energia absoluta e criadora, afastado da Terra, criando-a e governando-a, era simples abstração; que a vida é a combinação particular dos elementos da matéria, e que se efetuou quando se apresentaram circunstâncias favoráveis à sua produção, julgando-se que os seres vivos sempre tivessem existido; que o cérebro é o órgão do pensamento, e a inteligência depende da grandeza, forma e composição química daquele cujo desenvolvimento se processa pelo exercício, segregando ideias como o fígado a bílis.

Seguia os princípios fundamentais de Gall, fundador da fisiologia cerebral, que os delineou assim: o cérebro é a sede das funções intelectuais e morais; o cérebro é um sistema ou reunião de órgãos, dos quais cada um representa uma faculdade.

Ora, Augusto Comte atribuiu ao cérebro as funções do sentimento ou coração, da inteligência ou espírito criador e expressivo, e do caráter ou atividade, a cujo conjunto se chama em sentido abstrato, a alma, estudo básico da psicologia. O cérebro recebe do exterior impressões que lhe são alimento, estimulante e regulador. Para conseguir isso, o mundo exterior se apresenta simples e estável, de forma a que o cérebro coordene as ideias e possa achar as lies pela observação direta.

O cérebro e o estômago exercem ambos as mesmas funções de assimilação, um de impressões de linhas, cores e sons, outro de alimentos sólidos e líquidos, que digerem e transformam em ideias e sangue.

As ideias surgem das imagens ou impressões transformadas em lembranças, com as quais, combinadas ou associadas, jogamos ao sabor da fantasia. As ideias mais profundas e afastadas da realidade nada mais são que ideias baseadas na realidade. O poder criador se fundamenta em compor, remover, aumentar diminuir os materiais fornecidos pelos sentidos e pela experiência. Os materiais dos pensamentos são extraídos dos sentidos exteriores e do sentimento interno. Enfim, a função da alma é combinar e misturar os sentidos e os sentimentos.

Darwin e Spencer criaram a teoria do evolucionismo, sobre a qual Haeckel formulou o monismo ou teoria mecânica pela que se consideram as formas da natureza orgânica e inorgânica, produtos necessários das forças naturais, e se vê em cada espécie animal ou vegetal, não o pensamento dum criador pessoal, mas a expressão transitória duma fase da evolução mecânica da matéria, a expressão duma causa eficiente, duma causa mecânica.

Com este material imenso de descobertas físico-químicas, surge o seu unificador e sistematizador – o filósofo insigne de Montpellier, Augusto Comte. Ele estabeleceu a filosofia positiva como síntese e coordenação dos conhecimentos humanos ou, em lugar da vontade divina, a explicação real do mundo e do homem por intermédio de leis naturais.

O caráter fundamental desta filosofia é considerar todos os fenômenos sujeitos a leis naturais e invariáveis, esforçando-se em reduzi-las ao menor número, considerando as investigações das causas tanto primárias como finais absolutamente inacessíveis, e admitindo somente a observação e a indução empírica ou comparativa, assim também a dedução baseada nos resultados da observação, no caminho certo de alcançarmos a Verdade. Em consequência deste princípio, o positivismo é a síntese subjetiva, sob o ponto de vista humano.

O materialismo deu impulso à ciência e apresenta dois aspectos: concreto, porque procura partir dum fenômeno particular para outros, como "a água é o princípio de tudo", de Tales; abstrato, porque coloca os fenômenos sob a mesma e única lei, como a de Pitágoras, que disse que os números são o princípio de tudo, de quem Descartes foi o continuador.

A síntese objetiva ou materialismo só se consegue tomando-se conhecimento perfeito do Universo, o que é impossível, porque pretende submeter às leis da forma e do movimento todos os fenômenos complexos da física, da química e da biologia.

Newton deu o primeiro golpe no materialismo, ou na lei da forma e do movimento, com a sua noção de matéria, com que determinou que cada classe de fenômenos corresponde a leis particulares. Temos, pois, ao lado das leis matemáticas, as leis físicas, químicas e biológicas, e, depois de Augusto Comte, as leis sociológicas e morais.

Parece que nos tempos contemporâneos predomina o materialismo fisiológico que baseia nas leis biológicas todos os fenômenos sociais e morais, em que se sobrepõem as leis do mais forte nas espécies animais e nas sociedades humanas, cujos princípios arruinarão a humanidade.

O positivismo tentou evitar essa tragédia com a síntese subjetiva que parte da humanidade, convergindo com esta todos os conhecimentos que lhe tragam utilidade.

A ciência se acha dividida em duas correntes: o materialismo que pretende descobrir o objeto material que deu origem e é a causa primeira de tudo que existe, numa explicação global do Universo, ou seja uma síntese objetiva; e o positivismo que, sem repelir a causa primeira, inencontrável em virtude da extrema complexidade do mundo e da imperfeição dos nossos sentidos, desnecessária para a finalidade da urbanização racional da vida humana sobre a terra, em lugar de procurar uma coordenação concreta confinada ao mundo material, faz uma coordenação abstrata confinada ao homem e que se chama síntese subjetiva, porque é uma doutrina científica que proporciona o aumento progressivo do bem estar material, intelectual e moral de todas as sociedades humanas, e que aceita todas as modificações oriundas do desenvolvimento crescente das ciências.

Positivistas e materialistas concordam, no entanto, com o método científico para o descobrimento das verdades ainda desconhecidas, e, ante a complexidade das relações humanas atuais, com a formação indispensável duma nova moral, baseada na ciência.

Ambos divergem no processo de organização dessa moral científica. O materialismo, fundado no princípio do absoluto, caráter essencial da teologia e da metafísica, dá respostas definitivas sobre todas as questões – origem e fim da matéria, essência dos corpos, a formação original dos seres, organizando tudo em série homogênea, encadeando sem solução de continuidade, quer parta da matéria amorfa omnigeratriz, quer parta duma indivisível molécula – o átomo.

E o átomo existe realmente na Natureza e não como abstração do nosso espírito. O próprio materialismo abstrato dos matemáticos submete as leis dos fenômenos mais complexos e proeminentes aos fatos mais gerais e simples, como querendo que os fenômenos vitais e morais se subordinem às leis mecânicas. O fim é derivar os acontecimentos duma só categoria, e as leis dos fenômenos duma lei matemática.

Augusto Comte, depois de cavoucar os alicerces da filosofia positiva, formulou a sua base em duas concepções: a lei dos três estados e a classificação hierárquica dos conhecimentos humanos. A inteligência humana, nas diversas esferas de atividade, passou por três estados: o teológico ou fictício, o metafísico ou abstrato e o positivo ou científico. O espírito humano possui assim três modos de filosofar, em que se nota que o teológico é o ponto de partida necessário da inteligência do homem, que o positivo é o estado fixo e definitivo, enquanto o metafísico serve de estado de transição entre um e outro.

O espírito humano, no estado teológico, pesquisando a natureza dos seres, as causas primeiras e finais, a origem e destino do mundo visível, atribuiu os fenômenos à ação direta e contínua de agentes sobrenaturais.

No estado metafísico, que em essência é variante do estado teológico, em lugar de agentes sobrenaturais, o espírito supõe forças abstratas, verdadeiras entidades personificadas, inerentes aos diversos seres do mundo, e capazes de produzir todos os fenômenos observados, cuja explicação consiste em assinalar para cada um a respectiva entidade.

No estado positivo, o espírito renuncia à pesquisa inútil das noções absolutas de origem e destino do Universo e das causas íntimas dos fenômenos, para se dedicar ao estudo das leis efetivas, isto é, das relações invariáveis de sucessão e semelhança nos referidos fenômenos.

Tal como a filosofia em geral, cada ciência em particular passa por estes três estados. Na época teológica todos os agentes sobrenaturais que presidiram aos fenômenos serviram de ponto de referência às longas observações e experiências dos que, mais tarde, na época positiva, descobriram as respectivas leis, através das abstrações da época intermediária da metafísica, em virtude da lentidão da marcha da inteligência humana, no esforço para o progresso no campo da ciência.

As ciências, conforme a lei dos três estados, surgiram e se desenvolveram em épocas diferentes, com espaços irregulares de anos e até de séculos. Ante o desenvolvimento desigual dos diversos ramos do saber humano, Augusto Comte organizou a classificação das ciências, pela ordem ascensional da sua complexidade, ao passo que a generalidade diminui, entrelaçadas pelas verdades de todas as ciências que se sucedem.

A filosofia positiva, cujo caráter fundamental é observar todos os fenômenos como sujeitos a leis naturais imutáveis, tem por escopo mostrar os laços de parentesco na hierarquia das ciências. Essa hierarquia só foi possível com o desenvolvimento e estabelecimento de todas as ciências positivas. Os trabalhos humanos são de duas espécies – especulativos e ativos. A filosofia se baseia nos trabalhos especulativos. As ciências, nos ativos -, cuja exposição se faz por dois processos: histórico e dogmático.

Historicamente, os conhecimentos surgem na ordem em que se obtiveram através dos tempos. Dogmaticamente, as ideias se criam independentes das conquistas anteriores do pensamento humano. Mas qualquer exposição se completa usando od sois processos. Assim procedeu Augusto Comte com a lei dos três estados e a hierarquia das ciências, pelo seu encadeamento racional, começando pelo estudo dos fenômenos mais gerais e simples, e seguindo-os do estudo dos fenômenos mais particulares e mais complexos.

A matemática, pela generalidade dos fenômenos e encerrando o processo lógico com que as outras ciências se constituirão, ocupa o primeiro lugar. Imediatamente, liga-se a astronomia, juntando os fatos da gravitação. A esta sucede a física que depende de ambas e compreende: a barologia, a termologia, a acústica, a ótica e a eletrologia, sendo esta o traço de união entre a física e a química. A química junta as suas leis às da física, da termologia e da eletrologia. A biologia aumenta as leis das ciências precedentes com um grupo de leis especiais. Finalmente, a sociologia ou física social, a menos geral e a mais complexa das ciências, depende de todas as leis das ciências matemáticas, cosmológicas, físico-químicas e biológicas. Vemos assim ciências concretas se ligarem às ciências abstratas.

A humanidade levou séculos, em lenta marcha, a acumular o patrimônio da ciência. A ciência nasceu na Grécia, 6º século A. C., de onde se espalhou por toda a Terra. As ciências abstratas foram causas, consagrando-se ao estudo das leis que regem os fenômenos, ligando-os entre si.

Augusto Comte englobou as leis especiais das ciências em quinze leis gerais, universais, que representam a fatalidade que pesa sobre a humanidade, das quais seis se referem à influência do mundo exterior e material sobre o entendimento humano, três à influência do mundo exterior e vivo sobre o mesmo entendimento (três leis sociológicas da sociabilidade, da inteligência e da atividade) e seis absolutamente universais que englobam as nove precedentes.

A filosofia primeira estuda estas quinze leis. A filosofia segunda trata das leis próprias a cada fenômeno. A filosofia terceira estuda a indústria abstrata, passagem da teoria à prática. Estas três filosofias formam a filosofia positiva. Sabemos que o arranjo dos fenômenos é imutável, mas também podemos influir para lhes modificar a intensidade, de que provém a faculdade que possuímos de melhorar as nossas condições por iniciativas próprias, em cuja ação está a Providência.

A finalidade da sociologia era alcançar ou construir uma política que, considerando os povos irmãos, os conduzisse à civilização terrestre suprema, por etapas ascendentes. Augusto Comte, depois de estudar as sociedades humanas de todos os tempos e lugares da Terra, de descobrir a lei dos três estados e de fundar a física social, expôs a organização da futura sociedade sociocrática.

O esboço desta sociedade se formou lentamente desde o século XIV, para substituir mais tarde a sociedade católico-feudal. Aquela se baseará no princípio da separação completa dos dois poderes – espiritual e temporal -, em que aquele dirigirá a vida intelectual e moral, e este a vida ativa. A sociedade ainda não se estabeleceu, em todo o mundo, porque os espíritos se encontram divididos ou oscilantes entre a teologia, a metafísica e o positivismo, quando estas doutrinas não estejam contidas no mesmo indivíduo! Mas a doutrina científica positiva alcançará a vitória porque as suas verdades científicas se impõem universalmente. Há crescente necessidade duma filosofia positiva, tal como duma nova política e duma nova moral.

O antigo regime social, como vimos, se caracterizava filosoficamente pelo espírito teológico, e politicamente pelo clero, pela monarquia de direito divino e pela casta aristocrática, à qual se juntou mais tarde a casta burguesa, saída das comunas e das corporações de artes e ofícios. A decadência da teologia começou desde a invasão dos árabes na Europa, onde eles introduziram as ciências de observação, originárias da Grécia, predominando a filosofia de Aristóteles. Essa decadência se acelerou no século XVI, com a descoberta de Copérnico e a demonstração de Galileu e Bruno sobre o duplo movimento da Terra.

Depois, o progresso das ciências positivas, desde essa época aos nossos dias, com Darwin, Marx, Pasteur, Freud, Einstein, completou a obra de demolição. Bacon, Descartes e Galileu afugentaram a crença teológico-metafísica. As descobertas científicas provieram da observação e da experiência. A teologia foi lentamente eliminada das matemáticas, da mecânica, da astronomia, da física e da química. Finalmente, é também, no século XIX, eliminada da sociologia e da moral, seus últimos redutos.

A teologia jamais ressurgiria pela incompatibilidade com as concepções positivistas que procedem da imutabilidade das leis naturais e da previsão racional dos fenômenos sem o arbítrio divino, da possibilidade de modificar a nosso favor a intensidade destes fenômenos, e da imperfeição, às vezes grosseira, da ordem real, cosmológica, biológica, sociológica e moral, que percebemos com mais clareza e mais inteligência sob as luzes dos princípios positivos.

Entretanto, aqueles que abandonaram antigas crenças precisam da orientação duma nova filosofia que lhes dê uma concepção geral do mundo, do homem e da sociedade, os três objetivos universais e constantes da nossa atividade mental e prática. Esta concepção foi, através dos séculos, fetichista, politeísta, monoteísta, metafísica e finalmente positivista.

Da mesma forma, a ordem política do antigo regime monárquico e teológico não se perturbou menos que a ordem mental dos tempos modernos. Conseguiu-se eliminar a antiga concepção filosófica pelo novo sistema, no entanto nada se fez para modificar o regime político nos seus alicerces orgânicos.

A Revolução Francesa, síntese dos processos filosóficos dos enciclopedistas, destruiu, como excelente máquina de guerra, mas não teve capacidade para construir. A soberania popular, em substituição ao direito divino, continuou com os mesmos defeitos deste, tirando-se o despotismo da mão dum só para entregá-lo à multidão ou ao grupo, ambos sempre tumultuosos e incompetentes. Donde se conclui que há necessidade duma ciência social que nos permita saber para prever a fim de prover, restaurando a ordem, a estabilidade e o curso pacífico do progresso das nações perturbadas pela Revolução, tendendo para a ciência.

Ora, esta ordem, determinada pela física social estática, fundamenta-se na indústria. A indústria é o conjunto do poder do homem sobre a natureza, obtido pela ciência abstrata. Utilizar-se-á a ciência, para satisfação das necessidades materiais diárias, procurando o bom e o útil. A indústria é também o conjunto dos produtos da atividade humana. Desde a antiguidade e a idade média até o século XV, a indústria não pôde se desenvolver, devido à influência teocrática, teológica e militar.

Depois do século XV, progrediu, com a condição natural de sobrevivência de que o homem deve produzir mais do que consome, cujo produto deve ser de espécie que se conserve durante muito tempo. Este excesso seria o capital. Se o crescimento do capital fosse acompanhado duma instituição intelectual e moral qualquer, isto é o poder espiritual e temporal como duas forças autônomas e harmoniosas, isentas de burocracismo, que controlasse a distribuição desse capital, teríamos resolvido o problema social. Incorporar-se-iam os proletários à sociedade moderna.

Infelizmente, a criação da grande indústria privada, no século XVIII, separou os interesses e os direitos de patrões e operários, em virtude dos progressos científicos que aumentaram a produção sem que a acompanhasse o poder que a organizasse racionalmente, cuja legitimidade não vem do direito divino nem do popular, mas da sua harmonia com as necessidades de certa situação dada.