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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - O "Vulcão" - BIBLIOTECA NM
Martins Fontes (13-II-10)

Clique na imagem para voltar ao índice da obraO livro Martins Fontes, do escritor e historiador Jaime Franco, foi publicado em agosto de 1942, tendo sido composto e impresso nas oficinas da Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais Ltda., da capital paulista, com capa produzida por Guilherme Salgado.

 

A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio em fevereiro de 2014, pelo secretário Raul Christiano, para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 176 a 183):

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Martins Fontes

Cavaleiro do Amor

Cavaleiro da Arte

Cavaleiro do Ideal

Jaime Franco - SANTOS - 1942

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II – CAVALEIRO DA ARTE

10

Filinto de Almeida, velho amigo íntimo e mestre insigne de Martins Fontes, esteve em Santos de seis a oito de julho de 1932. Foi um grata notícia, para a cidade, quando se soube que era seu hóspede o grande poeta Filinto de Almeida, um dos fundadores e um dos eminentes imortais da Academia Brasileira de Letras.

Há muitos anos que nos visitara e não voltara a Santos. Agora, de passagem para o Rio de Janeiro, onde reside, quis rever lugares antigos. Da mesma forma, os seus admiradores correram a visitá-lo, o que não foi difícil porque, fatalmente, andaria em companhia de Martins Fontes, amigo querido da família.

A minha curiosidade de conhecer mais uma notável figura das letras brasileiras e o aviso telefônico de Martins Fontes movimentaram-me em direção onde Filinto de Almeida estivesse hospedado. Soube-o no Hospital do Isolamento, onde se avistara com Martins Fontes que, na ocasião da minha chegada, não estava ainda porque saíra a serviço da Sanitária. Não demoraria.

Filinto de Almeida descansava na sala de visitas, lendo um jornal. Apresentei-me. Deparei um robusto velhote que, sorrindo, me declinou logo o nome movendo os fartos bigodes brancos:

- Filinto de Almeida; muito prazer em conhecê-lo; pois é, espero Martins Fontes para irmos dar umas voltas pela cidade…

- Escolheu um belo dia.

- De fato. O sol hoje dignou-se aparecer. Ontem, quando deixei São Paulo, encontrei a Serra do Mar sob nevoeiro denso e não pude apreciar a famosa paisagem.

A coversa deslizou sem interesse de parte a parte até a chegada de Martins Fontes. O Poeta apareceu menos alegre e mais acabrunhado, com luto recente na família. Na impossibilidade de acompanhar Filinto de Almeida nos seus passeios projetados, Martins Fontes pediu-me que o substituísse, que o levasse às praias, aos pontos pitorescos. Saímos juntos, eu e Filinto de Almeida. Tomamos o bonde elétrico que seguia para a praia.

- Esteve muito tempo ausente do Brasil?

- Quase oito anos. Acompanhei minha filha Margarida à Europa, onde foi aperfeiçoar os estudos, e, como sabe, na qualidade de pensionista da Escola de Belas Artes do Rio, porque obteve o Prêmio de Viagem, no final do curso.

- Conheço-a daqui, dos saraus literários.

- É verdade. Deu aqui vários recitais, criando esse sutil gosto pela arte de dizer versos com sentimento e dramaticidade. Repetiu-os, depois, em Portugal, Espanha, França e Egito, propagando dessa forma os poetas brasileiros. Na França, pelo menos, foi aplaudidíssima, recitando ora em francês, ora em português. Os franceses gostam de ouvir o nosso idioma, doce, harmonioso. Eu e minha mulher ficamos, pois, em Paris alguns anos…

- Sempre na atividade literária!

- Decerto. Ela na prosa e eu nos versos. Trouxemos muitos trabalhos. Revivemos outras obras, entre as quais o romance A Casa Verde que a Editora Nacional publicou agora, e que eu e minha mulher escrevemos juntos, ou antes, em cuja obra colaborei.

- É obra recente.

- Não é bem recente. Somente agora é que se publicou em volume, porque há muitos anos apareceu em folhetins num jornal carioca. Como sabe, ainda é um problema insolúvel conseguir editores no Brasil. Os literatos ou publicam à custa dos próprios recursos financeiros, ou guardam na gaveta as obras manuscritas.

Agora em São Paulo escrevi muitos sonetos e outras poesias que coligirei em volume, brevemente. Trouxe de Paris o meu último livro, editado lá, Colunas da Noite, coletânea de crônicas, prosa desataviada, lembranças da minha vida de jornalista.

Estávamos na Ponta da Praia. Do outro lado, na Ilha de Santo Amaro, repousava das canseiras dos tempos coloniais o intemerato guardião da integridade territorial do Brasil, o velho forte filipino, indiferente aos navios que entram e saem do porto de Santos, singrando as mansas águas do canal por entre a vegetação densa das margens lodacentas que tresandam a maresia. Dali seguimos até São Vicente, onde Filinto de Almeida bebeu água da Biquinha do Padre Anchieta, e, atravessando a Ponte Pênsil, ao porto de Tumiaru, foi apalpar, carinhosamente, as vetustas pedras da primeira Alfândega da América.

Evocou-se a época de Martim Afonso de Sousa, a chegada das naus à barra de Santos, quando pela primeira vez fundearam perto onde se ergue a fortaleza de Santo Amaro, e a fundação da Capitania de São Vicente.

Voltamos à cidade pelo lado do Matadouro. Aqui emocionou-nos o inesperado episódio dum estouro da boiada em miniatura, com a manada que os tropeiros encaminhavam pela estrada, aos gritos. Os bois, ao se aproximarem do Matadouro, cismaram no fim que os esperava e se dispersaram em correria louca, investindo contra o bonde em que viajávamos. Depois de alguns minutos de susto, entre os passageiros, pudemos continuar a marcha enquanto os bois fugiam pelo mangue aos saltos, enfiando as patas no lodo. Do Valongo, levantava-se a fumaceira do café queimado. Filinto de Almeida exclamou:

- Que barbaridade! Queima-se, estupidamente, tanto café que representa muito dinheiro e imenso trabalho. E para o queimar há de se gastar mais dinheiro…

- São novos princípios de economia política!

- Não acredito. Com essa mania da valorização do café, estragaram com os mercados estrangeiros, e São Paulo se arrisca a perdê-los com a concorrência doutros produtores. Ora, enquanto os outros desconheciam que o café dava dinheiro, não cuidavam de o plantar, mas quando viram o Brasil subir os preços na ânsia de maiores lucros, trataram de o imitar, de tal modo que hoje são muitos os países que o cultivam. A nossa exportação do ano passado foi a menor de quantas nos apontam as estatísticas. Neste decrescendo não sei onde iremos.

Contei-lhe o pânico da praça de Santos com a notícia do desvio dos embarques de café para o Rio de Janeiro, pela Estrada de Ferro Central, e as causas prováveis… mas conversa sobre negócios de café com um Poeta, é muito prosaísmo junto.

- Aqui é o Cemitério da Filosofia.

- Da Filosofia? É, está de acordo. Filosofia do Além Túmulo.

O bonde elétrico rumava agora em direção ao centro da cidade, apostando corrida com um trem expresso de São Paulo, lado a lado, a poucos metros de distância. Desviou-se a conversa para a Academia Brasileira, para os homens de letras, o movimento literário. A nossa magna Academia de Letras recebe sempre novo imortal com a pompa dos grandes dias, entre flores, sorrisos, muita alegria e aplausos. A sala é pequena para receber graduadas figuras da sociedade carioca.

Os poetas, os escritores, os jornalistas e toda a fauna intelectual se apresentarão em grande gala. Ouvirão, com circunspecto respeito, a oração de sapiência do plumitivo, ao qual um confrade responderá, felicitando a vinda de novo elemento à confraria. Termina-se a festa. Encaixotam-se os aplausos e os sorrisos. Voltam à normalidade da vida quotidiana, monótona. Até aqui não há novidades nem originalidades. É uma recepção mais brilhante, mais celebrada, nada mais.

Pois bem, o escritor que alcançou na sua carreira este elevado prêmio, continuará a lutar, como outrora, para vencer a ojeriza dos editores. E a Academia continuará impassível a receber as gordas rendas da herança Francisco Alves…

Na Bolsa Oficial de Café, Filinto de Almeida se deteve a examinar os mostruários dos tipos de café da produção brasileira e as respectivas estatísticas. Entrou no recinto das sessões da Bolsa, onde corretores de café, síndicos, secretários e presidente se reúnem para fixar as cotações de café, para comprar e vender no termo, determinando a situação do mercado de acordo com a lei da oferta e da procura. As poltronas dos corretores e as mesas do presidente e síndicos estão dispostas octogonalmente. Cada corretor oficial tem ante si uma coluna de madeira servindo de mesinha para anotação das cotações de cada mês.

Filinto de Almeida alteou os olhos, girando-os pelas galerias do público, fixando-os no vitral quadrilátero do teto. No vitral, com esforço supremo para levantar a cabeça atarracada no tronco por um pescoço curto de atleta, Filinto de Almeida se extasiou a admirar o tríptico representando O Ciclo do Ouro e das Esmeraldas, tendo numa parte o símbolo da Agricultura e da Abundância, noutra a visão do Anhanguera vendo surgir das águas a mãe do ouro e as mães d'água, e na última outro símbolo da Indústria e Comércio, rodeadas por figuras eminentes da história de Santos e de São Paulo.

Na parede lateral por trás da mesa do presidente da Bolsa, envolvidos pela penumbra do solene e sombrio salão, há mais três quadros ou painéis, dois menores e um tríptico. Os menores representam a cidade de Santos no século XX, o porto e o aspecto das suas construções nos bairros antigos do primitivo povoado. O tríptico é a fundação da vila de Santos em 1545 quando Braz Cubas lê o foral da vila e inaugura o pelourinho perante as autoridades civis, religiosas, e o povo, próximo à praia. Todos aqueles trabalhos artísticos que embelezavam o salão do Palácio da Bolsa foram pintados por Benedito Calixto, o grande pintor e historiador paulista.

À saída, Filinto de Almeida quis contemplar a fachada com as suas oito pançudas e argoladas colunas de pedra, sustentando pesado frontão com uma figura humana de cada lado, uma o símbolo do Comércio, outra o da Agricultura, demasiadamente decotada com um seio à mostra. O Poeta sorriu maliciosamente.

No Panteão dos Andradas, Filinto de Almeida reverenciou a memória do Patriarca e dos três irmãos, dos quais ali repousam os ossos. Ficamos alguns minutos envoltos na penumbra sepulcral do marmóreo Panteão a invocar os antepassados, a sentir a emoção de grandeza dos feitos históricos daqueles que formaram a nacionalidade brasileira.

- Logo à noite -, disse Filinto de Almeida quando acabava de escrever o nome no livro dos visitantes do Panteão – vou ler alguns versos meus na casa de Valdomiro Silveira, e amanhã visitarei a Humanitária.

Santos não avaliará quanto impressionou a Filinto de Almeida o seu progresso, as perspectivas das paisagens e o encanto das avenidas centrais e da beira-mar. Ele sentiu tristeza quando soube que estávamos na iminência duma catástrofe:

- Santos sem o comércio de café… que será? A sua ruína! Mas tenho fé… esperemos!

E deixei-o a sós, com o peso dos seus setenta e cinco anos que lhe embranqueceu os cabelos, a caminho do Correio, para enviar um telegrama a d. Júlia Lopes de Almeida. Alguma palavra saudosa, um último pensamento de amor, talvez.

Júlia Lopes de Almeida, consagrada romancista, escreveu mais de trinta obras literárias, destacando-se A Família Medeiros, Correio da Roça, Funil do Diabo, Passaro Tonto, Os Outros, Casa Verde escrito com Filinto de Almeida, A Árvore com o filho Afonso Lopes de Almeida.

Júlia Lopes de Almeida e Filinto de Almeida mantiveram atividade intelectual fecunda durante cinquenta anos, sem esmorecimentos, sob o impulso do amor conjugal, com os mesmos ideais de beleza, sem descuidos dos deveres do lar e da educação primorosa dos filhos. Muitas gerações literárias passaram pelo hospitaleiro solar de Santa Teresa que Martins Fontes frequentou assiduamente, como filho adotivo e esperançoso poeta, em cujas tertúlias deslumbrava, com recitais infindáveis de poesias, os consagrados poetas e escritores daquela época.

Como prometera, Filinto de Almeida se apresentou em casa de Valdomiro Silveira, comigo e com Martins Fontes, que nos fora buscar a casa, de automóvel. O delicioso poeta de Cantos e Cantigas e Lírica leu, então, as últimas poesias e, por fim, um poema de certa envergadura filosófica que comprovaram os méritos do eminente lírico luso-brasileiro, através de concepções maravilhosas. Durante uma hora ouvimos os versos, enlevados, emocionados.

Filinto de Almeida acariciava a pasta dos originais. Tirava cada folha, com o carinho dum pai dedicado, e lia em voz forte, quente, enquanto as mãos finas de artista tremiam. O grande poeta, mergulhado na fofa poltrona da sala de visitas de Valdomiro Silveira, cercado de numerosos ouvintes, vencia o cansaço, pelo prazer de encantar, subindo a voz a cada "bravo!" de Martins Fontes.

Do meu canto, então, ó pessimista!, editava na sorte daqueles versos. Quando Filinto de Almeida voltasse ao Rio de Janeiro, iria publicá-los, forçosamente, porque os sabia aplaudidos pelos amigos, poetas e escritores do Estado de São Paulo que o homenagearam e só lamentaram a estadia tão breve.

Nunca mais soube de Filinto de Almeida. É possível que tais mimos líricos continuem guardados na pasta, onde, em horas de ócio, o poeta vai ler e reler os versos, endireitar as folhas, comprimi-las entre as mãos, notar a falta duma vírgula, substituir uma palavra vulgar ou repetida e ouvir a própria voz soletrando as palavras, para lhes fiscalizar qualquer desarmonia.

Onde culmina a ironia da sorte, é que ainda temos por este Brasil imenso quem se levante a proclamar as excelências da nossa literatura moderna, que estancou pela falta absoluta dum gesto magnânimo dos industriais do livro.

A própria Academia Brasileira de Letras possui, entre os seus componentes respeitáveis, quem se indigne contra a ineficácia da propaganda do livro brasileiro nos mercados internacionais e nacionais, e contribui para isso editando milhares de manuscritos dos imortais falecidos e vivos, preparando a bibliografia de numerosas edições raras dos primeiros livros da literatura, e incentivando os novos intelectuais com parcos prêmios às obras laureadas.

Não basta. Ninguém se convence de que a parte prática da literatura é a principal, quer dizer a publicação dos trabalhos literários e científicos. Quando vemos, nas montras das livrarias, livros que acabam de aparecer como novidades, ficamos atônitos sem decifrar o mistério. Indagamos logo quem foi o editor ou se o autor pagou a edição do livro. Não é sem razão que certas pessoas felizes, alheias ao martírio dos pequeninos e solitários obreiros da civilização humana, sorriem para esta classe desafortunada dos intelectuais, e lhe baforejam aos ouvidos:

- Meu caro, letras são tretas!

O próprio Martins Fontes, um dos maiores poetas sul-americanos, sabia por dura experiência o que representava para si esta humilhante situação, preferindo muitas vezes dar os seus originais a quem ousasse editá-los. Certa vez, recebeu do querido amigo e poeta Bastos Tigre o seguinte recado:

- Devolvo-lhe o manuscrito dos seus primorosos versos porque não encontrei editor!!!

O mesmo acontecia a Filinto de Almeida e a tantos que no Brasil se deixam arrastar pela irresistível tentação de fazer literatura. Filinto de Almeida visitou a Humanitária, percorreu as dependências e quedou-se na biblioteca a ver livros antigos e a folhear preciosas revistas onde colaborou durante a mocidade. No Livro de Honra, com letra grossa e quase hesitante, trêmula, escreveu as impressões da visita:

"Fui dos primeiros que no Brasil se bateram e de algum modo se sacrificaram para que os empregados no comércio – que eram então verdadeiros mártires – obtivessem algumas das regalias de que gozavam as demais classes. O jornal O Domingo, de que fui redator, propugnou longa e energicamente a fundação de uma associação da classe.

"Nada conseguiu imediatamente; mal, entretanto, rompeu um pouco de liberdade em favor da nobre classe caixeiral, como se dizia no estilo empolado da época, surgiu das cinzas d'O Domingo a Associação dos Empregados no Comércio do Rio de Janeiro, da qual sou atualmente sócio remido.

"Não lhe levantei as paredes, mas levei algumas pedras para os seus robustos alicerces. Sabido isto, podem os meus antigos colegas imaginar com que prazer contemplo e admiro agora esta grande, bela e próspera obra que é a Sociedade Humanitária de Santos… Não é sem uma espécie de orgulho que saúdo aqui os seus fundadores, mortos ou vivos, e os seus atuais sustentadores.

"À classe a que pertenci, agora elevada e dignificada pelo esforço de algumas gerações, eu, como antepassado sobrevivente, peço licença para deixar neste livro o meu humilde nome. Santos, 7 de julho de 1932. (a) Filinto de Almeida."

No ano anterior, em agosto, o filho de Filinto de Almeida, o poeta e jornalista Afonso Lopes de Almeida, passou também alguns dias em Santos e aproveitou a estadia para se submeter a doloroso tratamento de um panarício, na Beneficência Portuguesa, sob os cuidados de Martins Fontes.

Afonso Lopes de Almeida viveu durante muito tempo em França, na companhia de seus pais. Percorreu a Europa várias vezes. De longe, nunca se esqueceu da Pátria e, com o carinho de filho saudoso, mandava-lhe cartas que os jornais publicavam. Poucas pessoas há que não leram estas missivas, enlevando-se com a finura da prosa que ora se rendilhava na descrição de obras de arte e de monumentos, ora se coloria na pintura de paisagens longínquas, estranhas, misteriosas.

Chegou o dia da volta ao Brasil adorado, àquele mesmo Brasil que ele soube descrever em conferências, palestras, crônicas, ao mundo cosmopolita de Paris. Era ver como ele se arrebatava, agigantando-se com a grandeza das imagens, na ânsia de traduzir mais e melhor os milhares de quilômetros quadrados da terra natal.

Os olhos saudosos pousaram, então, na idolatrada baía da Guanabara. Afonso Lopes de Almeida, perante tão subjugadora paisagem, balbuciou, com certeza, uma prece, recobrou a alegria da infância e sentiu funda emoção de bondade a traspassá-lo, em arrepios. Rio de Janeiro, a terra carioca, os coqueiros, os morros, os rios, as avenidas à beira-mar, eram só poemas de beleza e de bondade.

O espírito de aventura arrastou-o por esse mundo, em peregrinação, à busca de ilusões ignotas, mas bem depressa compreendeu o engano falaz das viagens e do afastamento, porque a saudade o perturbava, o cruciava com a miragem da terra onde nascera, ao contemplar outras paisagens fúnebres, áridas, descoloridas, tal como num deserto imenso, sem a semelhança da luz, da cor, da música do Brasil.
A bondade brotou do saudoso viver nesse deserto. Que é a terra do exílio senão um deserto?! Afonso Lopes de Almeida revelou-se-nos Poeta, e da bondade escreveu o Evangelho, concitando-nos ao humano panteísmo.

Em Santos, o ilustre poeta veio reviver outros tempos, contemplar os encantos das nossas praias, retemperando o espírito e os nervos de abalos morais e dores físicas. Tal como faria seu ilustre pai um ano mais tarde, ele prestou homenagem ao Patriarca da Independência inclinando-se perante o túmulo de mármore branco cercado de grades, de José Bonifácio de Andrada e Silva, sobre o qual paira uma lanterna com luz azul-avermelhada, no Panteão.

Esteve na Sociedade Humanitária dos Empregados no Comércio. Na biblioteca da Humanitária passou horas esquecidas na leitura e na meditação, enquanto Martins Fontes atendia aos associados no Posto Médico. Deixou exarado no livro de ouro da Sociedade sinceras impressões de entusiasmo pela obra duma classe humilde, sofredora, honesta e inteligente: o guarda-livros, o esforço do esquecido herói na luta pelo engrandecimento do Brasil. Aquele monumento conventual traça, na vida do trabalhador, certo paradoxo, certa ironia… mas é uma afirmação do espírito de solidariedade humana.

Afonso Lopes de Almeida, tão bondoso e tão alto como São Cristóvão, carregaria a Humanitária às costas, atravessando a vau o rio caudaloso dos egoístas, só pelo gosto leve de espalhar benemerência por toda a parte!

Martins Fontes me anunciou, em junho de 1937, que Filinto de Almeida recebera justa consagração, no Rio de Janeiro, de todos os intelectuais, para a qual ele enviara uma poesia laudatória, quando o mestre e eminente Poeta completava oitenta anos de existência e festejava o cinquentenário da publicação do primeiro livro de versos – Lírica. E Martins Fontes, muito doente e acabrunhado, leu-me o último soneto de Filinto de Almeida, com lágrimas nos olhos:

"Não cantes mais, velhinho, cerra a boca
E recolhe-te à tua soledade:
Não suspeitas talvez que a orelha mouca
Te encobre as falhas da sonoridade;

Nem percebes que agora é tíbia e rouca
A tua clara voz da mocidade.
E a vida, Poeta? A tua é já tão pouca,
E ainda pensas na imortalidade!

"Não! (responde a sorrir-me o velho tonto)
"Sei que o canto me sai límpido e pronto,
"Que dele sou apenas o instrumento…

"E não são para vós que em mim se tocam
"Por mãos de almas aladas que me evocam,
"Coisas que vem com o sol e vão com o vento
".

Nesta homenagem, João Luso foi o orador oficial que interpretou a alegria saudosa dos velhos amigos, dos companheiros da geração de Bilac, relembrando aqueles ditosos tempos da acolhedora chácara de Santa Teresa. E, bem possível, relembrou a comum amizade que os ligava a Martins Fontes.