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Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 04/05/03 16:16:02
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NOTÍCIAS 2003

Guerra e paz

Mário Persona (*)
Colaborador

O vôo viajava tranqüilo, o mundo não. Na partida de Belém e na conexão em Brasília, diferentes jornais de bordo falavam de guerra e paz com letras iguais. Mundo estranho, esse, onde todos têm razão. Numa foto, a explosão que soterra. Na outra, o soldado que socorre. A mão que bate é a mesma que afaga. Como pode ser?

Faz parte dessa estranha natureza nossa, esse vermezinho belicoso. Como lata amassada em gôndola de supermercado, revelo uma queda, a não-conformidade pós-manufatura que faltava no projeto original. Se não acredita, ausculte o coração de meu cérebro na hora daquela fechada no trânsito. Impublicável.

Fui criado do mesmo barro do Éden, atual Iraque. Palco da primeira guerra de Caim contra Abel, que matou um quarto da população de então. Terra de Ninrod, o "caçador de homens" e hoje nome de míssil, que fundou Babel, torre da discórdia e alicerce de Babilônia. A qual Saddam tentou restaurar com seu nome gravado em milhões de tijolos, feitos do mesmo barro que Bush e eu.

Negócios não ficam imunes à guerra, principalmente quando confundidos com uma. Mas não devia ser assim. Uma transação não é uma invasão, mas uma troca. Sem invasores ou invadidos, vencedores ou vencidos, mortos ou feridos. Apenas pessoas satisfeitas com a chegada a um consenso. Porém somos orgulhosos e inflexíveis, pois confundimos flexibilidade com fraqueza. Não é. É pela flexibilidade que se avalia a têmpera do aço.

Negociar é uma arte de cintura, diálogo e táticas, como a análise velada do outro na hora do cumprimento e da conversa sobre chuva e sol. Prioridades, flexibilidade e concessões vêm planejadas de casa. Na mesa, local ideal para se negociar por nivelar as partes, é ideal a minoria numérica, que reduz a resistência psicológica.

O tom da voz, o aperto de mão, o sorriso nervoso, o pomo-de-adão são páginas de um livro aberto para quem sabe ler o corpo. Mas cuidado, pois negociadores profissionais vêm tatuados de um texto que dissimula intentos e emoções.

Lembro-me da negociação com uma grande empreiteira. Cavanhaque bem cortado para esconder emoções, terno importado para subjugar reações, tudo no diretor de negócios do oponente era planejado. Até sua chegada à sala e a escolha da cabeceira da mesa, aviso sutil de que assumia o comando. Éramos maioria, jogando em casa, mas a ponto de capitular diante do invasor e suas armas de última geração.

Levantou-se, para expor a estatura viril, o peito inchado, os ombros retificados e o maxilar proeminente, e passou a caminhar ao redor da mesa e de todos. Ligeiro e com gestos cirúrgicos, punha e tirava os óculos irritado. Foi fechando o cerco com paradas estratégicas na retaguarda, quando agarrava o encosto da cadeira de um ou se apoiava nos ombros de outro. Só para mostrar o peso de sua superioridade e garantir que dominava nosso flanco vulnerável. Nos vergava, o verdugo.

A prepotência das explosões de argumentos ameaçava demolir a cidadela de nossa defesa, quando estancou à cabeceira. Qual tripé de metralhadora, armou o corpo inclinado, espalmou as mãos separadas sobre a mesa, em sinal de domínio, e disparou em tom letal: "Sem aumento, eu interrompo o fornecimento".

Reviravolta - Conhecedor da técnica, rompi o silêncio de três séculos que se seguiu e disparei contra o Golias uma estilingada verbal: "Estou comovido. Você quase me fez chorar." A gargalhada geral mostrou que tinha sido quebrado o encanto. A maquiagem escorreu, o rebolado se perdeu e o diretor desabou na cadeira do desalento. A partir daí vestimos trajes civis, para negociar sem pressão psicológica ou verborragia teatral.

O consenso do ganha-ganha é sempre a melhor campanha. Na paisagem de Saigon, marcas ocidentais conhecidas encimam os edifícios. Lá você lancha um McDonald's com Coca-Cola e passeia de Nike. Tudo pago com Visa ou American Express. Em lugar de balas zunindo, chicletes estourando. Fumaça? Deve ser Marlboro. Foi melhor invadir negociando do que atirando.

Os jornais de bordo retratavam manifestações de paz que nada ficavam a dever à guerra. Paz violenta, truculenta e travestida de luz. Como a luz que vi refletir sobre a asa do avião se preparando para pousar em Viracopos. Um imenso balão, desses proibidos, decorado com dezenas de lamparinas formando uma trêmula palavra "PAZ", passou ligeiro, próximo demais. Longe da guerra, quase fui vítima da paz.

(*) Mário Persona é consultor, escritor e palestrante, além de autor dos livros Crônicas de uma Internet de verão, Receitas de grandes negócios e Gestão de mudanças em tempos de oportunidades. Esta crônica faz parte dos temas apresentados em suas palestras. Edita o boletim eletrônico Crônicas de Negócios e mantém endereço próprio na Web, onde seus textos estão disponíveis.