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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[08])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 59 a 71):

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Cabocla

Ribeiro Couto

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VII - Mulher

Os telhados do Pau d'Alho surgiram do verde dos milharais. Acompanhei o ribeirão, de olhos atentos, a esperar que aparecesse o quintal do hotel. Ali estava, enfim, o renque de laranjeiras; e ao fundo o sobrado, com o curral. Um apito distante de trem fez-me acelerar a máquina. Eram quase sete horas, o rápido para a Vitória devia estar chegando.

Entrei no arraial com descargas rumorosas do motor, chamando a atenção das pessoas que banzavam às portas ou se encaminhavam para a plataforma. Anoitecia. As casinhas se iluminavam, das janelas rompia uma claridade amarela e mortiça: os candeeiros de petróleo eram tão melancólicos!

Parei o carro à porta do hotel e fui entrando, a bater palmas.

- Ó de casa! Ó de casa!

A sala de jantar estava deserta. À porta da cozinha, na claridade projetada pelo fogão aceso, dormia um cachorro.

Da venda ao lado veio o caixeiro, rapazote esperto, coçando a nádega:

- O povo saíram.

Meu coração batia, desejoso da surpresa. O povo saíram, informava o caixeirinho, com a sua concordância saborosa.

- Você ficou só?

- O povo foram à estação levar o noivo da Zuca.

Um bufo arquejante e um tilintar de ferragens anunciaram a aproximação da locomotiva perrengue. Olhei: ela chegava, arrastando dois carros negros e um vagão de bagagens.

O cachorro, desperto, disparou pela porta afora.

- Que noivo da Zuca? - perguntei contrariado, segurando o caixeirinho por um braço. Então ela é noiva?

- Ué, é noiva! - e ele se espantou da minha ignorância.

Entrei na venda, pedi um vermute. O caixeirinho...

- ... como é que você se chama?

- Chico.

... serviu o vermute com uma das mãos, a outra sempre coçando a nádega da comichão.

- Você conhece o noivo da Zuca?

- Ué, conheço.

- Ah!

Chico devia ter doze anos. Já trabalhava, ganhava a vida. Tive vergonha de mim, que sempre vivera da mesada de meu pai e, mais tarde, quando terminasse o inventário da mamãe, viveria da herança que ela me deixara.

- Onde é que mora o noivo da Zuca?

- Na Vitória.

- Ah! É empregado do comércio como você, Chico?

- Não senhor.

- Você fuma, Chico? - indaguei para mudar de assunto e evitar desconfiança.

Estendi-lhe a carteira de cigarros. Ele hesitou, dando uma olhadela de viés para a estação, temeroso de que o patrão chegasse. Acabou aceitando, segurando o cigarro com a ponta dos dedos, como se fosse um prego quente.

- Então que é que ele faz, o moço?

- Ué, é fiscal da Câmara.

Assim, um fiscal da Câmara de Vitória vinha arrancar do Pau d'Alho, para um medíocre destino na cidade, aquela criatura bonita, de farto seio, Ceres cabocla para quem o campo e a lavoura deveriam ser o perpétuo cenário. Teria muitos filhos numa casinha estreita e sem ar, todos os anos emagreceria um pouco, ficaria velha precocemente, de miséria. Quanto pode ganhar um fiscal da Câmara em Vitória? Tolice, o moço podia até ser muito trabalhador, progredir, ficar rico.

- O senhor não vai ver o trem?

Fiz que não com a cabeça, pensando em Zuca, revoltado contra a minha própria imaginação que me fizera arquitetar castelos idílicos em torno de uma caboclinha de estalagem de roça, e agora sofria por vê-los desmoronados.

- Seu José me coça o pelo se eu deixar a venda. Mas se eu pudesse bem que ia dar uma espiada.

Chico se pusera à porta, com as mãos cruzadas às costas, para esconder o cigarro. Na plataforma havia um vaivém apressado de volumes junto ao vagão de carga. Pessoas desciam dos carros, com crianças e malas, ouras subiam atarantadas.

Iria? Iria... Simples curiosidade, para ver como seria esse noivo da Zuca.

- Ele passou muitos dias aqui, o noivo da Zuca?

- Dois dias.

Imaginei-a no curral, tirando leite para ele, daquela mesma vaca. Depois,no laranjal, beijando-o... Depois junto da mãe, com ar hipócrita de inocente (exatamente como sucedera comigo). Sim, hipócrita... Aliás, ela passara quatro anos em Vitória. Vitória não era uma vila, que diabo. Eu sabia o que eram os namoros de cidade, pelas esquinas dos bairros escuros, na sombra das árvores da calçada. Eu sabia!

Uma raiva fina insinuava-me em mim. Eu tão desejoso de conhecer uma verdadeira menina da roça, cheia de acanhamentos e pudores, e afinal, logo na primeira vez que me vira, Zuca me atirara um beijo - ela, que era noiva! Aí está no que dava o meu romantismo rural.

Não iria... Que me importava saber como era o noivo de Zuca? Nem ela me interessava, afinal de contas. Uma analfabeta, quase. Filha do José da Estação. Filha de um vendeiro, de um hoteleiro de Pau d'Alho, um arraial perdido no sertão do Espírito Santo. Que tirava leite das vacas...

Das vacas... A imagem de Zuca, entre as vacas do curral, de manhã cedo, sob a neblina, adoçou a minha cólera nascente. Não era natural que ela pensasse em casar? Seria pena que um corpo tão viçoso, de seios polpudos que pediam maternidade, murchasse sem amor ao longo dos anos. Casasse, fosse feliz...

- Chico, outro vermute.

A sineta do chefe da estação deu o sinal de partida. O povo que chegara de viagem dispersava-se, a caminho das roças, uns a pé, outros a cavalo, em conduções que os tinham vindo esperar. No rumo do hotel, José Antunes pilotava dois viajantes, carregando-lhes as valises, expandindo-se em risos e falação. O trem partiu. Eu não podia ver Zuca e a mãe, ainda na plataforma, ocultas pela casa da estação; mas, quando o comboio apareceu mais adiante, adivinhei que aquele lenço a se agitar numa janelinha era o do fiscal da Câmara de Vitória. Chico, na porta, desolado com a prisão do emprego, murmurou:

- Lá vai o trem!

José Antunes fez-me uma festa extraordinária. Quando é que vinha comer a leitoa, com o compadre Boanerges?

Os viajantes, dois rapazes portugueses, saudaram-me com amizade e se apresentaram: Martins, Gomes & Cia., Teixeira Pinho Limitada. Então eu era do Rio? Contentíssimos de encontrarem um carioca, perguntaram-me logo se eu tinha assistido ao "Chá de pagode", que estava sendo levado no Teatro Recreio.

- Aquilo é que é rir!

Iam para Vila da Mata no dia seguinte "fazer a praça". Contaram-me imediatamente, sem que eu nada lhes perguntasse, que há três anos "faziam aquela zona". Os negócios não eram maus, mas gente muito atrasada. E como o hoteleiro tivesse subido para levar as valises aos quartos, um deles - que era bexigoso e tinha um anel de brilhantes num dedo cabeludo - curvou-se para mim, confidencialmente:

- Conhece a pequena aqui do hotel?

Piscou-me um olho. O outro, reforçando a intenção da pergunta com um gesto, inclinou-se também:

- Isto é que é um pedaço de morena!

Senti uma gratidão repentina e imensa pelo fiscal da Câmara de Vitória, quis-lhe um súbito bem porque, casando-se breve com Zulmira, impediria que ela se perdesse, tão rodeada de desejos malignos.

Saí à porta. Ela já devia ter voltado da estação com a mãe. A praça estava de novo deserta. No barracão das mercadorias, o chefe e um servente lidavam, empilhando sacos e caixas.

Entrei na venda, onde já alguns caboclos se reuniam, sob o lampião de querosene que lhes derramava efeitos de luz e sombra pelo rosto anguloso. Chico despachava-se, diligente, servindo cachaça.

- Ó Chico! Sua patroa já voltou da estação? Eu não vi entrar.

- Siá Bina passou pelos fundos.

Tinham passado pelos fundos, mãe e filha. E eu tão curioso de ver como Zuca estava vestida... Com certeza pusera vestido novo durante aqueles dois dias em que o noivo estivera ali. Penteara-se com cuidado. Calçara-se, como na cidade. Meias de seda talvez. Decerto amava o noivo. Decerto.

Saí para ir à estação retirar a encomenda que me mandara meu pai. O pacote chegara no trem da véspera, pela manhã. Levei-o para o automóvel e me dispus a partir. Era noite fechada. Acendi os faróis do forde.

Nesse instante Siá Sabina chegou à porta do hotel, correndo:

- Boa noite, doutor! Então já vai s'embora? Como vão o povo no Córrego Fundo?

- Vão todos bons! - respondi imitando o sotaque da roça.

- Desculpe, eu não sabia que o senhor estava aí! Fui na estação levar o Tobias... O Tobias, não é? o noivo da Zuca... e só agora é que o José me avisou... Apeie, venha jantar com a gente...

- Já jantei, Siá Bina.

- Ora, fazendo cerimônia! Pousa hoje aqui e vai amanhã cedo. A estrda é muito ruim, o senhor não conhece bem...

Lá dentro, uma voz juvenil pôs-se a cantarolar uma velha modinha:

Se esta rua, se esta rua fosse minha,

Eu mandava, eu mandava ladrilhar!

Senti o peito oprimido. Por que razão a proximidade de Zuca, que eu mal conhecia, me despertava sentimentos agitados?

Siá Bina não se conformava:

- Como, doutor? Apeie! Parece que veio buscar a pressa! Pousa com a gente e vai amanhã pela fresca.

Era suave, aquela praçazinha do Pau d'Alho, com o telhado baixo da plataforma, o armazém de caga, a casa do chefe com a sua horta, os casebres, a capela decadente... tudo em sombra, tudo no repouso da noite, velado apenas pelos candeeiros agônicos... Na venda, o barulho das conversas e dos risos se misturava ao tilintar da garrafas e copos. No hotel, já agora iluminado, a mesa estava posta. Quem pusera a mesa? Zuca, sem dúvida. Vira-me. Sabia que eu estava ali. E não viera me dar boa noite, nem ao menos para me agradecer a remessa do "Jornal das Modas Femininas". Não, o jornal ela não podia saber quem enviara; mas, enfim, saudar-me, simplesmente saudar-me, era injusto que não o fizesse... Ela, que me atirara aquele beijo dentre o laranjal, na beira do ribeirão!

- Não é possível, me desculpem, prometi voltar hoje mesmo. O primo Boanerges ficaria inquieto. Vim só retirar esta encomenda que estava aí desde ontem para mim.

Um amargor apertava-me a boca. Era bem mulher, aquela... São todas iguais, por toda parte... A canção malandra, dos carnavais cariocas, é que insinuava a única verdade:

És mulher,

És mulher e nada mais!

Lá dentro, a voz de Zuca continuava cantando:

Se esta rua, se esta rua fosse minha...

Parecia haver um tom de desdém na sua voz. Por força. Ela queria dizer com aquilo que bem sabia da minha presença, mas a minha pessoa lhe era de todo indiferente.

Despedi-me do José Antunes e da Siá Bina. Atirei um olhar amigo para a venda, onde o bravo Chico, homenzinho precoce do sertão, dirigia os negócios anexos ao hotel. Chispei pela praça, varrendo com a claridade ofuscante dos faróis as paredes dos casebres.

... Dei a volta por trás do arraial, estrada em fora. Lá estavam os fundos do hotel, com uma luzinha no andar de cima. Os viajantes iam dormir ali aquela noite, pensando em Zuca, ou quem sabe se tentando mesmo a aventura... Sabia lá!

Ao passar pelo lugar donde ela me atirara o beijo, diminuí a marcha, fui bem vagarosamente, como se quisesse respirar naquele ar um pouco da presença do outro dia. Qualquer coisa atravessou o espaço (pensei que fosse um morcego) e caiu no meu colo. Brequei o carro. Era um molho de cravos. Do outro lado do ribeirão houve um fru-fru de folhagem e uma forma sumiu pelo laranjal.

Nunca houve estrelas tão bonitas como as que me acompanharam, céu afora, pela estrada branca, naquela noite.