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CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - Ribeiro Couto - BIBLIOTECA NM
Rui Ribeiro Couto (15-T)

Clique na imagem para ir ao índice desta obraUma das obras de Rui Ribeiro Couto é Histórias de Cidade Grande (Contos escolhidos), aqui transcrita em primeira edição digital, a partir do livro publicado em 1960 pela Editora Cultrix Ltda., da capital paulista, na série Contistas do Brasil. A obra faz parte do acervo de Rafael Moraes transferido à Secretaria Municipal de Cultura de Santos e cedida a Novo Milênio pelo secretário Raul Christiano para digitação/digitalização (ortografia atualizada nesta transcrição - páginas 208 a 215:

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Histórias de Cidade Grande

Ribeiro Couto

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Pai

-Então, não vem conosco, doutor?

Essa pergunta, todas as noites, as moças da Pensão Beira-Mar faziam ao velho dr. Leandro, um pouco por ironia, um pouco por dever de amabilidade. Sabiam que aquele solteirão, de gênio esquisito, não gostava de passear pela praia em companhia de ninguém, muito menos de moças.

Há muitos anos que o dr. Leandro morava na casa. A pensão mudava de nome ou de dono; a Prefeitura punha um número diferente no prédio; nada alterava os hábitos do dr. Leandro Mota Pereira, engenheiro da Inspetoria de Portos, Rios e Canais.

Sua idade era incerta. Cinquenta? Sessenta anos? A frescura da pele e um olhar azul um tanto ingênuo davam-lhe o aspecto de um rapaz com cabelos brancos.

Diziam que era rico. Pelo menos, tinha o bom emprego da Inspetoria de Portos, Rios e Canais. Guardava dinheiro, com toda a certeza...

- Não vem conosco ver o luar?

Ele agradecia cerimonioso.

***

Leandro entrou em casa pela primeira vez, perto da meia-noite. Estava num nervosismo inteiramente novo para ele. Andara à toa pelas ruas. Ia ser pai...

Chegou-se ao espelho e, debaixo da lâmpada elétrica, examinou os cabelos brancos:

- Pai...

Essa palavra escapou-lhe da boca murcha. No largo rosto escanhoado, sutilmente cortado de rugas pouco visíveis, passou um sorriso. Sentiu-se ridículo, ele, sempre com um ar tão grave.

- Pai...

Ia haver no mundo uma criança que lhe diria essa palavra. Iam aparecer no vasto cenário da Humanidade dois bracinhos que um dia lhe enlaçariam o pescoço, lhe apertariam o peito, duas mãos que entrariam pelos seus bolsos, procurando balas, reclamando pacotes de doces.

Surpreendendo-se com esses pensamentos, riu-se.

- Estou ficando maluco - murmurou, passando a mão pelo rosto, como se o limpasse de reflexões importunas.

Despiu-se devagar, vestiu o pijama, escovou os dentes. Esteve um momento à janela, olhando a baía. Lá embaixo, nas calçadas da praia, passeavam casais.

Afinal, sempre tivera horror ao casamento. Por comodidade, não havia dúvida. Não obstante, o amor era agradável. Sim, o amor não era desagradável.

Acendeu um cigarro. Valia a pena um filho? Tolice, andar a por no mundo os ingratos e os infiéis.

Não, seu filho seria um rapaz leal. E se fosse mulher?

- Estou ficando maluco.

Recolheu-se, acendeu a lâmpada de cabeceira, leu a primeira página de um jornal e adormeceu com a obsessão.

***

Naquela casa discreta da Rua Sorocaba ele era tido como um bom cliente. Primeiro, preferira a Lolita, uma espanhola gordinha que fora para Buenos Aires, com o marido, croupier de um cassino. Depois, passara a uma viúva espevitada, que se dizia professora pública, mas não era. Finalmente, andara com a Dolores, até o dia em que a Dolores, por ocasião de uma ceia no Joá, com um grupo numeroso, morrera num desastre de automóvel.

Risoleta ainda se lembrava do ar apatetado e doloroso do dr. Leandro, rompendo pela casa adentro, a indagar da d. Tomásia, a proprietária:

- Diga-me, foi mesmo a Dolores, a nossa Dolores?

Nesse momento, Risoleta entrava na sala de jantar, calçando as luvas, pronta para sair (por fingimento, para provocar o interesse do visitante):

- Até um dia destes, d. Tomásia.

D. Tomásia fez a apresentação. Com desembaraço, Risoleta deu os pêsames ao dr. Leandro, muito séria, como se Dolores fosse uma pessoa da família dele.

- Eu ouvi falar que o senhor a estimava muito.

D. Tomásia retirou-se da sala, deixou-a em conversa com o dr. Leandro.

- Enfim, é a vida - murmuraram os dois, entreolhando-se, num suspiro conformado.

Começaram assim.

***

O ideal de Risoleta fora sempre ser atriz, mas essa ideia não agradava a Leandro.

A gravidez, agora, impedia Risoleta de penar em teatro. Estava furiosa. Não sabia contra quem, mas acumulava toda a cólera contra Leandro. Desse modo, mais o convencia de que era ele o pai.

Leandro compreendeu que na sua vida havia um fato imensamente importante, a exigir mudança de hábitos e até aumento de despesas. Risoleta não podia continuar morando com a família, nem a se encontrar com ele na Rua Sorocaba. Era preciso alugar uma casa para ela, fazê-la independente, dona de um pequeno lar.

- Como no casamento! - pensou Leandro. - Como no casamento!

Fugira tanto ao casamento e agora encontrava-se naquela situação: ia ser pai. Devia passar a viver com Risoleta? Afinal, gostava dela, tinha-se acostumado com o seu riso, o sseus dengues.

***

A Inspetoria de Portos, Rios e Canais tirou Leandro da perplexidade, incumbindo-o de uma comissão no Pará.

Na Pensão Beira-Mar, os hóspedes ficaram tristes.

- Bom homem, o dr. Leandro!

- Quem sabe se ele arranja algum casamento lá por Belém?

***

Durante quatro anos Leandro mandou mesada para Risoleta e para o filho, nascido na sua ausência, que se chamava Leandro também.

Risoleta enviava-lhe retratos, contava-lhe travessuras do menino. Entrara para o teatro e estava prestes a ser primeira atriz de uma companhia de comédias. Vivia contente: apenas, "com muitas saudades do seu velho".

Essas notícias chegavam a Leandro como de um mundo imaginário em que o seu sentimento, aliás, se comprazia de um modo secreto e absurdo. Ele era pai, lá no Rio, numa casa da Rua Senador Dantas.

Nas veias de uma criança corria o seu sangue. Não passaria pelo mundo com um destino estéril. Deixava atrás de si um pouco de si mesmo, a respirar pelo tempo afora, depois da sua morte.

A velhice, porém, trouxe-lhe uma forte crise de asma. Sentiu-se, de repente, fatigado e perto do fim. Experimentou a necessidade urgente de um recanto tranquilo, onde pudesse gozar o resto da existência, numa aposentadoria. Embarcou para o Rio pensando no filho.

***

Risoleta ficou pálida quando viu diante da sua porta aquele senhor cerimonioso, de jaquetão preto e cabelos brancos.

Acostumara-se a receber a mesada como um presente do céu, um presente de muito longe que não cria nenhuma obrigação urgente.

Leandrinho morrera em Cascadura, logo nos primeiros meses, em casa da ama. A ama não lhe dera o aviso senão depois do menino estar enterrado; ela própria estivera doente, de cama; o enterro fora feito pelos vizinhos. Passados os primeiros dias de mágoa, Risoleta se conformara. Não tinha muita vocação para ser mãe, nem lhe convinha um filho. Fora a Providência, aquela morte do menino...

Por isso, estava agora num embaraço terrível. Como confessar ao velho Leandro que os frequentes retratos que lhe mandava eram de outra criança?

Nesse momento, vinha subindo a escada o ator Vivinho Bastos, que passava por seu marido:

- Dr. Leandro, apresento-lhe meu marido.

A presença do ator Vivinho Bastos deu ânimo a Risoleta.

- Entre, dr. Leandro.

E voltando-se para o outro:

- Você quer me deixar um instante sozinha com o dr. Leandro?

Minuciosa, Risoleta contou-lhe tudo, tudo. Leandro, confuso, ouviu a confissão com uma esquisita angústia: tinha a sensação de que uma coisa se desmoronava dentro dele.

***

Desceu as escadas a passo lento. Viu-se na rua. Onde era mesmo aquilo? Ah! na Rua Senador Dantas. Era a Rua Senador Dantas, com a esquina do Passeio Público cheia de multidão a caminho dos cinemas...

Foi a pé para a Pensão Beira-Mar. Ia com a cabeça enterrada no peito, sem pensamentos, vazio, morto pela desilusão definitiva.

- Dr. Leandro, por que não veio jantar?

Cumprimentou com um ar de sonâmbulo e subiu para o quarto.

***

Diante da mulata que gemia na cama, Risoleta estava no auge do espanto. Quê? Aquele menino robusto, com um olhar velhaco, a correr pela casa a cavalo num cabo de vassoura, era mesmo seu verdadeiro filho, era o Leandrinho?

A criança que morrera, quatro anos antes, fora o filho da ama, da mesma idade. Como tomara amor a Leandrinho, a mulata imaginara o embuste.

O pequeno da ama fora enterrado com o nome de Leandrinho. Risoleta, na cidade, nunca desconfiara de nada. Também, se desconfiasse, seria capaz de fingir que acreditava.

O vigário de Cascadura, confessando a mulata em artigo de morte, dera o conselho de mandar chamar a mãe autêntica e contar a verdade.

- Me perdoe, d. Risoleta... Eu fiz isso porque queria bem ao seu menino...

Novo problema. Vivinho Bastos ficaria furioso quando a visse entrar em casa com um garoto daqueles.

Leandrinho, aliás, não conhecia a mãe. Não quis ir com ela, quando a mulata, arquejante, lhe pediu que "fosse com a moça para a cidade, era a mãezinha dele".

- Mãe nada. Minha mãe é você.

E saiu correndo de novo, no cabo de vassoura.

***

Leandrinho só acabou de chorar quando o táxi chegou à Praça Tiradentes e a mãe entrou com ele numa loja, para vesti-lo de roupa nova.

Ele exigiu um terno à marinheira e um boné com letras douradas, onde estivesse escrito: "São Paulo". Leandrinho tinha ideias políticas.

A gerente da Pensão Beira-Mar ficou surpresa quando viu aquela moça alta, com um  menino pela mão, pedindo para falar ao dr. Leandro.

Desde que voltara do Pará, ele vivia doente no quarto, cada vez mais sucumbido. Nunca recebia visitas.

Risoleta subiu com o menino. Bateu à porta que lhe indicaram. O dr. Leandro, tossindo muito, espiou pela folha entreaberta.

Risoleta explicou:

- Tenho um assunto muito grave para falar ao senhor. Por isso tomei a liberdade de vir.

E foi entrando com o menino.

Embaixo, no primeiro degrau da escada, o nariz espetado para cima. a gerente dava tratos à imaginação para adivinhar quem seria aquela mulher com o menino de boné "São Paulo".

***

Quando Risoleta acabou de contar a verdade, ele tossiu mais, esteve uns momentos refletindo e disse, numa voz abafada:

- A senhora tem muita coragem. Depois de um embuste, outro embuste maior. Responda-me: não tem medo do castigo de Deus?

Leandrinho metera-se pelo quarto adentro e estava de braços na janela. Arranjara uma folha de jornal e rasgava pedacinhos, atirando-os lá fora: pedacinhos de papel que ficavam tremendo no ar como borboletas.

- Leandro, juro por tudo quanto é mais sagrado que eu lhe disse apenas a verdade. Fui enganada pela ama. Este menino é que é o filho que eu tive de você.

Leandro tossiu outra vez, sufocado pela asma. Quando passou o acesso, murmurou como para si mesmo:

- Na minha idade, andar metido nestas aventuras, nestas chantagens...

Risoleta ergueu o busto, como que chicoteada pela palavra chantagem.

- Leandrinho, venha aqui!

O menino veio, surpreso, olhando receoso o velho que tossia.

- Vamos embora. Tome a bênção de seu pai.

Leandrinho aproximou-se, enfiou o boné na cabeça, encarou o velho com uma desconfiança hostil e foi caminhando para a porta:

- Pai, nada.

Saiu pela mão de Risoleta. A porta bateu com violência.

No quadro azul da janela, invadida pelo crepúsculo do Flamengo, um último pedacinho de jornal passou voando, tremendo, dizendo adeus àquele triste quarto de solteirão.