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BAIXADA SANTISTA - LIVROS - Docas de Santos
Capítulo 14

Clique aqui para ir ao índicePublicada em 1936 pela Typographia do Jornal do Commercio - Rodrigues & C., do Rio de Janeiro - mesma cidade onde tinha sede a então poderosa Companhia Docas de Santos (CDS), que construiu o porto de Santos e empresta seu nome ao título, esta obra de Helio Lobo, em 700 páginas, tem como título Docas de Santos - Suas Origens, Lutas e Realizações.

O exemplar pertencente à Biblioteca Pública Alberto Sousa, de Santos/SP, pertenceu ao jornalista Francisco Azevedo (criador da coluna Porto & Mar do jornal santista A Tribuna), e foi cedido a Novo Milênio para digitalização, em maio de 2010, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, sendo em seguida transferido para o acervo da Fundação Arquivo e Memória de Santos. Assim, Novo Milênio apresenta nestas páginas a primeira edição digital integral da obra (ortografia atualizada nesta transcrição) - páginas 97 a 104:

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Docas de Santos

Suas origens, lutas e realizações

Helio Lobo

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SEGUNDA PARTE (1896-1905)

Capítulo XIV

Velhos temas, novos ataques

Foi um semestre cheio de debates, o segundo de 1896. Na imprensa, na Câmara, no Senado, as Docas de Santos, não só nas questões pendentes, mas em todas de seu contrato, objeto de impugnação em 1894, tomaram grande parte. Nada menos de vinte e cinco discursos se pronunciaram, a favor e contra, nas duas casas legislativas. Adversário novo, mas que já não dava quartel, escreveu a Cidade do Rio (16 de junho):

Também nós queremos atracar às Docas de Santos para descarregar um peso que temos na consciência.

Há muito tempo que essas famosas Docas nos fazem sorrir pela manhã.

Parece que elas são a questão mais importante da República e que nós todos, os brasileiros, devemos esquecer os horrores do estado de sítio, o cativeiro dos Estados, o orçamento estupidamente protecionista, a baixa do câmbio, o monopólio do café, por certas casas exportadoras, a incapacidade anarquizadora do leader, a surprese partidária na organização da mesa e das comissões do Senado, esquecer tudo, enfim, para só pensar nas Docas de Santos.

O ambiente político era agitado, pois não se fazia sem paixões a transição de um governo militar, como o de Floriano Peixoto, que arcara com a revolta da Armada no Rio de Janeiro e a revolução federalista no Rio Grande do Sul, para o essencialmente civil de Prudente de Moraes, tão empenhado na pacificação da família brasileira. Empresa industrial na Companhia Docas de Santos, refletiriam indiretamente esses momentos, por que o País passava, quando de pretensões suas ou ataques que acaso sofresse.

Na referida revolta (6 de setembro de 1893) fora ela de eficaz auxílio ao governo legal, pois Santos foi porto de concentração relevante, sem pedir embolso de prejuízos sofridos ou despesas acaso feitas.

Há uma norma, nas empresas de vulto, a de estrito desenvolvimento dentro da ordem estabelecida, qualquer que seja o pensamento político íntimo dos dirigentes. Assim a empresa de Santos. Mas, como de tudo se lançava mão em desfavor dela, até dos pendores íntimos dos diretores se extrairia boa munição.

Havia um dos jornais da capital do Estado chamado de "estrangeiros insolentes" aos referidos diretores, os mesmos que outro, dos de maior circulação, dissera "ardentes, apaixonados federalistas". E José do Patrocínio não via neles senão o oposto:

O senhor Prudente de Moraes talvez não saiba que as Docas de Santos eram prolongamento do castilhismo e por isso tem-se julgado com autoridade bastante para não entregar toda a vida aduaneira do Estado de São Paulo aos srs. Gaffrée e Guinle, que são os representantes do protetorado castilhista, os superintendentes da fiscalização federal naquele Estado.

Surgia de novo a questão do cimento, referida atrás, e Victorino Monteiro, no Senado, abriu a réplica (30 de maio) nestes termos:

O SR. VICTORINO MONTEIRO – Nesta questão, porém, não pode estar de acordo com o ilustre deputado Almeida Nogueira, com a defesa prematura e desastrada que s. ex. fez do futuro projeto, porque neste ponto não tem impugnações a fazer; mas vem lavrar um protesto solene e positivo contra as imputações caluniosas levantadas por s. ex., imputações saídas das mofinas dos jornais para ferir a honestidade impoluta de ilustres brasileiros que tanto se têm distinguido por serviços importantes, prestados ao País e ao Estado de São Paulo. Neste ponto, o nobre deputado mostra-se até ingrato.

O SR. ALMEIDA NOGUEIRA e outros dão apartes.

O SR. VICTORINO MONTEIRO – Se para v. ex. isto nada significa e quer dizer que o cidadão rio-grandense é estrangeiro, para nós não é assim porque se trata de cidadãos brasileiros e cidadãos que tiveram a coragem necessária de empregar os seus capitais, coragem que sua ex. e seus conterrâneos não tiveram.

Era o caso do despacho sobre água e do pagamento de armazenagem e capatazias? Filiou o Diario de Santos tudo ao desejo de concessão do cais, agora que os lucros das Docas pareciam certos, ao passo que para o Estado de São Paulo "tudo era tão despropositado e descomunal que não podia continuar assim" [29]. Escreveu aquele:

Toda esta hostilidade contra a Companhia Docas tem duas causas: a má vontade que na Capital se vota contra Santos, e o interesse próprio, pessoal, de um grupo que, convencido hoje do bom resultado daquela Companhia, tenciona abrir-lhe concorrência contando para isto com o apoio de influências políticas e do Governo Federal.

A Companhia Docas levantou fora de São Paulo os avultados capitais de que teve necessidade para levar avante a gigantesca obra do cais de Santos, quando eram incertos os seus resultados, improvável mesmo a realização das obras em virtude de circunstâncias diversas que surgiram; não achou em São Paulo ceitil que quisesse embarcar na sua empresa. Hoje, feita a experiência, organizaram-se ostensivamente sindicatos para nova concessão e seus promotores não escolhem meios para chegarem aos fins que visam
[30].

Leu a propósito Moraes Barros, no Senado (9 de novembro) uma representação da Associação Comercial de São Paulo, contra a cobrança nos despachos sobre água, amparando-se em pareceres de Duarte Azevedo, João Mendes de Almeida, Ruy Barbosa.

Dele, principalmente, adviria a campanha do ano. O argumento capital daquela consulta foi que, cobrando-se a taxa em Santos, não se cobrava nas outras alfândegas; mas já vimos que isso acontecia porque tais mercadorias se descarregavam nessas outras alfândegas em trapiches, praias e pontes; tanto que, depois, tudo se uniformizou geralmente, com o aumento da respectiva taxa.

A empresa, em vista do apoio que a Associação Comercial de São Paulo pensava ter obtido, e não teve da sua congênere do Rio de Janeiro, explicou o caso (Jornal do Commercio, 13 de novembro):

A Associação Comercial de São Paulo, em uma representação dirigida ao Senado contra a disposição do § 2º do artigo 15 do orçamento da receita,votada pela Câmara dos Deputados, cita o texto do artigo 382 da Consolidação das Leis das Alfândegas e Mesas de Renda e diz que o referido § 2167 manda recolher aos armazéns "as mercadorias despachadas sobre água", gravando-as, assim, com a taxa de armazenagem e capatazias.

Isto não é exato; o que o § 2º dispõe é que as operações a que se refere o artigo 382, e a que estão sujeitas todas as mercadorias descarregadas nas pontes e cais das Alfândegas, se tornem extensivas aos depósitos e entrepostos, e armazéns alfandegados, cais e pontes particulares, isto é, que tais mercadorias sejam sempre pesadas, verificada a numeração dos volumes etc.

Como remuneração deste serviço, tinha sido proposta à Câmara a taxa de balança, de 60 reis por volume, taxa esta cuja eliminação a Comissão indicou, aceitando, entretanto, a emenda, que foi aprovada pela Câmara, ficando assim a obrigação de ser executado o serviço sem remuneração alguma.

Concluindo:

Como já foi dito pela Comissão de Orçamento, este serviço é indispensável à boa fiscalização das rendas alfandegárias, pois, sem ele, não pode haver estatística, e sem estatística não há fiscalização possível.

Os gêneros despachados sobre água, quando transitam pelas Alfândegas, entrepostos, cais ou trapiches alfandegados, dentro de 36 horas depois de sua descarga (artigo 495 da Consolidação das Leis das Alfândegas), são isentos de armazenagem, e quando são tomados pelos seus donos, sem que recebem serviço algum das alfândegas, nem dos trapiches, entrepostos ou armazéns alfandegados, também nada pagam de capatazias, que é a remuneração de todo e qualquer serviço prestado à mercadoria.

Segundo esta explicação dos intuitos que tinham os autores da emenda e a Comissão aceitando-a, e segundo também o seu mecanismo, vê-se que o seu efeito é tornar possível, tornar uma realidade, a fiscalização das rendas aduaneiras.

Era caso de terrenos de marinhas? Requereu o deputado Bueno de Andrada (9 de outubro) informações sobre os motivos de ordem pública que justificassem a concessão, a particulares, de tais terrenos em Santos, segundo editais publicados pelo inspetor da Alfândega daquela cidade. Em luta então com a empresa, dera o ministro da Fazenda ao inspetor, como vimos, atribuições nesse assunto.

Respondeu Carvalho de Mendonça, no Diario de Santos, à campanha violenta da Tribuna do Povo, interessadas como eram a União e a empresa na defesa de tal patrimônio, na qualidade uma de usufrutuária, outra de proprietária.

Dois particulares haviam mesmo começado a construção, nos Outeirinhos, de duas pontes, uma em terreno da Companhia, outra no de um particular, sem título hábil, o que faria a empresa dizer ao Ministério da Viação, quando se dirigiu, por meio dele, aos da Fazenda, Guerra e Marinha, "igualmente em causa pelos interesses aduaneiros e da defesa militar e naval" (30 de agosto de 1897):

Além disto, a obra que executa a Companhia no porto de Santos não é a de sua propriedade e sim do Estado, que é o proprietário de todos os terrenos e de todas as obras, máquinas etc., só tendo ela o usufruto por prazo limitado, como remuneração dos serviços que presta e dos capitais empregados, de acordo com as disposições da lei n. 1.746, de 13 de outubro de 1869.

A Companhia não pretende se apossar da propriedade particular, nem mesmo dos terrenos de que se apossaram os manutenidos, que, visando receber indenizações a que não têm direito, procuram, para isso, embaraçar a passagem da muralha do cais e aterro, que ali se executa sobre o mar, com planos e plantas aprovadas pelo Governo.

Voltou igualmente à discussão o monopólio, já impugnado dois anos antes, a propósito da palavra "privilégio" no decreto Glycerio, n. 966, de 1890. Orou Moraes Barros (Senado, 23 de novembro):

Senhores, este privilégio é contrário à lei de 13 de outubro de 1869, que não autoriza o Poder Executivo a conceder privilégios; é contrário ao edital chamando concorrentes para construção das obras; e é contrário ao contrato celebrado entre a empresa e o Governo, em 1888.

O conselheiro Antonio Prado, autor deste contrato, comentando no Senado as cláusulas do mesmo, citava exatamente isto, que o contrato não concedia privilégio à Companhia, que o porto de Santos continuava livre, que para outras obras porventura necessárias, tinha o Governo a liberdade de contratar com quem quisesse, unicamente preferindo aos concessionários, no caso de oferecerem estes iguais vantagens.

De fato, pela letra do contrato da concessão, tinham os concessionários, como vimos, apenas preferência para outras obras, em igualdade de condições. Era, então, a concessão para alguns metros de cais. Transformada logo em cerca de cinco quilômetros, com obras complementares permanentes, como a dragagem, claro é que a situação mudou: serviço exclusivo implícito que se tornaria explícito.

É certo ter sido o espírito da lei de 1869 o de concessão de docas, como em Londres, com guerra de tarifas, entre elas para barateamento dos serviços. Mas viu-se logo que tal não podia ocorrer, impondo-se, na prática, em seu lugar, a construção de portos com direção única, em vez de docas rivais; cada um com sua empresa exploradora, reguladas e fiscalizadas as taxas pelo Governo.

Nãoveio menos à discussão a questão das taxas, de novo tidas por exageradas. Já se viu que não havia dualidade, tampouco era Santos o porto mais onerado. Como se surpreender, entretanto, com isso, se a questão das capatazias ia se arrastar por longo tempo, só tendo termo quase meio século depois? O libelo de Moraes Barros não diminuiu de diapasão, acusando em globo, repetindo as arguições da campanha de 1894. A discussão se exaltou a 24 de novembro, no Senado:

O SR. RAMIRO BARCELLOS – É preciso que nós façamos um estudo, uma ideia exata desta questão, que tem chocado o espírito público, que tem até provocado certos atritos desagradáveis entre nós, quando, podemos estudar o assunto serenamente, fazendo justiça com toda a calma como eu procuro fazer.

O SR. MORAES BARROS dá um aparte.

O SR. RAMIRO BARCELLOS – Tenho um temperamento assim; a voz eleva-se e parece que estou zangado, mas não estou.

O SR. MORAES BARROS – Não é o tom, que o meu também é alto; é a significação das palavras.

Oferecendo longo estudo comparado de cifras, para provar que não procedia a acusação, disse Ramiro Barcellos:

É preciso estudar a fundo o assunto para saber que não é como v. ex. disse, quando afirmou que o comércio de São Paulo sofre uma ação tirânica da Companhia pelas taxas que cobra.

Vou demonstrar com dados oficiais e com estudos meus que Santos é um dos portos do mundo onde as mercadorias e os navios menos pagam. Já não falo no Brasil; e se s. ex. estudasse bem o assunto, não teria tido o trabalho de afirmar o que afirmou e eu não teria de abusar da atenção do Senado.

O porto de Santos é aquele em que as taxas são mais baratas à navegação; é o mais barato de todos que têm serviço aperfeiçoado, mais barato que o de Buenos Aires, o do Havre, o de Bordeaux, o de Liverpool e o de Londres.

Vou dar as taxas de todos eles para mostrar ao Senado que a afirmação de s. ex., dizendo que o comércio do seu Estado já não pode tolerar as taxas cobradas pela Companhia, não passa de pura declamação. Vou dar o preço do serviço de diversos portos do mundo, mais conhecidos, quanto à navegação e serviço feito às mercadorias.

O SR. MORAES BARROS – As Alfândegas e São Paulo não estão em questão.

O SR. RAMIRO BARCELLOS – Em tempo lá chegarei; quero seguir metodicamente a argumentação e mostrar quanto foi sem razão v. ex., aceitando, sem menor exame, as asserções do sr. Adolpho Pinto, engenheiro distinto e altamente colocado na Estrada de Ferro Paulista.

Aludiu-se também ao contrabando que, de modo geral, se operava em Santos. Havia nele, com efeito, uma das fontes de certa oposição à Companhia. Nessa época, os despachos se operavam na parte construída do cais, em dois trapiches alfandegados e em pontes e trapiches particulares.

Ora, ficava aos proprietários o direito de escolha do lugar de descarga, com evidente desvantagem para o Tesouro. Uma emenda legislativa obrigando a marcação e outras providências acauteladoras levantou oposição, e o próprio Governo, mais tarde, viu-se obrigado a baixar uma circular (27 de janeiro de 1897) segundo a qual "as mercadorias despachadas, sobre água, transitassem somente pelos trapiches alfandegados ou armazéns da Companhia, a fim de serem conferidas e desembaraçadas e não quaisquer outros, à vontade da parte, como está acontecendo".

Causara sensação um parecer da Comissão de Finanças da Câmara, segundo o qual, em nove meses (janeiro a setembro de 1896) haviam transitado pelo cais de Santos 132.000 toneladas de mercadorias, com uma renda de 20.725 contos; ao passo que pelas pontes, trapiches alfandegados e particulares, haviam transitado 155.000 toneladas, que renderam ao erário apenas 14.000 contos; donde um desvio de cerca de 10.336 contos
[31].

Havia exagero nos algarismos
[32], mas, mesmo assim, eles exprimiam abusos que urgia extirpar [33]. Tinha-se exagerado igualmente a parte das Docas no aumento das rendas de importação de Santos, sem que, entretanto, a obra de saneamento moral, levada a efeito por elas, à proporção que o cais aumentava, deixasse de ser considerável [34].

Essas rendas tinham sido de 7.387:998$000 em 1888; 8.656:515$000 em 1889; 9.371:572$000 em 1890; 11.755:640$000 em 1891; 22.079:105$000 em 1892; 25.152:582$000 em 1893; 24.298:681$000 em 1894 (a Revolta da Armada respondia pelo recuo); 38.795:299$000 em 1895; 43.010:504$000 em 1896
[35].

Documentos oficiais, como o relatório do Ministério da Indústria, Viação e Obras Públicas (1896), atribuíam à empresa, exclusivamente, esse aumento. Mas era preciso levar em conta os impostos adicionais de 50 e 60%, instituídos pelo decreto n. 126-A, de 21 de novembro de 1892, e a taxa e a sobretaxa decretadas pelas leis ns. 161, de 30 de setembro de 1893 e 265, de 24 de dezembro de 1894.

Apesar disso e de outros fatores – esse o grande argumento em favor do cais -, nas outras alfândegas não houve, em proporção, tal diferença. Foi o que alegou o Diario de Santos:

Não negamos, e seria necessidade senão má fé se o fizéssemos, que o acréscimo da renda da Alfândega se deve a dois principais fatores: aumento de importação e aumento de impostos fiscais. Mas o que queremos mostrar é que o extraordinário acréscimo, o surpreendente resultado que a estatística registra, se deve à fiscalização da Companhia Docas.

Assim, pois, esta fiscalização se deve também incluir entre os fatores do acréscimo das rendas aduaneiras. Os orçamentos de 1892 a 1895 agravaram alguns impostos de importação, diminuíram outros, e não há dúvida que da compensação resultou vantagem para a Fazenda Nacional. O que, porém, ninguém provará é que esta vantagem, que se traduz por agravação de impostos, cresceu de maneira tão notável como a estatística registra na Alfândega de Santos.

O quadro acima mostra que, em 1895, as mercadorias aumentaram 54% sobre as importadas em 1891 e a renda 157%! A que atribuir a diferença de 103%? Ao fato da agravação de impostos? Impossível. Por que tão sensível aumento não apresentam as demais alfândegas da República?

O caso da renda, assim aumentada, daria de novo ocasião à Cidade do Rio para fazer ironia, inquirindo porque não se entregavam também a Gaffrée, Guinle & Companhia os cargos de ministro da Guerra, ajudante general do Exército e comandante dos corpos da guarnição do Rio de Janeiro, já que na Fazenda obravam tais milagres [36].

A verdade, porém, era que o próprio ministro da Fazenda, no seu último relatório (1895), havia lamentado, de um modo geral, terem-se perdido "as respeitáveis tradições que acompanhavam a administração pública de longa data e tanto enobreciam a corporação da Fazenda", queixando-se, quanto à repartição de Santos, do seu desmantelamento. E de seu próprio agente naquele porto, o inspetor Alvaro Godinho, fora este depoimento, ao referir-se ao cais:

A polícia interna dos seus armazéns e pátios é feita com o maior escrúpulo possível, sendo daí que provém a grita ultimamente levantada por aquelas pessoas, cujos mal cabidos interesses têm sido ou ficaram por semelhante forma contrariados.

A administração geral da Companhia nesta cidade, pelos serviços que tem desempenhado, dos quais dou testemunho, está compenetrada que ligados como se acham seus interesses aos da Fazenda Pública Federal, deve ser auxiliar dedicada do Governo e de seus agentes; e assim o tem feito, o que já é reconhecido pelo comércio honesto do Estado
[37].

Por último, nem o próprio balanço da Companhia ficou isento de impugnação. Ele andou pelos jornais comentado ao sabor de um e outro. Como não ser assim, se a própria Diretoria das Rendas, para quem a concessão caducara, se tinha proposto glosá-lo a seu modo?

Vale a pena transcrever-se, como espelho do momento, um trecho da resposta reunida, depois, com os demais em folheto:

Diz o balanço "Saldo em moeda corrente" 393$000, em 1893; 75$680, em 1894, e 87$970, em 1895. Da existência de tão diminutas quantias na "Caixa", em moeda corrente, conclui o diretor das Rendas: "Como é, pois, que a Companhia pode distribuir dividendo tão considerável?"

Vê, pois, o público que o nosso candidato a ministro não conhece, nem por alto, qual uma das primeiras missões dos estabelecimentos bancários, e não admite, nem de leve, que o negociante possa depositar ali os saldos realizados, mediante conta corrente, guardando em seus cofres apenas a quantia necessária às pequenas despesas de um dia e muitas vezes de poucas horas.

Em sua opinião, aliás considerada autorizada por altos poderes do país, o saldo da receita sobre a despesa que se realize nos negócios de uma companhia ou de uma casa comercial só deve ser guardado na própria caixa dessa companhia ou casa comercial e em moeda corrente!

Adiante:

O capital da Companhia Docas é de 20.000:000$000 e contraiu ela o empréstimo em debêntures na importância de 20 mil contos de reis. Temos, portanto, que no seu passivo devem figurar, como figuram, essas duas quantias na importância total de 40 mil contos de reis.

Desta soma estavam gastas nas obras do cais, compreendendo o próprio cais, as instalações do serviço, armazéns etc., as de reis 20.650:696$040, em 1893; 24.447:342$810 em 1894 e 27.681:629$298 em 1895.

As diferenças entre estas últimas importâncias e o capital em ações e debêntures representam, naturalmente, na Companhia, quantias que estão a seu crédito ou que lhe são devidas. Foram elas escrituradas no balanço sob a rubrica "Devedores diversos".

A elas foram, porém, adicionados outros saldos, que não devem ser ignorados de quem sabe que a Companhia "explora serviços pagos à boca do cofre, como são os de ancoragem e atracação, descarga, carga e armazenagem de mercadorias", mas que não sabe coisa alguma de escrituração mercantil, e põe-se a dar por paus e por pedras e a fazer barulho pelos jornais
[38].

Santos primitivo - Rua Xavier da Silveira (1893)

Foto: reprodução da página 98-a


[29] "Quer isto dizer que a simples descarga de carvão de pedra, por exemplo, em quantidade correspondente à que comporta um vagão de dez toneladas, custa cerca de oitenta mil reis, isto é, mais do dobro do que cobra a Estrada Ingleza para transportar o mesmo material de Santos a São Paulo, vencendo a distância de 79 quilômetros, dos quais oito pertencentes ao complicado e custoso serviço de planos inclinados da Serra, depois mesmo do aumento de 50% dos fretes desta estrada, decretado há cerca de dois anos. Tudo isto é tão despropositado, tão descomunal, que absolutamente não pode continuar assim". Estado de São Paulo, 12 de junho de 1896.

[30] As Companhias de Estradas de Ferro de São Paulo e as Docas de Santos, Resposta, cit., página 10.

[31] Diario Official, 7 de novembro de 1896. A lei n. 1.313 de 30 de setembro de 1904, a referir-se adiante, preceituou que onde houvesse exploração de cais de acordo com a lei n. 1.746, de 17 de outubro de 1869, a descarga era nele obrigatória.

[32] Inspetor da Alfândega de Santos, Turibio Guerra procurou desfazer o efeito destas revelações, originando daí discussão pela imprensa. Argumentava ele que para as pontes particulares iam, na sua maioria, os artigos da letra "H" da Consolidação (alfafa, milho, farelo, feijão, querosene etc.) e que os dados da Comissão de Finanças lhe haviam sido fornecidos "por interessados na extinção das pontes e trapiches", o que reduzia o algarismo a cerca de 5.000 contos.

Mesmo assim, seu depoimento era prova da desorganização dos serviços, aliado maior do contrabando. Sem estatística, confessou ele, lutou com enormes dificuldades para organizá-la, o que só conseguiu "já fazendo apanhamentos pelos manifestos e despachos, já pelos documentos de descarga fornecidos pelos próprios trapiches". Jornal do Commercio, 25 e 26 de novembro, e Diario de Santos, 26 de novembro de 1896.

[33] Arrendatário de trapiche, F. Ferreira Goulart protestou no Jornal do Commercio (15 de novembro de 1896): "A Comissão de Orçamento, iludida por algarismos inexatos e deduções falsas, irrogou irrefletidamente uma censura injusta e grave não só aos donos e administradores de trapiches particulares, como aos empregados da Alfândega de Santos. Posso tolerar que se exagerem os serviços da Companhia Docas de Santos para acumular de favores, mas para esse fim não é admissível que se difamem caráteres de reconhecida honorabilidade. E que tenha a paciência o informante oficioso: nãohá de ser por semelhante processo, nem fantasiando o despropositado desfalque de mais de 12 mil contos de reis nas rendas da Alfândega, só em dez meses, que o há de conseguir".

[34] A Companhia Docas de Santos e a Alfandega de São Paulo, 1ª série, cit., páginas 62 e 63; A Alfandega de São Paulo e a Companhia Docas de Santos, relatório do diretor geral das Rendas, cit., pág. 46 e segs.

[35] Relatorio da diretoria, 1897.

[36] "Não vê esse Governo o jogo que campeia impune e que está zombando da moralidade pública enquanto não forem castigados convenientemente os empregados da Alfândega de Santos e não for suprimida a Alfândega de São Paulo? Entretanto, seria fácil extirpar esse cancro, se o Governo contratasse com Gaffrée & Companhia, a polícia desta capital. Com a mão esquerda eles estrangulavam o contrabando em São Paulo e com a direita degolariam o jogo deste outrora heroico e leal Rio de Janeiro. Não seria menos eficaz a nomeação de Gaffrée & Companhia para o cargo de ministro da Guerra, ajudante general e comandante dos corpos desta guarnição". Cidade do Rio, 16 de julho de 1896.

[37] Relatório apresentado ao ministro da Fazenda pelo inspetor da Alfândega de Santos, Albano Duarte Godinho, 1895. – A 28 de março de 1896 publicou-se a relação de vários comerciantes, despachantes gerais, caixeiros-despachantes e comissários de Santos suspensos e proibidos de entrar na repartição por fraudes praticadas, em virtude de inquérito mandado proceder pelo referido diretor das Rendas.

Ressentiu-se com razão este de que o culpassem dos desvios de rendas em Santos. "É sobre o atual diretor das Rendas Públicas do Tesouro, escreveu ele ao ministro da Fazenda (30 de março de 1896) que a imprensa apaixonada dirige toda a sorte de acusações referentes aos defraudamentos praticados em Santos, no período de 1890-1892, quando, entretanto, é sabido que o funcionário que exerce o cargo só foi nomeado em 18 de agosto de 1894, e que tem permanecido afastado do Tesouro longo tempo na comissão especial de estudos e organização das alfândegas de São Paulo e Juiz de Fora e não é responsável pelo que sucedeu à época dos grandes defraudamentos, que só hoje fazem objeto de apreciação no Senado e na Imprensa".

[38] No Jornal do Commercio, de 16 de maio de 1896. Ver ainda a Alfandega de São Paulo, Rio de Janeiro, Typ. do Jornal do Commercio, 1896.