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HISTÓRIAS E LENDAS DE CUBATÃO
E o diabo já não joga sinuca


Ficou a dúvida, se o ser demoníaco era o cão ou seu dono. Mas, repasso o causo tal como recebi, sem questionar sua veracidade, apenas com alguma atualização ortográfica. Foi publicado na edição especial Cubatão - 47 anos, encartada na edição de 9 de abril de 1996 do jornal santista A Tribuna, páginas 14 e 15:

A implantação do polo fabril fez desaparecer os mais tradicionais recantos de Cubatão
Imagem: reprodução parcial da página 14 com o início da matéria

 

Parente do "capeta" jogou sinuca

A endiabrada vingança de Boquinha e Zé Batata

Antônio Carlos Cruz [*]
Colaborador

Nenhum desnível, pano impecável, bolas de marfim (hoje, raridades), tacos em caviúna desempenados e com ponteiras em couro cru… e nada igual à velha mesa de sinuca do Bar do Zé Padeiro, uma das poucas opções de lazer daquelas mormacentas noites e início de outono.

E, na disputa por uma "melhor de três", acotovelavam-se em torno da divina arena os melhores "tacos" do pedaço: e Barreto desafiava Lacerda, que desafiava Boquinha, que desafiava João batata, que desafiava Carlinhos…

E assim o dia seguinte quase sempre surpreendia aqueles incorrigíveis notívagos a quem as responsabilidades (das quais jamais desertaram) clamavam já aos primeiros clarões.

E na peleja, tudo se apostava: Jão Batata, a ninhada de pintainhos que a dedicada esposa, d. Rosa, se desdobrava em cuidar; Barreto, a velha espingarda Sarraschetta de cano duplo, da qual tanto se orgulhava o pai; Boquinha, uma dúzia de traíras do tanque vigiado dia e noite pelo zeloso irmão Zé da Massa… e daí por diante.

- Olhem quem vem lá… balbuciou num carregado sotaque lusitano, numa daquelas memoráveis noites, o atento Zé Padeiro, apontando com o queixo as esquinas da Miguel Couto com a Pedro de Toledo.

- O Chico Preto, retrucou a turba; ah, hoje "a gente pega ele"… Arrastando as pesadas bocas enlameadas e exibindo a banguelice num inconfundível e matreiro sorriso, achega-se o crioulinho:

- Um cabritinho da cria de dezembro contra a metade do que "tá casado" na mesa, desafia o recém-chegado, com ares de quem já ganhou tudo.

Encarniçado Chico Preto: tinha partes com o "Tinhoso", alardeavam.

Sozinho na vida, na velha casa de madeira em cujo porão, alto, andava-se sem bater a cabeça, vivia do bananal bem cuidado e de meia dúzia de cabritos de corte e cabras leiteiras, únicos na região.

De sinuca, sabia tudo e um pouco mais: não lhe atribuía derrota alguma, empate que fosse: só vitórias.

- Negócio fechado, brada em coro a encorajada turba.

E assim tem início o combate.

Branco, o fiel cão de Chico, acomoda-se num canto do salão e, entre uma coçada e outra, rosna, desconfiado, para os adversários do dono, como que antevendo as "tretas" que mais uma vez lhe cavariam em busca de uma vitoriazinha que fosse.

Bola 5 sem tabela… bola na caçapa 3… a 7 "no castigo"…

E mais uma vez a plateia assistia, silenciosa, as implacáveis jogadas de Chico Preto, eliminando um a um aqueles inconsoláveis vice-campeões de sinuca… sim, porque campeão, único, era ele próprio.

- S'imbora, Branco. O dia já "tá" ganho…

Preguiçosamente, o cão se levanta, olha para os derrotados e rosna mais uma vez… sabe-se lá não dando uma gostosa e sarcástica gargalhada de gozação… e junto com o dono tomam o caminho de casa.

- O gajo é de fato endiabrado, comenta Zé Padeiro, enxugando com a manga da camiseta o restinho de molho de almôndegas que lhe escorria pelo queixo e já ganhava o pescoço…

O pesado silêncio daquela triste reunião de derrotados só é quebrado vez ou outra pelo bater de asas de uma mariposa que insistia, em vão, em entrar na encardida lâmpada pendente sobre a mesa de sinuca.

- Já sei… já sei… já sei!... diz de repente não me lembro quem deles, de dedo em riste e olhos esbugalhados de prazer:

- Vamos aprontar uma "boa" pr'o Chico Preto… tenho uma ideia genial, ouçam…

Cochichos e buchichos, e as pedidas:

- Zé, empresta aquele cabo de picareta que taí no canto…

- Zé, aquele saco de estopa ainda tá atrás da porta da cozinha?

- Ah, Zé, põe água prá ferver no tacho grande, que a gente volta logo…

- Que raios vão vocês me aprontar? Olhem lá…

E os cinco são rapidamente engolidos pela escuridão, caminho da casa de Chico Preto. Não era tão longe assim: na Vila Nova, acho que onde hoje a São Luiz cruza a D. Pedro…

A caminho, os planos da ação eram criteriosamente discutidos:

- Você, vá na frente e confira se o Chico não está perambulando pela casa… ele tem que estar dormindo; você, vem comigo e mantenha a boca do saco aberta: vou dar uma única e certeira porretada na cabeça… isso feito, vocês dois colocam o bicho no saco… daí, todo mundo de volta… mas sem barulho, hein? Quietinhos, quietinhos…

- Não vejo a hora – esfrega as mãos sofregamente o João Batata, extasiado de prazer….

Pé ante pé, caminham silenciosamente pela escuridão do porão da velha casa com o cuidado de não pisarem nos cabritos que, alheios a tudo, dormiam esparramados sobre os feixes de capim-angola que lhes servia de alimento de dia e de abrigo à noite.

- Este aqui tá bom… prepare o saco que lá vai porretada!...

E o surdo do baque misturou-se ao coaxar do sapo cururu na lagoa.

- Ah, ah, ah… desta vez, "aprontamos" pr'o Chico!...

Deixa por conta do Zé… ele sabe o que é melhor…

- Porque a gente não convida o Chico prá comer também? Depois, a gente conta prá ele… vai ser divertido!...

- Xii, ele ainda tá vivo… já estamos chegando.

E a ululante turma entra bar adentro:

- Zé, aqui está… prepare com bastante batata e cebola, capriche no molho que vamos comer hoje mesmo… é cabrito do Chico Preto… é carne de primeira.

E, virando a boca do saco prá baixo, é despejado aquele que seria o tão cobiçado troféu…

Todos se esbugalham: ainda atordoado com a porretada e os sacolejos da inusitada viagem, senta-se sobre as patas traseiras, olha em volta com o mesmo olhar de incredulidade dos seus algozes, o insuportável, sarnento, tinhoso, mas fiel, cão do Chico Preto.

E corre daqui, sobe na mesa ali, mordida prá cá, mordida prá lá… e o valente cão toma o caminho de casa, não sem antes deixar a marca de seus caninos nas pernas que carregavam aqueles desastrados aventureiros….

De há muito não se vê Chico Preto e seu inseparável amigo.

Até onde se sabe, ele nunca conseguira entender porque, a partir de então, toda vez em que pelo bar do Zé Padeiro passava, o Branco se arrepiava, do focinho ao rabo… e rosnava, e rosnava, e rosnava… e como que, por encanto, num instantinho, aqueles cinco azarões da sinuca desapareciam dali…

[*] Antonio Carlos Cruz é bancário e narrador de "causos" antigos de Cubatão.

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