Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult003b.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 09/15/09 11:16:42
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - LYDIA
Lydia Federici (2)

Leva para a página anterior
Matéria publicada em 10 de junho de 1994 no caderno AT Especial do jornal santista A Tribuna:
 


Lydia Federici
Foto: arquivo, publicada com a matéria

HOMENAGEM
Lydia Federici

Jornalista, cronista, esportista e amante da natureza, Lydia Federici tinha sempre a palavra certa, um sorriso no rosto e os olhos doces muito atentos para Santos, cujas peculiaridades retratava diariamente em crônicas publicadas em A Tribuna. No último dia 2 ela deixou esta Cidade e foi para outra dimensão, levar sua mensagem de amor.

Da Reportagem

Sua atuação destacada na Cidade foi percebida por seus leitores, fidelíssimos, e pela universitária Luciana Frangeto, que escolheu no ano passado a mulher Lydia Francisca Luiza Federici como tema de seu trabalho de conclusão do curso de Jornalismo, pela Universidade Católica de Santos.

Intitulado Os Caminhos da Cidade Sob o Olhar de Uma Cronista, o trabalho conta que Lydia, ao contrário do que muitos possam pensar, nasceu em São Paulo a 16 de abril de 1919 e veio para Santos, Cidade a quem sempre declarou seu amor, ainda criança. Para perpetuar esse amor, o ex-vereador Matsutaro Uehara (Tarô) fez um projeto que deu à cronista o título de Cidadã Santista.

Como o sentimento pela Cidade era intenso, ela teve a idéia de montar uma árvore de Natal na praia, para que todos pudessem demonstrar o apreço por esta terra e para que os necessitados tivessem um Natal mais feliz.

Em sua crônica de 24 de novembro do ano passado, Lydia falava sobre o assunto: "... a luzinha diria do amor devotado a esta Cidade de paz. Testemunharia a fé que temos em Deus. Mas faltava o detalhe final. Fazer com que, da colocação alugada de cada lâmpada, restasse o tostão capaz de provar, a uma das obras sociais da Cidade, que Santos, além de ser terra da liberdade, como muitas vezes o provara na grande história do Brasil, era também a terra da caridade".

Outro traço marcante em sua vida foi o esporte. Lydia era capitã dos times de voleibol e basquete no colégio, no final da década de 30. Como havia muita falta de estímulo, ela pediu ao então editor de Esportes de A Tribuna, Antônio Guenaga, para fazer comentários encorajadores no jornal.

A cronista se destacou como jogadora de vôlei e arremessadora de disco, sendo campeã nessa modalidade ao disputar a taça Adhemar de Barros. Mesmo afastada das pistas devido às várias fraturas nos joelhos, seu nome continuou ligado ao esporte durante os 30 anos em que dirigiu clubes e treinou equipes femininas de vôlei.

Detestava - Luciana também apurou que Lydia, até os 15 anos, detestava Português, visão que se alterou por causa de uma professora do ginásio. "Eu logo percebi que possuía um certo desembaraço para pôr no papel o que tinha dentro do peito".

A carreira jornalística começou em 1939, com comentários sobre esportes em A Tribuna. Colaborou também para a Revista Tênis Ilustrado e jornais do Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul. Porém, enquanto escreveu sobre o assunto, sempre foi colaboradora: "Esporte para mim é como uma religião, por isso nunca quis receber um tostão".

Em 61 passou a escrever as crônicas diárias na coluna Gente e Coisas da Cidade, tendo publicado mais de dez mil textos. Ela utilizava a emoção para atrair e chamar a atenção do leitor. "Tudo depende do que sinto na pele. Se é um dia em que estou muito sentimental, conto uma historinha de criança que pode ser muito engraçada ou comovente".

E Lydia aproveitou muito bem este espaço, onde analisava as mudanças por que Santos passava, a falta de prédios, a construção de prédios, a gente de antigamente, a gente da atualidade, os gestos de carinho para com os semelhantes, as flores dos jardins, as estações do ano, as férias escolares e muitos outros assuntos sempre com um traço marcante em cada linha: o amor.

Cronista da esperança

O trabalho de conclusão de curso não se limitou à vida profissional de Lydia Federici. A aluna Luciana mergulhou na personalidade, opiniões e jeito de ser da cronista que nunca reclamou de sua condição de ser mulher e conquistou espaços que, na década de 40, eram eminentemente masculinos.

Ela confessa que houve um tempo em que chegou a achar que se fosse homem teria mais liberdade, mas acreditava que um dia a mulher iria perceber que possui as mesmas condições intelectuais do homem.

A independência feminina também foi relatada em suas crônicas: "...há tempos deixou de cumprir apenas o seu papel de mãe e esposa. Para, em trabalho fora do âmbito tradicional, ser também co-chefe da família e do lar".

Nesse campo também teve reconhecimento. Recebeu a medalha de mérito Mulher do Ano de 1978, concedida pelo Movimento de Arregimentação Feminino (MAF), por sua atuação junto a entidades e clubes de servir e pela constante preocupação com os problemas da comunidade.

Natureza - Outra característica inerente a Lydia Federici era o amor pela natureza. Ela e seus amigos criaram o Grupo Andarilhos de Enguaguaçu, que promove caminhadas sempre a cada penúltimo domingo do mês pela Baixada e Serra.

Para a cronista, o que acontecia com o grupo era uma grande confraternização. "Todos se tornam amigos, sem ninguém querer ser mais do que ninguém e com ajuda mútua. Andando, curtimos as coisas belas que o mundo tem para nos oferecer e nos sentimos unidos a outros corações".

Simples, como sua gente

Luciana Frangeto terminou seu trabalho com uma enquete onde Lydia fala sobre diversos assuntos, aqui transcritos:

Música - As canções italianas que mamãe cantarolava.

Livro - Pouco leio. Não tenho fôlego para ler nenhuma página da Bíblia.

Esporte - É fascinante. Gosto de todos, principalmente do futebol.

Religião - É uma reunião de crentes em Deus que, no fundo, querem apenas ser felizes.

Deus - Eu o encontro nas obras da natureza, como o mar. Deus é força.

A mulher - Caiu de seu pedestal por suas próprias mãos.

Uma mulher - Maria, mãe de Jesus.

Homem - Não gosto dos guerreiros, mas sim, dos artistas. Amo os músicos.

O idoso - Tenho um imenso respeito pelo idoso e acho uma pena que os jovens não compreendam o que ele significa.

Os políticos - Eu sou uma mulher de fé e quero continuar a ter fé nos políticos. Embora muitos só acreditem naquilo que podem pôr nos bolsos.

Uma decepção - Com o povo brasileiro, desde aquele que é incapaz de cumprir a menor de suas obrigações até a classe política.

Uma esperança - De que o homem cresça mesmo tendo que apanhar muito para isso.

Um sonho - Ver o mundo mais colorido e mais irmão, sem que o homem tenha a necessidade de matar para sobreviver.

Uma realização - Ser jornalista e conseguir transmitir boas mensagens.

Santos - É o meu grande amor. Santos não é minha, eu sou de Santos.

Lydia Federici - Sei que na Cidade eu tenho meu lugar de amor e de respeito conquistados. Se sou amada ou não, não me interessa, mas faço questão de ser respeitada e, para isso, respeito a todos. Sou uma pateta, humilde e simples. Se tenho qualquer motivo para me envaidecer, passo por cima e digo: "Que bom, podia ser pior".

Nas crônicas, a nossa Cidade

"Tanto faz ter nascido na Capital ou aqui, mas é lógico que eu amo este Município mais do que o outro, pois vivi toda a minha vida em Santos".

"Minha mãe me ensinou a respeitar todos os pedaços de terra. Portanto, eu amo qualquer lugar, tenha ele o nome que tenha".

"Ela (a professora) me ensinou que quem não tem facilidade para transmitir suas idéias oralmente pode fazê-lo através da escrita".

"Não é o grande acontecimento que marca um trabalho literário, pois a vida é feita no dia-a-dia".

"Esta vida que escolhi é maravilhosa. Ao menos, eu penso que estou fazendo alguma coisa pelos outros, através de uma palavra de carinho, de conforto. Eu acho isso um privilégio que Deus me deu e nem sei como agradecer".

"Santos continua a ser uma aldeia onde ainda se pode oferecer ao vizinho um café feito na hora".

"Ser mulher sobretudo nos dias de hoje não é fácil. Cada uma delas é produto de todos os papéis que, durante cada dia, assume e leva a cabo. Sabendo ser ou ter que ser, acima de tudo, uma mulher de mil atividades e sentimentos. Uma mulher que, dividindo-se, cresce e eterniza".

"Nunca reclamei da minha condição de mulher. Sempre fiz o que quis e só quis aquilo que podia fazer. Eu sou mansamente feliz, porque consegui ser o que queria. Hoje, colho o princípio maior de toda a minha vida: amor a tudo e a todos".

"Redigir diariamente é um ponto de honra para mim e, enquanto tiver esse compromisso com o jornal e o leitor, não poderei falhar".

"Nós subimos um morro para chegar mais perto do céu e agradecer a Deus pelo ano que tivemos e por ainda termos pernas que podem andar".

"Para quê complicar a vida com dinheiro?"

A contadora de histórias

Terezinha Tagé (*)
Colaboradora

"...O cronista que narra os acontecimentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história..."
Walter Benjamin (*)

A história das pequenas coisas e da gente de nossa cidade perde uma voz que a contava. Agora, um silêncio acompanha o olhar do leitor que procura nas folhas do jornal palavras para espelhar o seu cotidiano, animando-o a enfrentar mais um dia de vida. Há muitas outras coisas para ler, mas a contadora de suas histórias não está mais lá. Foi embora, talvez para contar as histórias do infinito, de algum lugar onde a existência seja mais bela e digna de ser contada. É isso. Ela foi promovida. Durante 30 anos, ela conversou com os seus leitores, conquistou-lhes a confiança, registrando segredos, comentários, minúcias do viver transformados em acontecimentos notáveis e guardados para sempre no seu ato de escrever.

Para isto, o cronista escreve. Sua tarefa, ou seu "ofício", como diria o escritor e cineasta Peter Handke, é o guardar nas palavras o movimento da vida cotidiana dos homens. São mensagens reflexivas incorporadas aos veículos de comunicação de massa, jornais e revistas de atualidade. Seus autores são repórteres de idéias emergentes em cada momento e nos apontam caminhos para a compreensão de comportamentos, gerando novas opiniões.

 

"Durante trinta anos registrou segredos, comentários, minúcias do viver"

 

Parte de nossa memória destes últimos 30 anos (dos pequenos incidentes que passariam totalmente despercebidos) poderá emergir a qualquer momento para o leitor, porque se transformou em fonte de pesquisa e de leitura de nossa vivência diária.

O que aconteceu um dia e mereceu a atenção de uma sensibilidade voltada para os valores de nossa comunidade, como era a de nossa cronista, não se diluirá no tempo. Ela semeou na mente de seus leitores e inúmeros pensamentos e sentimentos frutificaram.

A verdadeira história, aquela ignorada pelos historiadores tradicionais, está nas ações e nos pensamentos por elas gerados, no cotidiano do homem comum. Não está nos grandes feitos dos heróis que aprendemos a admirar nos livros didáticos de nosso tempo de escola. Esta é a perspectiva dos vencedores reais ou forjados. Pesquisadores mais recentes procuram a versão dos vencidos, dos heróis anônimos, aqueles que nunca tiveram voz.

O dramaturgo e jornalista Jorge Andrade referia-se a estes setores comuns, como todos nós, nomeando-os de "homens sem rosto". Eles não se destacaram da maioria, mas realizaram e construíram o que somos. Como nossos pais, como nós mesmos. Nós também construímos a história. Somos parte dela.

 

"A verdadeira história está nas ações e pensamentos por ela gerados"

 

As fontes de pesquisa dos acontecimentos e sentimentos que envolvem a história desta comunidade de anônimos que sustentam a existência são os diários, as cartas particulares, as anotações e bilhetes, além de outros objetos utilizados em nosso dia a dia. Entre estas fontes, as crônicas e os artigos de articulistas publicados em jornais e em revistas surgem como documento da memória de cada dia.

As coisas e a gente de nossa cidade perderam sua cronista, deixaram as páginas do jornal, mas ganharam outra dimensão. São parte de nossa história para sempre e Lydia Federici também.

(*) Terezinha Fátima Tagé Dias Fernandes, pesquisadora e professora no Departamento de Jornalismo e Editoração da Escola de Comunicações e Artes, da USP.

NOTA - (*) Walter Benjamin, pensador alemão, nascido em Berlim, em 1892. Estudou filosofia e escreveu sua tese de doutorado O conceito de crítica de arte no romantismo alemão. Escreveu também Origem do drama barroco alemão, entre outras obras. Conviveu com intelectuais como Adorno, Brecht e Scholem. Morreu em 1940.

Leva para a página seguinte da série