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BAIXADA SANTISTA - BIBLIOECA NM - Lendas e Tradições
Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade...

Clique aqui para ir ao índice do primeiro volumeEm maio de 1940, era publicada esta obra do historiador santista Francisco Martins dos Santos, reunindo uma série de histórias que ele havia publicado em jornais. Com 254 páginas e tiragem de 2.000 exemplares, Lendas e Tradições de Uma Velha Cidade do Brasil foi impresso na Empresa Gráfica da Revista dos Tribunais, na capital paulista, incluindo ilustrações de Wast Rodrigues e prefácio de Baptista Pereira.

O exemplar pertencente ao professor e pesquisador Domingos Pardal Braz, de São Vicente/SP, foi cedido a Novo Milênio para digitalização em 2015. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 54 a 62:

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Lendas e Tradições

de Uma Velha Cidade do Brasil

Francisco Martins dos Santos

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[06] A primeira manifestação de Nossa Senhora do Monte

O espírito católico de d. Francisco de Sousa vinha levantando pelo Brasil, ao fim do século dezesseis, as ermidas de Nossa Senhora do Monte Serrate. Onde quer que o fidalgo luso parasse alguns anos, logo, por sua especial devoção à santa, procedia à criação do seu culto.

Em São Vicente ele não levou anos, levou meses, visitando a Capitania, mas foi isso suficiente para que, à vista de tão propício morro santista, o São Jerônimo, arquitetasse a ereção de mais uma capela, à sua custa ou à custa do erário, como melhor ficasse ao fim, e talvez à custa do povo, como acontecia quase sempre.

Dos entendimentos com o Carmo e alguns padres seculares resultou a construção da ermida no topo do morro visado, à vista de toda a região santista, de Cubatão à Barra Grande. Em 1603 estava pronta a igrejinha que tão notável ascendente adquiriria sobre as populações locais, no correr dos séculos.

A subida para o cume do São Jerônimo era então, e assim se conservou até o fim do século dezenove, pela parte do Norte, pela lombada do São Jerônimo Pequeno, onde hoje está o hospital da Santa Casa da Misericórdia, beirando o precipício, e desenvolvia-se o caminho através do arvoredo basto que Pedro Cubas, conservando a orientação do progenitor venerável, ali deixara ficar
(N. E.: era comum no início do século XX, mesmo errôneo, indicar-se 'progenitor' com referência ao pai, genitor, embora a representação correta seja do avô. Neste caso, o autor se referia ao pai, Braz Cubas, fundador de Santos).

Durante alguns anos, o prestígio da santa limitou-se à novidade e à fama que vinha de além, dos outros lugares e países onde ela existia de velho, contando-se então, com pinceladas de lenda, as notícias dos seus milagres, porque em Santos nada de convincente se produzira até aquela altura, que justificasse romarias e o esquecimento das Senhoras da Graça, do Desterro e do Carmo, que lá estavam mais próximas do povo.

Mas, corria afinal o ano agitado de 1614. Do Rio de Janeiro acabavam de chegar a Santos notícias alarmantes. Dizia-se que uma poderosa frota holandesa, que não pudera entrar na Guanabara, fundeara junto à Ilha Grande e em seguida rumara para ali, para a enseada de Enguaguaçu. Joris Van Spilbergen era o seu grande comandante e compunha-se a divisão corsária de seis potentes barcos de guerra, armados, municiados e pejados de gente, o 'Groote Zon', o 'Groote Maan', o "Jager', o 'Meeuw', o 'Eolus' e o 'Morgenster', como depois se viu.

Governava a Capitania, em Santos, junto ao Outeiro de Santa Catarina, Pedro Cubas, capitão-mor interino, substituindo Domingos Pereira Jácome; Gaspar de Abreu era o provedor da Fazenda Real, ao mesmo tempo vedor da Gente de Guerra, e Paulo da Rocha Siqueira era presidente do Senado da Câmara da Vila.

Sob a direção desses três homens dividiu-se imediatamente todo o povo entre as preocupações da defesa e da retirada, reforçando as fortalezas, cavando trincheiras na barra, reforçando as paliçadas, ou preparando seus haveres para a fuga oportuna.

Pouco tempo houve porém para isso, porque dois dias apenas depois do aviso sinistro surgiam as seis rapaces holandesas à vista da abra de Embaré. Cresceram sobre a praia, a alcance de um tiro de peça; puseram-se em linha de combate, pondo-se o 'Meeuw' de atalaia sobre a barrinha vicentina, onde pequenas embarcações e grupos armados, de gente da terra, pretendiam embargar qualquer tentativa de desembarque.

O 'Jager' adiantou-se para o Leste, forçando a abra de Embaré, imponente, com suas trinta bocas de fogo de bom calibre, travando luta com a Fortaleza de Santo Amaro. Mas, pobre Santo Amaro! Desde 1590, pelo menos, não lhe renovavam os armamentos, e aí, atacada por terra, pelos homens descidos na prainha do Góis, e atacada por mar, pelas baterias possantes da nau holandesa, pouco resistiu, permitindo ao fim do dia que o 'Jager' e mais os dois 'Groote' penetrassem pelo porto santista, onde restava a última esperança do Forte de Itapema.

As sombras da noite vieram proteger os corsários da Batávia, que nenhuma dificuldade tiveram em transpor o passo de Itapema. Alguns tiros trocados demonstraram, aos homens do fortim santista, a inutilidade da defesa feita a esmo, com alvos indistintos, ainda com a desvantagem de oferecer alvo fixo ao adversário, e assim a Vila de Santos ficou à mercê dos três vasos holandeses.

O desembarque se operou pela manhã, tendo os holandeses inicialmente pretendido demonstrar boas intenções, afirmando aos dirigentes da terra, por seus mensageiros, que vinham apenas para se refazer de gêneros e descansar seus doentes, que não eram poucos; mas, os defensores da Vila não aceitaram contato de paz com eles e romperam suas baterias, índios, portugueses e mestiços, conjugados e entrincheirados em toda margem do Enguaguaçu, do outeirinho de Santa Catarina ao Rio dos Pelames, onde hoje fica a Rua de São Bento.

Apoiados, porém, na artilharia grossa que traziam, os soldados de Spilbergen, em dois dias, varreram toda a resistência local e se apossaram da Vila, invadindo as casas da Câmara, a Alfândega, os engenhos, as igrejas, e todos os estabelecimentos onde pudessem pilhar alguma coisa, iniciando o saque geral, que envolvia armazéns, trapiches e casas particulares.

Em verdade devia enojar a um grande comandante como Spilbergen, cuja indiscutível tática naval ainda lhe daria tanta glória e o faria vencer, meses depois, já no Pacífico, Don Pedro Álvares de Pulgar e Don Rodrigo de Mendosa, com seus oito galeões de guerra e seus dois mil homens de combate, o saque vulgar iniciado por sua gente, mas o almirante holandês estava irritado com a resistência da Vila e desapontado com o desaparecimento dos gêneros alimentícios de que precisava, do sal que sabia ser abundante nos depósitos santistas, e finalmente, de toda a prata que ali devia existir com certeza; daí o haver autorizado a devassa e as depredações cometidas por seus soldados.

A ronda dos desalmados da esquadra varejou toda a vila, em escoltas numerosas, que se encontravam a todo momento entre gritos e saudações à sua moda, inspiradas pela aguardente subtraída ao Engenho de São João.

E onde estava, afinal, a população da Vila? Alguns haviam desertado para os sítios dos arrabaldes; muitos haviam procurado a Gruta de Nossa Senhora do Desterro, que Mestre Bartolomeu iniciara e seu filho concluíra, refúgio disfarçado e seguro, tradicionalmente usado em tais circunstâncias, mas a grande parte do povo, que levava consigo apenas valores amoedados ou em peças e algum mantimento, essa se refugiara no alto do São Jerônimo, junto à Capela de Nossa Senhora do Monte Serrate, certa de estar a salvo da gente de Spilbergen, por ser tão alto o morro e contarem todos com a proteção milagrosa da Santa.

Imprevistamente, porém, uma forte escolta de cinquenta holandeses descobrira a subida para a ermida de Nossa Senhora e investia caminho acima, em busca dos prováveis fugitivos e seus metais preciosos. Alguns homens guardavam a subida, escondidos no mato, e descarregaram suas armas sobre os invasores; outros defensores surgiram e muitos corpos holandeses juncaram a base do morro; mas surgiram reforços também para os homens de Spilbergen, e o espetáculo de resistência dos defensores da terra foi perdendo a intensidade e transferindo-se aos poucos cada vez mais para cima.

No alto do morro, a multidão foragida, em que havia velhos, moços, mulheres e crianças, tomada de terror, ouvindo o espoucar dos tiros e as imprecações holandesas cada vez mais perto, chorava e rezava, ajoelhada, dentro da capela, junto à imagem da Santa, ou lá fora, por todo o chão em derredor.

- Valei-nos Santa milagrosa!

- Socorrei-nos oh Senhora do Monte!

- Salvai-nos dos ímpios holandeses!

Eram os gritos que mais se ouviam na confusão dos apelos e dos soluços que enchiam todo o tope do morro.

Um frade do Carmo acabava de levantar o Santíssimo, abençoando a multidão dos refugiados e ajoelhava-se então diante do altar de Nossa Senhora. Os olhos postos na fisionomia pacífica da Santa, os braços abertos em resignação, como se falasse por todos os crentes, o carmelita de longas barbas veneráveis pronunciava o seu apelo em favor da multidão:

- Milagrosa Senhora do Monte Serrate! Se quiserdes podereis salvar-nos!

Naquele momento, um ligeiro tremor abalou o cume do morro sagrado, e um ronco surdo, como um trovão distante, encheu de espanto a multidão. Todos correram para o lado de onde ele vinha, e alguns ainda chegaram a ver o milagre extraordinário.

A meio morro, entre os santistas que recuavam e os invasores que venciam, da parte de cima, levantava-se um talude imenso, saibroso, inçado de grandes rochas, sustentando no dorso um núcleo velho de árvores de vários portes. Subitamente, como se forças invisíveis desagregassem aquela massa enorme, todo aquele talude desabou sobre os holandeses, fragoroso, como uma avalanche, soterrando-os entre gritos de pavor.

Não escapou um corsário para contar a história. Mais de duzentos, talvez, ficaram para sempre ali, marcando no chão santista a primeira manifestação da Senhora do Monte.

Chegavam as primeiras forças de Piratininga em socorro à Vila de Santos, e a gente de Spilbergen, desapontada, varada de necessidades, manifestando antes a sua raiva com os incêndios que praticou, retirava-se barra a fora, rumo ao Sul, continuando o curso.

E desde então a devoção de d. Francisco de Sousa tomou conta de Santos.

...Subitamente, como se forças invisíveis desagregassem aquela massa enorme, todo aquele talude desabou sobre os holandeses...

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