Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult006p03.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 02/15/14 10:03:26
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (16-[03])

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das principais obras de Rui Ribeiro Couto é o romance Cabocla, aqui transcrito em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1945 (terceira edição) pela Livraria Sá da costa Editora, de Lisboa, Portugal, com prefácio de João de Barros, sendo todos os exemplares autenticados com as rubricas do autor e editores. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 5 a 22):

Leva para a página anterior

Cabocla

Ribeiro Couto

Leva para a página seguinte da série

II - Manhã no Pau d'Alho

Naquela fria manhã do Pau d'Alho a vida me pareceu saudável e honrada.

- Doutor, o café está pronto. A condução também já chegou.

Era o hoteleiro que me batia à porta.

Espreguiçando-me, fui olhar pela desconjuntada janela que dominava a praça do lugarejo. Pau d'Alho era apenas a estação, a casa do chefe, o sobradinho do hotel em que eu dormira, e umas dez casas meio esboroadas. Ao fundo emergia o telhado de uma capela colonial. Os galos cantavam no dia claro e as últimas névoas sumiam, desfeitas nos raios do sol.

O hoteleiro tornou:

- O café, doutor?

- Eu vou tomar lá em baixo.

- Mas está aqui, doutor, não precisa o senhor se incomodar.

- Bom, eu já abro.

A voz do homenzinho insistiu, impaciente, tagarela:

- A cama não estava muito ruim, doutor?

- Excelente, seu... seu...

- José Antunes, doutor. Chamam-me José da Estação.

Acabei de me vestir e abri a porta para receber o café das mãos do José da Estação. Alguém estava ao lado dele, em silêncio; o hoteleiro soltou uma gargalhada escandalosa, contente com a surpresa que me preparara. O outro era um sujeito idoso, queimado de sol, bigode grisalho, chapelão de couro. Onde vira eu aquela cabeça?

- Como é, doutor, não reconhece? - perguntou o José da Estação com dois caninos risonhos na gengiva desdentada.

O desconhecido estendeu-me a larga mão calosa:

- Bom dia, primo Jerónimo, fez boa viagem?

Céus! Era o próprio primo Boanerges Pereira, para cuja fazenda eu ia! Estivera no Rio em nossa casa, uns dez anos antes, com a mulher; mas eu, menino, guardara dele apenas uma vaga lembrança.

- Dê cá um abraço, primo Boanerges! Nem reconheci você. Perdoe-me. Também, há tantos anos!

Abraçamo-nos ruidosamente, com palmadas. Pedi notícias da mulher, dos filhos... Vai-se vivendo com a graça de Deus, respondia ele modesto, como se fosse um pobrezinho de Cristo. Era um dos fazendeiros mais ricos da zona.

- Mas, diga uma coisa, primo Boanerges, porque é que se incomodou? Porque não me mandou um camarada trazer a condução?

- Não senhor, primo Jerónimo, fiz questão de vier eu mesmo.

- Vamos ao café? - interrompeu o José da Estação pondo a bandeja em cima da mesa.

- Muito obrigado, já tomei.

- Tome outra vez, primo Boanerges - insisti.

José da Estação precipitou-se pela escada abaixo para ir buscar outra xícara:

- Um minutinho, compadre!

E ficamos os dois, primo Boanerges e eu, face a face, meio confusos, como duas pessoas estranhas.

- Pois é! - suspirou ele embaraçado.

- É verdade! - acrescentei, oferecendo-lhe uma cadeira.

O sol cresceu do telhado da estação e veio bater em cheio na parede do quarto.

- Bonito dia, primo Jerónimo!

- O tempo está firme, heim, primo Boanerges?

- Mas na semana passada choveu. Pouca coisa.

- No Rio o calor está insuportável.

- Ah, no Rio! - concordou ele em princípio.

O José da Estação subiu com a xícara para o primo e serviu-nos a ambos. Pedi licença para fazer uma toalete ligeira. A um canto do quarto estava uma pequena bacia de ágata com o jarro cheio de água.

- O doutor desculpe... na roça, sabe, não há luxo... - falou o hoteleiro, envergonhado do desconforto, indicando a bacia e o jarro. O coronel me prometeu construir um bom hotel aqui na estação.. heim compadre? Para quando será isso?

Primo Boanerges sorriu, evasivo, como que adiando para uma época indefinida o cumprimento de uma promessa sem convicção.

- A menina dos olhos dele é Vila da Mata... Aqui para a estação do Pau d'Alho, nada... Não gostam de nós, doutor... Porque temos a estrada de ferro...

Primo Boanerges piscou-me um olho.

- É isso mesmo! Lá em Vila da Mata vocês têm dinheiro, têm bastante gente, têm progresso... mas uma coisa vocês não hão de ter nunca, e isso é o Pau d'Alho que tem: a estrada de ferro. No dia em que houver aqui no Pau d'Alho um homem de iniciativa como o compadre coronel Boanerges, o Pau d'Alho ficará uma grande cidade!

José da Estação se inflamara, abrindo uma boca enorme a cada mastigação de sílaba, de modo que os dois caninos, isolados nas gengivas nuas, subiam e desciam num movimento automático.

Ali estava a rivalidade de lugarejos, de que eu tanto ouvira falar. A paz dos campos, de idílica poesia, não era mais do que aparência: no segredo das almas, o ciúme e a inveja minavam as criaturas. Num repente, senti o desejo de tornar-me o grande homem de Pau d'Alho. Seria eu o criador de uma cidade. Seria eu o Verbo, a Ação. Dentro de dez anos, em torno daquela estação melancólica, haveria uma larga praça rodeada de prédios novos, ruas, trânsito, povo. A praça chamar-se-ia: Praça Jerónimo Vieira Pires. E eu seria, como o primo Boanerges em Vila da Mata, presidente da Câmara Municipal de Pau d'Alho...

- Mais um cafezinho? - avançou o José da Estação.

- Diga uma coisa, primo Boanerges: o clima aqui do Pau d'Alho é bom? - indaguei preocupado, sem responder ao oferecimento do café.

- Não tem nenhuma diferença da Vila da Mata - saltou o hoteleiro com orgulho.

- A bem dizer (respondeu depois de uma ligeira meditação meu primo), o clima aqui não é mau, mas Vila da Mata é um pouco mais alta, o ar é mais puro.

- Quá! quá! quá! - gargalhou o José da Estação irreverente. Clima melhor que este não há!

Descemos. O hoteleiro ia atrás, carregando-me as valises. Estava em maré de eloquência, desejava aproveitar a oportunidade para a propaganda do Pau d'Alho perante "um doutor do Rio".

- Sou nascido e criado aqui no Pau d'Alho! Nunca tive uma dor de cabeça!

No rés-do-chão era a vendinha do José da Estação, com duas portas. No compartimento ao lado, também com porta para a rua, havia o refeitório do hotel. Nas prateleiras de um armário velho, com bicos de papel de cor, empilhava-se a louça grosseira, junto à qual um paliteiro de porcelana azul parecia desterrado como um objeto de luxo.

Da passagem dos fundos, que dava para a cozinha, veio uma cabocla e meia idade enxugando as mãos no avental:

- Bom dia, compadre. Estava bom o café?

Primo Boanerges foi apertar a mão dela.

- O café estava superior. Como vai a Zuca?

- Assim, assim, compadre. E a comadre?

- Um pouco de reumatismo.

- Não é nada, é do tempo.

O José da Estação apresentou:

- É a minha velha, doutor, a Siá Bina.

Troquei um cumprimento com a hoteleira, que se voltou logo para dentro, chamando:

- Zuca! Ó Zuca! Venha tomar a bênção do seu padrinho.

Depois tornou ao primo Boanerges?

- Então, compadre, é esse o moço que vem por estar fraco do peito? Qual, tão forte! Não tem jeito de doente.

Minha visita era esperada; espalhara-se, com certeza, toda uma lenda: um moço do Rio, escaveirado, pondo sangue pela boca.

Eu ia agradecer a Siá Bina as boas palavras, quando surgiu da cozinha, num vestido de chita vermelho, uma espécie de Nossa Senhora morena, com um rostinho redondo em que tudo era gracioso e miúdo: o queixo, a boca, o nariz. Apenas a fronte era larga, por cima de uns olhos pretos de expressão austera: parecia que aqueles olhos não sorriam nunca.

Primo Boanerges estendera a mão negligente, que Zuca beijou com respeito, e apontou-me para a afilhada:

- Este é o meu primo do Rio, que vai passar uns tempos na Vila da Mata...

Ela inclinou a cabeça, desviando os olhos, fugindo à surpresa dos meus.

- Aperte a mão do moço - corrigiu a mãe, ciosa de usos corretos.

Zuca levantou a mão, sempre de olhos baixos, envergonhada talvez dos chinelinhos cara-de-gato com que fora obrigada a aparecer aos estranhos.

Aproximou-se de mim: era uma mulherzinha de pés pequenos, cintura fina, mas com seios opulentos. Este pormenor chocou-me, parecia quebrar a castidade do conjunto.

- Isto é moça do mato, doutor, não ponha reparo.

- Muito prazer, mademoiselle!

A mãe olhou-me deslumbrada, como se eu acabasse de conferir à filha um título nobiliárquico. Ma-de-moi-sel-le! A cara de Siá Bina tinha uma expressão de espanto e reconhecimento. Os viajantes da capital que costumavam pousar no hotel jamais haviam chamado a filha assim. Nome estrangeiro, não? Decerto queria dizer: moça educada, moça de bons modos, moça distinta.

Pus-me a imaginar como se transformaria aquela menina do mato se vivesse no Rio e se vestisse como as moças civilizadas, se tivesse hábitos elegantes e gestos desenvoltos. Seria linda. Não, não, que ficaria outra. Arrependi-me logo da ideia. O encanto de Zuca era o chinelo cara-de-gato, o vestidinho de chita vermelha, a modéstia da roça. Ou seria também a sua graça física, o rostinho redondo, o corpo delicado em que o busto exuberante parecia uma afirmação de força? Dezoito... Sim, já dezoito anos talvez. Teria um namorado, quem sabe o caixeiro da venda, ou um rapazote qualquer do Pau d'Alho. O sacristão, com certeza.

Senti-me cheio de pena. Súbito, pensei em Pequetita Novais, irônica, citadina, com um brilho de malícia nos grandes olhos verdes. Pensei em Pepa la Sevilhana, festiva, mercenária, pública. Uma ternura indefinível me invadiu, não apenas por aquela mocinha, mas também por toda as outras, pelo país afora, nos lugarejos apagados; todas as que, como Zuca eram criadas nos arranjos da casa, sem vaidades nem ambições, e amanhã seriam mães, educariam com a mesma simplicidade e para o mesmo fim outras brasileirinhas de cara redonda.

Até então eu não conhecia senão a multidão do Rio, atormentada de dificuldades de dinheiro e do desejo incontentável de divertir-se. Pela primeira vez me pareceu doce o destino de viver obscuramente, acordando com o sol e dormindo com o recolher das galinhas, no ar livre dos campos, longe dos carnavais e dos cassinos.

- Compadre, por que não espera o almoço? Fica conosco umas horas, depois segue viagem, Não se venda tão caro, compadre!

José da Estação procurava seduzir meu primo.

- Não posso, não, respondia este. Vamos aproveitar a fresca da manhã, há menos poeira.

Zuca, de cabeça baixa, parecia ausente da conversa.

- Vai tirar um copo de leite para o moço - ordenou a mãe.

Ela ficou contente com o pretexto e sumiu pela porta da cozinha. Primo Boanerges entabulou conversa sobre política: José da Estação informava que o novo telegrafista da estrada de ferro prometera transferir o título de eleitor para o município. Na fazenda do Chico Bento havia dois colonos mineiros que ainda não estavam alistados. Além disso, ele José da Estação podia garantir que o Pau d'Alho daria mais uns dez votos nas próximas eleições. Por exemplo...

Saí, deixando-os à vontade. José da Estação era cabo político de meu primo e naturalmente eu não devia me envolver naqueles segredos municipais.

O fordinho estava encostado à porta. Poeirento, com placas de lama ressequida, sem capota, seria risível nas ruas do Rio. Ali, entre aqueles casebres decadentes, parecia uma carruagem de luxo. Dois velhos caboclos de barbicha rala, acocorados, fumando o pito com cusparadas metódicas a cada instante, examinavam abstratos as rodas imóveis. Na estação, a sineta anunciou que um trem partira da localidade mais próxima. A casa do chefe, ao lado da plataforma, tinha um quintalzinho plantado de couves, protegido por uma cerca de bambus. Na praça, os casebres continuavam fechados, mas dos telhados principiava a sair uma fumaça lenta. Pau d'Alho despertava.

Fiz a volta da casa do hotel. Os fundos eram extensos, com uma horta e um laranjal. Mugidos lamentosos ressoavam por trás da forte cerca de tábuas. Espiei pelas frinchas: era o curral. Zuca tinha amarrado um bezerrinho à perna da vaca. O bezerrinho mamava furioso, com guinadas do focinho bruto.

Empurrei a porteira e fui entrando, sem cerimônia.

- Dá licença?

A moça ergueu a cabeça espantada. Perguntei:

- Deixa que eu assista? Nunca vi, é a primeira vez.

Limpou as mãos no vestido, sem achar desde logo o que responder, mas me encarando sem timidez. Nem parecia a mesma de há pouco, junto da mãe.

- Nunca viu tirar leite? Não acredito.

Que significava aquele desembaraço, aquele tom? O vestido de chita e o chinelo cara-de-gato, de repente, se me afiguraram um disfarce. Não era mais a filha do José da Estação, era uma menina da cidade em travesti de moça de roça. Minha perplexidade devia parecer-lhe cômica, porque ela se pôs a rir, divertida.

Voltou-se para o bezerrinho, agarrou-o com força, arrancou-lhe o focinho das tetas da vaca e foi prendê-lo longe, num pau de cerca. Depois, segurando um balde de zinco que estava pousado no chão, pôs-se de cócoras e começou a ordenha. O leite alvo esguichou no balde. Os movimentos de Zuca eram instintivos, como se estivesse habituada. De vez em quando olhava-me de viés, com uma ponta de sorriso mordaz. Como que dizia: é simples, não acha?

Abandonava uma teta, começava a tirar leite de outra, atenta ao trabalho.

- O apojo é o melhor, espere aí...

Foi à cozinha buscar um copo e voltou correndo. Pôs-se a enchê-lo, vagarosamente; o leite era agora menos abundante.

- Por que apojo? Que quer dizer?

- É o último leite... É o mais gordo... Chama-se apojo...

Ergueu-se com o copo transbordante de espuma na mão estendida:

- Beba!

Os dentinhos de Zuca tinham a mesma brancura daquele leite. Quando ela sorria, apertava a língua escarlate contra as fendas.

- A senhora não toma?

- Tenho tempo.

O fordinho começou a roncar. A voz do meu primo chamou-me. "Por onde é que eu andava?" O José da Estação surgiu na porteira do curral:

- Então, doutor?

- Estou observando sua filha tirar leite. E está excelente, seu José!

- Você deu o apojo, Zuca?

De novo com ar tímido - exatamente como eu a vira há pouco tomando a bênção do padrinho - Zuca fez um sinal de cabeça e murmurou apenas:

- Sim, papai.

Era outra vez a menina da roça, acanhada, com vergonha de dar bom dia às pessoas.

Quando me despedi dela, agradecendo-lhe o trabalho que tivera comigo, abaixou a cabeça, escondendo um sorriso. Confuso daquelas mudanças, saí, fui tomar assento no carro, no qual meu primo já me esperava. Disse adeus aos hoteleiros. Prometi voltar para comer uma leitoa que o José da Estação declarava estar "no ponto, prontinha para nós".

E Zuca? Desaparecera lá dentro.

O auto arrancou pela praça, levantando um poeirão amarelo. O hotel fugiu atrás dos casebres, com a cerca de tábuas do curral, a folhagem das laranjeiras...

Senti um aborrecimento indefinível. Meu primo falava não sei quê; não lhe prestava atenção. A estrada fez uma curva, atravessou uma ponte e deu a volta por trás do povoado. Víamos agora os quintais do casario, com magros mamoeiros e varas de feijão, chiqueiros de tábuas à beira do córrego e plumas de galos vadios a ciscar. Os fundos do sobrado ali estavam, a pequena distância, com o laranjal que se estendia até às águas divisórias. Eu fixava os olhos ora no curral, ora na porta da cozinha, ansioso por ver um vestido vermelho. Foi quando nas margens do ribeirão Zuca rompeu do arvoredo:

- Bênção, padrinho! Até logo!

Primo Boanerges gritou um "Deus te abençoe" e eu senti dentro do coração que aquele "até logo" era para mim. Sem que meu primo percebesse toda a manobra, debrucei-me para fora da portinhola e joguei um beijo na ponta dos dedos. Zuca me acenou com um lenço e sumiu de carreira no laranjal.