Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/cultura/cult002b.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 12/26/04 12:34:47
Clique na imagem para voltar à página principal
CULTURA/ESPORTE NA BAIXADA SANTISTA - POETIRMÃO
Roldão Mendes Rosa (2)

Leva para a página anterior
Publicado em 25 de janeiro de 1998 no jornal santista A Tribuna:
 

Roldão e as imagens da cidade de Santos
Fotos: arquivo, publicadas com a matéria

Poeta Roldão Mendes Rosa Poeta

No livro "Poemas do Não e da Noite", imagens da Cidade e um turbilhão de idéias que ela inspirava ao jornalista

Narciso de Andrade (*)

Na poesia de Roldão Mendes Rosa, Santos cresce na mesma proporção em que se apequena na ação de certos políticos. Roldão sempre entendeu que a política tem espaço importante na sociedade. É melhor, bem melhor, muito melhor sofrer as conseqüências de uma política mal direcionada do que ser constrangido pela prepotência de um regime militar. Nós tivemos tempo de viver as duas coisas; nós, que eu digo, não fomos apenas Roldão e eu, mas todo o povo brasileiro.

Aquele moço claro, muito claro, nascido, criado e vivido até onde deu na parte mais antiga da cidade, na sua maneira discreta de ser e existir, jamais se entregou. Outro dia, voz simpática de moça me perguntava pelo telefone quem era Roldão Mendes Rosa, sabendo-o poeta mas queria saber mais. Na faculdade em que ela estuda a biblioteca tem o nome dele. E pára por aí.

Foi quando ela disse que era filha do Lane Valiengo. Ora, esse Lane, repórter da melhor qualidade, bem que podia saciar a nobre curiosidade da filha ansiosa por saber quem era, como existira, o que legara à sua terra, aquele poeta, hoje (ainda bem) nome de biblioteca. O Lane é assim mesmo, um cara super legal, mas meio desligado.

Pois fique sabendo que seu pai conheceu muito bem o Roldão. Entre outras coisas, trabalharam juntos neste jornal. Batucaram doidamente nas Olivetti da velha redação. Trocaram idéias e podiam fazê-lo porque as tinham na cabeça. Pergunta pro Lane quem era o Roldão, o quanto sabia de jornal aquele profissional sempre atento à evolução da imprensa, atualizadíssimo, competente, generoso na distribuição de seus conhecimentos aos alunos da Faculdade de Comunicação da UniSantos, onde lecionou com empenho e paixão até a luz se apagar.

Um certo dia de 1983, por aí, Roldão me disse que o Lane estava querendo me entrevistar. Papo furado. A entrevista, tenho certeza, seria com o próprio Roldão, mas ele queria colocar o amigo na jogada. Acertamos o lance marcando um encontro na casa da Álvaro Alvim, 123, onde morava o poeta por aquelas alturas. O papo começou às nove da noite e só terminou lá pelas três ou quatro da madrugada. Falamos de tudo, as resistências enfrentadas em ambiente pouco propício às coisas da arte e da literatura, principalmente se deslocadas das provincianas preferências locais. Certas coisas do pesquisismo foram debatidas e explicadas pelo poeta, o mais jovem integrante do movimento.

Conversa vai, conversa vem, eis-nos à certa altura a retomar os caminhos de boemia da juventude naquelas noites de cabarés onde davam as ordens os chamados "elementos facinorosos". Na verdade, era um tempo de muita valentia e pouca droga. E quem conhecia o código da noite podia conviver com toda essa gente sem ser importunado.

Na verdade, fugindo desse tema delicado, a noite santista tinha renome internacional, nos cassinos - Ilha Porchat, Guarujá, Atlântico, por aí vai - cada noite era um acontecimento. Tudo isso nós conversamos sob a batuta do Roldão, a propor os temas e provocar a participação de todos. Que havia outros, Laura, sua mulher, Carlos, filho, estão todos na gravação que guardo comigo e só não ouço neste momento porque estou longe em terras mineiras.

E de poesia vocês não falaram? Gente, seria possível ter o Roldão ao lado e não falar de poesia? Falamos, claro, e foi a parte mais intensa daquela conversa noite a dentro.

Mas aqui prefiro abrir os Poemas do Não e da Noite e, ao sabor do acaso, juro, bato justamente na página 132, que se encaixa à perfeição no espírito daquela conversa porque o poema tem passagens assim:

Esta noite
procura-se uma verdade
em qualquer parte da noite lá dentro

Há salas inteiras de verdades.
Cheiro forte de crepúsculo
desprende-se dos arquivos.

Este poema de 1968 representa um fragmento de estudo para Museu do Futuro, que não chegou a ser concluído. A característica do trabalho de Roldão era a exuberância de inspiração, mil caminhos em várias direções no mesmo poema, como ele dizia: uma loucura.

Quando me deparei com seus originais para o livro que viria a ser Poemas do Não e da Noite, publicado depois daquele 26 de janeiro 1988, quase entrei em desespero. Só o autor, e apenas ele, poderia encontrar a linha certa para a eclosão final do poema subjacente ao turbilhão de idéias, imagens, metáforas a puxar para todos os lados a mão do vate santista.

Agarrei-me a essa mão e busquei ser fiel ao desejo de só publicar aquilo que considerasse realmente concluído. Quantas vezes debatemos essa nossa posição quando víamos a pressa de publicar de tantos jovens simpáticos e senhoras respeitáveis destas redondezas à beira do Atlântico. Sempre consideramos a poesia com intensa paixão e absoluto respeito.

Com o livro aberto em minha frente nesta manhã toda azul do Sul de Minas, penso nessa Santos que tanto amamos e que Roldão ensinou a entender:

Ouve a aprende a cidade real,
Ela não é apenas a rua em que passas
a caminho de casa, nem a casa em que moras,
nem os telhados vistos do alto.

A cidade é o conhecimento de suas faltas e lutas.
Procura encontrá-la em ti mesmo.
Enquanto a vires com os olhos,
não poderás dizer que a conheces.
Quem vê um corpo e sua roupa
nada sabe do homem.

Apenas um livro. Mas quantas vertentes a serem exploradas.

(*) Narciso de Andrade é poeta e escritor


Texto transcrito do livro 36 mil dias de Jornalismo - A história nas páginas de A Tribuna (de Eron Brum, 1994, Editora A Tribuna, Santos/SP):

Monotonia...

Roldão Mendes Rosa

O vento passou, enfunou os toldos arreados das casas comerciais e carregou consigo uma nuvem de pó. As donzelas levaram o braço curvado ao rosto, protegendo os olhos e apertaram a bainha do vestido colante com o vento que ameaçava envergonhá-las. Um senhor que arrastava os seus passos tartaruguentos por uma das calçadas estreitas da rua João Pessoa, com um arzinho de pachocho, viu-se, de súbito, obrigado a correr. Não movido por uma simples vontade, mas forçado pelo vento que lhe arrancara o jornal das mãos.

Se lhe tivessem custado um tostão ou duzentos réis que fossem, vá lá, talvez não se adiantasse, preocupado, à cata do jornal; mas o caso é que quatrocentos réis já representam alguma coisa para sua carteirinha chuchada... O caso é que o agitado senhor, graças a uma ginástica espalhafatosa, conseguiu reunir as folhas. Consertou o jornal e, impossibilitado de prosseguir em sua leitura, dobrou-o em três, segurando-o na axila. Consertou, também, o chapéu, receoso de que o vento o tangesse pelos ares. Olhou para um lado e sorriu para um garçom que o acompanhara em seus movimentos descomunais, pela posse do jornal. E o sorriso com a mesma espontaneidade que lhe aflorou nos lábios úmidos, desapareceu. O homenzinho continuou indiferente, agora alargando mais os passos.

As mocinhas, após esse instante de indecisão, continuaram "com aqueles passinhos que nem pareciam tocar no solo", assemelhando àquela Elsa do Balada sem Ritmo. Seus sorrisos claros iluminaram a rua e elas prosseguiram em seu itinerário que eu desconheço - também há razões par que não me interessem - e mesmo elas talvez nem saibam! Andam, cortam as ruas, possuídas do prazer pelo granfinismo - mostrar em seus cabelos a habilidade de um penteado; em seus vestidos, o esmero de uma costureira bem paga; em seus sapatos a sedução da moda e em suas pernas, direi, impudicamente desnudas a moda da sedução!

Quando uma rodinha se agrupa e se inquieta na troca de opiniões das mais paradoxais, sobre esses requisitos sociais, alguns aludem à forçosa influência do século pelas suas tendências libertinas. Mas isso - como diz o caipira - num dianta memo... Esse lero-lero é muito bom para nos distrairmos, quando, impacientes, esperamos o bonde 8, por exemplo. Aí, sim! Há uma boa sombra de minutos para engolir essas fatuidades.

Como eu dizia - antes que perca o fio da meada - o vento aqui de Santos, além da poeira, levou de meus olhos o homem do jornal e as donzelas bisbilhoteiras. Depois... depois fiquei um bom tempinho entretido com o vai-e-vem de outras pessoas e com as nuvens que brincavam de "pegador" na placa do céu esmaecida. Fiquei também experimentando no pensamento a vida inexorável desta minha terrinha e de sua monotonia implacável; os mesmíssimos vendedores ambulantes, cuja voz talvez a aproveitassem no Scala de Milão; os conhecidos (alguns) com seus "bons-dias" cantantes que me fazem cócegas no ouvido e tantas outras mesmices. Sou, na verdade, um sujeitinho um tanto esquisito... Tenho lá as minhas idéias, os meus pareceres e talvez por isso mesmo quase tudo me empresta monotonia. Ainda bem que digo "quase".

À cidade, mesmo assim, vêm sendo impostas modificações e modificações... A Praça José Bonifácio irá ficar irreconhecível pelos turistas, que a encontrarão bem diferente, traçada dentro dos moldes das praças modernas. Na qualidade de fatiloquo ou faticano, se quiserem os poetas, condôo-me com as alminhas indefesas das árvores da Praça dos Andradas, prevendo o destino que as aguarda. Sim, as alminhas, pois não versejou o saudoso poeta de Alma Cabocla - "Homens, reparem bem que as árvores têm alma..."?

Que se vão clorofilando as árvores que ali vicejam, clorofilando, clorofilando. Daqui a uns anos... Brucutu! Néris de tupiniquins... e teremos uma outra praça, em face às intermináveis renovações dos tempos.

Santos ainda está muito virgem. Ainda muitas casas serão levantadas e não menos arquitetos intumescerão as carteiras.

Vão sendo impostas modificações e modificações à minha terrinha e eu sei que também estou sujeito a ser modificado e, então, tornar-me um rapazinho funambulesco, apregoando que Santos é mesmo aqui da pontinha e eu é que sou o monótono!...

Leva para a página seguinte da série