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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO - ZANZALÁ
VIII - A insurreição                (de Afonso Schmidt)
Os habitantes do vale, com a execução do concerto "Cariçuma", que tanto os agitou, esqueceram o rapto e a morte do cavalo "Guaicuru". No entanto, logo depois, deu-se um acontecimento previsto pro velhos tidos na conta de visionários. Refiro-me à insurreição dos caborés.

Certa manhã, começaram a produzir-se estrondos lá para as bandas do mar. Que seria? Talvez a Prefeitura estivesse arrebentando pedras nos morros. Como os estrondos continuassem, muitas pessoas saíram de casa e foram para a rua, a fim de saber do que se tratava. Um projétil, vindo de Piassagüera, abriu largo rombo na Avenida Atlântico.

Os rádios começaram a anunciar coisas alarmantes e no vídeo fosco dos televisores os repórteres projetaram cenas de uma autêntica invasão armada, como só eram vistas nas ilustrações antigas, que amareleciam nos museus. Aquilo divertiu muito os habitantes do Zanzalá. Os noventa aparelhos públicos, situados nas praças e nos pérgolas das avenidas, ficaram logo rodeados de curiosos que, de olhos arregalados, se puseram a admirar esse espetáculo anacrônico: uma rebelião. Sim, o que se estava passando era nada menos que uma insurreição de europeus da pior espécie, isto é, daqueles que ao longo dos séculos não haviam sido assimilados pelo Zanzalá.

Os homens atrasados apareciam nos televisores em formações compactas, com os capacetes de aço brilhando ao sol e, na rápida avançada, iam formando núcleos para onde eram conduzidas máquinas de guerra. Desses núcleos, depois de fortificados, partiam outras linhas de homens, marchando num ritmo sacudido, e mais adiante estabeleciam novas posições. Bandeiras tremulavam no ar. Bandas de música executavam marchas heróicas. Trogloditas de cartola arengavam às massas:

- Polo rey e pola grey!

Uma festa para os zanzalianos de 2029.

Parecia que aquela parte do vale tinha sido transformada em tabuleiro de xadrez e que o enxadrista misterioso, colocado não se sabia onde, ia sobre ele desenvolvendo jogo lento, com lances certos. Numerosas plantações de cereais, dentro de algumas horas, estavam em seu poder. As densas equipes de trabalhadores eram como raspadas dos campos, reunidas e atiradas violentamente para o centro do vale. E a marcha dos homens uniformizados, rebrilhantes de metais, continuava ininterrupta.

As primeiras casas foram alcançadas e os seus habitantes, postos em fuga, começaram a chegar arquejantes, com os filhos ao colo, no largo da Pirâmide. A verdade é que a maioria da população não sabia explicar aquilo.

Uns perguntavam:

- Que quererão eles?

Outros afirmavam:

- Vingam-se do que lhes fizemos, por causa do rapto do "Guaicuru".

E ainda havia os que ponderavam:

- Vão ver que que querem ficar com as terras do distrito e comer-nos moqueados, como é seu costume...

Na altura dos Areais, houve ligeira resistência por parte dos tiradores de folhas de mangue, que investiram de remo em punho contra a horda de invasores. Então, as máquinas de matar estralejaram e os homens caíram por terra, atorados pela cintura, tão unidas eram as balas que neles haviam acertado.

Esses fatos foram noticiados pelo rádio, mostrados com pormenores pelos televisores. Como era natural, sobreveio o terror. Surgiram os primeiros homens e mulheres correndo de um lado para outro. Uma jovem pôs-se a gritar com o filho apertado ao colo. Das pequenas ruas, o povo desembocava nas grandes avenidas Jabaquara, América, Atlântico e Paranapiacaba. Nas largas artérias, já àquela hora toldadas pelo crepúsculo, a massa popular subia, descia e, por último, ia reunir-se nas praças, duras de gente.

Um avião negro apareceu lá para as bandas do Assunguí, pairou algum tempo sobre o vale e depois deixou cair obuzes sobre a cúpula escura do Instituto Sanitário que, com os seus 76 andares, parecia mais alto do que a serra. Ouviu-se um estrondo de fim-de-mundo. Chamas violáceas lamberam as nuvens. O bloco arquitetônico partiu-se pela altura do 30º andar; a parte superior pendeu sobre o vale e desabou num caos de poeira avermelhada. O choque pareceu abalar as montanhas. Quando a nuvem de pó se dissipou, só se via a parte inferior do edifício, que havia permanecido de pé, de paredes irregulares, como um vaso de barro desbeiçado a martelo.

Meia hora depois, o avião reapareceu no horizonte, voou sobre o ápice da pirâmide e desovou obuzes. A cada um deles que caia seguiam-se um clarão lívido e um estrondo de abalar céus e terras; depois, no quadro dourado do poente, a pirâmide apareceu deformada, com as arestas comidas por imensos buracos.

Veio a noite. Embalde a mão do eletricista puxou a alavanca da iluminação pública, que fazia abrir no vale um milhão de luminosas magnólias. Seu gesto perdeu-se inútil. A central elétrica devia estar destruída, pois o vale permaneceu às escuras. Nos lares mais intactos, mãos ansiosas procuraram sintonizar as lâmpadas, mas o espaço parecia morto; as lâmpadas continuaram apagadas. Aquela noite não se parecia com as noites do vale, tão alegres, tão cheias de músicas e risadas. Só se ouvia a gritaria da gente que passava pela rua numa corrida doida, e o soturno bater de um invisível martelo que ia destruindo tudo, os palácios e os monumentos. Em diversos pontos, subiam colunas de fumo e as nuvens baixas pareciam lambuzadas de sangue.

Ao longo da noite, num desejo invencível de fugir para algum lugar, o povo abandonou as avenidas e reuniu-se nas praças da Pirâmide, do Monge, da grota Funda. Muitas famílias haviam tomado os atalhos, perdendo-se nas últimas florestas da serra. Zéfiro, Tuca e os sogros, também espavoridos pelo que viam, tentaram fugir pelo Alto da Serra, ganhando a planície. Mas, depois de algumas horas de difícil caminho, compreenderam que seu propósito não era viável. É que lá em cima, no ângulo do vale, estava assentado um verdadeiro ninho de máquinas de morte, daquelas que davam tiros tão unidos que ceifavam os homens pela cintura. Outros, antes deles, menos felizes, haviam feito a mesma tentativa. Tinham sido mortos. À luz de uma lanterna, viam pilhas de cadáveres, ou de feridos que rolavam pelo pendor da serra, pedindo um pouco de água nas vascas da agonia.

Olharam para trás. O vale estava inteiramente amortalhado nas trevas. Lá em baixo, só se viam clarões de incêndios. Só se escutava a voz soturna do canhão, dessa palavra que, perdida nos porões da história, voltara à voga da noite para o dia. Enchendo esse compasso profundo, erguia-se o matraquear incessante dos tiros-de-leque. Apesar disso, Zéfiro e seus companheiros de fuga resolveram descer pelo mesmo caminho.

A cada passo, encontrava grupos de homens enlouquecidos de pavor que procuravam, numa última esperança, ganhar as planícies de serra acima. Então, ele levantava a lanterna à altura da cabeça, para ver e ser visto, e explicava a situação que era de cerco, a proximidade inquietante das máquinas de morte instaladas à retaguarda da população. Os fugitivos não agradeciam, nem comentavam, mas retrocediam no mesmo pé, escondendo na noite a sua espantosa angústia.

Já embaixo, na grota Funda, viu compacta multidão iluminada por poderosos refletores. Essa gente estava diante de um televisor e ansiosamente ouvia a voz do informador paulistano:

"A notícia da rebelião dos caborés no vale do Zanzalá encheu de curiosidade o país inteiro, as Repúblicas vizinhas, o Continente. É um episódio que lembra ao vivo o fim das civilizações que precederam a nossa. Organizam-se neste momento, por toda parte, imensas caravanas para assisti-la. O governo decretou feriado por uma semana. O ambiente é de festas. Nada menos de 800 universidades seguem neste momento para o Zanzalá, a fim de que seus alunos possam assistir "in loco" a esse pitoresco espetáculo a que os antigos chamavam de guerra. Trata-se de fazer o possível para que a insurreição não termine até amanhã, depois do meio-dia, e que as cenas características não se interrompam tão depressa. O continente está com inveja do Zanzalá, terra feliz que goza neste momento de um espetáculo que o homem moderno, organizado por uma civilização prosaica, não mais sonhava assistir".

O locutor prosseguiu nesse tom otimista de admirável bom humor, e os fugitivos não quiseram mais ouvi-lo, recomeçando a atormentada viagem. Mais adiante, procuraram orientar-se na escuridão e já não viram a luz pálida da pirâmide, que havia meio século guiava os viajantes da terra. Sem aquela luz, o vale parecia perdido entre a terra e o céu, martelado pelo canhoneio, lambido pelos incêndios. Uma angústia, uma angústia...

Andaram mais algumas horas. Na Praça Monge, novo ajuntamento, novo televisor, novas notícias irradiadas da capital:

"...a curiosidade pública está no auge. A esta Capital estão chegando, por todos os meios de transportes, incontáveis turistas que se destinam ao Zanzalá, cuja povoação está sendo arrasada pelos caborés. Na Estrada do Mar, movimenta-se uma quádrupla fila de veículos em demanda do privilegiado vale. Ao amanhecer, seguirão para lá numerosos comboios aéreos, conduzindo famílias. Do Rio de Janeiro, de Montevidéu e de Buenos Aires partem incessantemente aviões com turistas. O Instituto Central de Artes está em pleno funcionamento, apesar da hora adiantada da noite. Já foram retiradas até este momento 91.014 caixas de tintas para pintura; 18.114 máquinas fotográficas; 128.745 rolos de filmes. O número de metros de celulóide cinematográfico já atinge a mais de um milhão. A Capital, com o êxodo dos veículos, começa a lutar com a falta de transportes. O governo está reunido para tratar desse problema intercorrente. Serão tomadas providências enérgicas..."

Os quatro fugitivos de torna-viagem prosseguiram o seu caminho pela noite. Logo depois pararm. No aceiro da planície, esbarraram numa espessa muralha humana que recuava lentamente. Era toda a população que, empurrada pelos invasores, ia pouco a pouco se encurralando ali. De quando em quando, uma rajada de metralhadora fazia um rombo na multidão. Passada a refrega, retirados os mortos, a vaga humana se unia de novo. Os caborés saíam com freqüência de suas posições e imiscuiam-se entre aquela gente, dando ordem, ameaçando com gestos coléricos.

Tuca havia desfalecido de cansaço. Zéfiro tomou-a nos braços e carregou-a para um canto da avenida, ao pé da grande escadaria. Deitou-a num tufo de tanchagem e foi buscar água, nas mãos em concha; João Antônio e Maria Balbina ficaram inclinados sobre Tuca e não mais perceberam as coisas que se foram desenrolando pela noite. Ao vir da madrugada, o vale inteiro já se encontrva em poder dos caborés. Sem o sentir, seus habitantes tinham ficado prisioneiros dos bárbaros. Ali pela segunda hora, cessou completamente o bombardeio; só se ouviam tiros esparsos num mundo pálido que começava a emergir lentamente das trevas. Depois cessou tudo. A invasão estava feita e naturalmente os caborés tratavam de assegurar as posições, preparando-se ao mesmo tempo para resistir às forças que fatalmente, deveriam descer da banda de cima, onde a massa escura da Serra do Mar, com seu colar de neblinas, se recortava na lâmina luzente do céu.

À terceira hora, alvorecia; quem estivesse postado no ângulo superior do vale e olhasse para as bandas do mar, veria um largo cenário de devastação sobre o qual haviam passado, num tropel, todas as fúrias do inferno. Por cima do Zanzalá, tão alegre, tão farto, pairava uma infinita tristeza. Foi precisamente nessa hora que começou a segunda fase da histórica rebelião dos caborés, em 2029. E os que não a viram como nós, no salão de espelhos do tempo, onde não há passado nem futuro, dificilmente poderão acreditar nas coisas que se seguiram...

À primeira claridade da manhã, um avião de passeio saiu da sombra escura da serra e pairou docemente sobre o vale. Era o primeiro curioso que chegara. Então, um tiro partiu lá do fundo e feriu-o de morte; o aparelho largou-se desamparado no espaço e foi amontoar-se entre dois morros. Logo depois, talvez ignorando a sorte do primeiro, três belos aeroplanos apareceram no céu gris, deslizando sobre as ruínas do Instituto Sanitário. Novo tiro e um deles, desgovernado, afocinhou em linha reta na Avenida Jabaquara, de onde subiu uma nuvem de poeira. Os outros continuaram no seu passeio matinal. Ainda novo tiro e outro aparelho caiu em zigue-zague, como pássaro malferido.

Ao mesmo tempo, numerosos bandos de asas, como uma poeira de ouro à primeira claridade do sol, avançaram da serra sobre os abismos do vale. De minuto em minuto, ouvia-se um tiro e um avião precipitava-se ao solo. Mas, em seu lugar, chegavam dez, vinte, cinquenta, cem... Do lado do mar, começaram a chegar também umas galeras aéreas de duzentos passageiros, que voavam lentamente pelo céu, como em excursão de turismo. Logo depois, esses aparelhos foram pousando pelos campos, pelos morros, pelas avenidas. A cada aterrissagem, seguia-se uma cena espantosa: grupos de caborés corriam para os aparelhos e incendiavam-nos; ao mesmo tempo, outros bárbaros investiam contra os tripulantes e passageiros, trucidando-os. Isso foi feito com um, com dez, com trinta aparelhos... Mas dentro de pouco eram tantos a pousar em terra que os homens cabeludos, bárbaros e de botas não venceram matar tanta gente.

Já dia claro, o centro de atividade dos insurretos foi-se deslocando para a encruzilhada do Assunguí, onde uma compacta multidão chegada de Santos, armada de máquinas fotográficas, de câmaras, de blocos de papel e de lápis, ameaçavam romper as suas linhas exaustas pelo trabalho da noite. Ouvia-se novamente o pipocar dos tiros. Dentro de pouco, o estralejar das metralhadoras, numa nuvem dourada de poeira. A multidao desfalcada recuou. Mas foi então que, do lado de cima, pelas névoas da Grota Funda, despenhou-se pela serra uma massa escura de homens e carros. Ouviu-se uma gritaria infernal. E a mó de gente e de veículos foi descendo, empurrando as linhas dos caborés. Ainda mais adiante, já no Monge, houve uma tentativa de resistência, com metralhadoras, mas a onda humana levou tudo de roldão, desembocando na planície e espalhando-se nela com gritos de alegria, dobrados pelas bandas de música e canções festivas.

Quando soaram as badaladas de meio-dia, o quadro já tinha mudado: grupos de homens e mulheres corriam pelos bosques à caça dos caborés. E quando estes passavam pelas ruas, a correr, sem o cabuloso chapéu e com as botas enlameadas, as crianças escangalhavam-se de rir. Então, o povo segurava-os pelas barbas ruivas e arrastava-os para o Depósito Geral, onde eram confiados às famílias que se interessavam pela sua reeducação. Ao entregá-los, depois de formalidades que asseguravam acolhimento paternal, com a responsabilidade de tutores, o empregado dava instruções sobre o tratamento que lhes devia ser preliminarmente dispensado:

- Antes de tudo, cavalheiro, cortam-se-lhes a barba e o cabelo. Depois, substitui-se essa roupa anacrônica por um traje simples e higiênico, que não prive o corpo dos benefícios do sol e do oxigênio. Mais tarde, com os devidos cuidados, descalçam-se-lhes as botas. Quando as mesmas estiverem muito aderidas ao corpo, é recomendável amolecê-las numa imersão de água morna. Por fim, um banho que deve ser prolongado, pois o perigo de um golpe anafilático em tais casos é lenda do pasado que pertence ao domínio da História...

Nesse ponto, um sujeito neurastênico desceu de um aeroplano e pôs-se a ameaçar céus e terras:

- Vocês me intrujaram! Foi para isto que me fizeram voar a noite inteira? Onde se viu uma invasão de bárbaros que termina no dia seguinte?

E o vale entregou-se aos trabalhos de reparação dos danos praticados pelos caborés. Dentro de um mês, a vida já havia voltado à sua normalidade feliz, à luz do sol, à doçura dos bambuais, ao sopro cálido e mau conselheiro do vento noroeste...

Ilustração: Jean Luciano