Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0429c04.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 05/08/10 10:22:52
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - Matadouro - Biblioteca NM
Histórias do Matadouro Municipal (2-d)

 

Clique na imagem para voltar ao índice do livroEscrito apenas dois anos após a entrada em funcionamento do Matadouro Municipal de Santos, este raro livro reúne uma série de editoriais publicados pelo autor, o jornalista Alberto Sousa, no jornal santista A Tribuna, em outubro de 1917. A obra foi publicada em 1918, com impressão na Typographia Piratininga, da capital paulista.

O exemplar foi cedido a Novo Milênio para digitalização pela biblioteca pública que leva o nome desse jornalista, através da bibliotecária Bettina Maura Nogueira de Sá, em maio de 2010. A ortografia foi atualizada, nesta transcrição (páginas 22 a 28):

Leva para a página anterior

O Matadouro Modelo de Santos

Alberto Sousa

Leva para a página seguinte da série
IV - Ainda a questão do privilégio

Do nosso último artigo ficou plenamente provado que a acusação assacada à Municipalidade de estar cobrando taxas de matança de gado, sem uma lei anterior que as autorize, foi feita propositalmente de má fé, com o duplo intuito de iludir a alta Câmara julgadora e de levantar contra a Administração Local a opinião dos nossos conterrâneos.

Como os anexos a que se refere a Lei n. 585 não fossem publicados conjuntamente com ela, os recorrentes, por seu advogado suplementar, o poeta Duarte, afirmam que essa lei não existe, fingindo, em ocasião tão séria, ignorar que ela foi publicada 24 dias depois, no órgão oficial da Municipalidade, e dele se tiraram milhares de exemplares avulsos, de que ainda existe grande quantidade na secretaria da Câmara, à disposição dos contribuintes.

O Recurso, ou antes, o Memorial, de que estamos nos ocupando, foi enviado ao Senado Estadual a 14 de agosto de 1917, isto é, oito meses e 21 dias depois da publicação simultânea da Lei n. 585 e todos os seus anexos na A Tribuna; mas, apesar disso, em tal documento se afirma, com um topete que revolta os temperamentos mais fleumáticos - que essa lei e seus anexos não existem e que a Câmara desta cidade está cobrando taxas que não votou previamente!

Adversários desse naipe, opositores desse jaez, não têm direito algum a ser tratados com o respeito que espontaneamente nos merece todo e qualquer honrado cidadão que, movido sinceramente pelo sentimento de amor ao interesse público, rebela-se contra atos que reputa atentatórios da lei, embora nenhuma razão tenha para assim pensar e manifestar-se.

E é justamente porque o redator do Memorial, que estamos analisando severamente, não se acha ns condições respeitáveis do cidadão acima suposto, que tomamos e continuaremos a tomar a liberdade de tratá-lo com a sem-cerimônia a que suas façanhas fazem jus.

O Memorial enviado ao Senado Paulista - para reforço do Recurso original, de cujo texto e de cujo autor nos ocuparemos no devido tempo - versa, exclusivamente, sobre dois pontos capitais: a não existência de uma lei anterior autorizando a cobrança das taxas do Matadouro - inverdade que já pulverizamos, citando a data e o jornal em que foi publicado o ato que regulamenta a matéria; e a questão do privilégio.

Aquela não tem importância alguma, como já provamos documentalmente, e só mesmo a inépcia de advogados sem talento, sem preparo e sem escrúpulos seria capaz de bater às portas da mais alta corporação legislativa do Estado para incomodá-la com disparates tão ridículos e mentiras tão vergonhosas.

Mas a questão do privilégio merece, de nossa parte, maior e mais detida atenção que a que lhe consagramos no segundo artigo desta série, porque podem existir pessoas de boa fé que alimentem dúvidas a respeito, visto tratar-se de uma questão doutrinária sujeita a controvérsia; e parecer, a quem não possua suficientes luzes jurídicas, que o patrono dos recorrentes, através do seu estilo emaranhado e muitas vezes incompreensível, é quem peleja pelo direito, pela lei e pela verdade.

Diz ele que o parágrafo 24 do artigo 72 da Constituição Federal garante o livre exercício de qualquer profissão moral, intelectual e industrial, o que é certo; e que o contrato firmado entre a Câmara Municipal e o arrendatário do Matadouro, estabelecendo um monopólio legal, isto é, um privilégio em favor do dito arrendatário, burla a disposição constitucional, porque restringe a liberdade profissional que ela garante.

Ora, não é lícito a pessoa alguma, de juízo são, confundir lamentavelmente uma profissão industrial com um serviço público, e é justamente isso que o patrono suplementar dos recorrentes faz no seu Memorial. A Constituição garante o livre exercício de todas as profissões, mas o abatimento e beneficiamento de gado nos matadouros não é uma profissão: é simplesmente um serviço público. Administrado até há pouco pelo POder Municipal em Santos, este transferiu e delegou a outrem, mediante contrato legal e concessão de vantagens recíprocas, o encargo de administrá-lo por prazo indeterminado.

Onde, pois, a inconstitucionalidade dessa concessão? Há privilégios que os governos exploram diretamente, visando um objetivo duplo: proporcionar recursos ao Tesouro e dar ao público serviços com garantias materiais e morais que dificilmente particulares poderiam oferecer no mesmo grau. Os correios e os telégrafos são privilégios exclusivos do Poder Público. Este não admite, em hipótese alguma, que ninguém lhe faça concorrência. Mas, se amanhã, por circunstâncias irresistíveis, fosse o governo forçado a arrendar a particulares tais serviços, é claro que o privilégio que os cerca passaria para quem cobiçasse a concessão.

Há, porém, outros serviços oficiais igualmente privilegiados, que os Poderes Públicos em toda a parte costumam arrendar a indivíduos ou corporações. O abastecimento de água em S. Paulo, por exemplo, é um serviço de que tem privilégio exclusivo o governo estadual; a ninguém seria permitido, invocando o art. 72, parágrafo 24, da Constituição Federal, fazer concorrência ao Estado nesse particular, a pretexto de que é livre o exercício de todas as profissões honestas.

Imaginemos, todavia, que amanhã o sr. Cesário Bastos subia ao Poder, na qualidade suprema de presidente do Estado. O seu primeiro ato seria, sem dúvida, chamar para a pasta da Fazenda o prodigioso poeta Duarte - que é um financista de largos horizontes -, assim como o primeiro ato deste, por coerência para com o seu apostolado doutrinal na fase do ostracismo, seria arrendar a algum amigo do peito - ao sr. Raymundo de Vasconcellos, por exemplo -, sem privilégio algum, em respeito à Constituição Federal, o serviço de abastecimento de água na Capital de S. Paulo, por 30 anos.

O arrendatário, que é discípulo ortodoxo das teorias econômicas de Duarte, aceitaria jubilosamente a concessão. Ao fim de pouco tempo, os concorrentes que dispusessem de mananciais mais próximos, mais puros e mais abundantes e que pudessem fornecer a água por preços mais convenientes que os da tabela do sr. Raymundo - levariam este ingênuo capitalista à insolvabilidade e à falência. Os capitais empregados na execução de obras tendentes a desenvolver e melhorar o abastecimento d'água de uma população que cresce vertiginosamente, rolariam também vertiginosamente águas abaixo.

O arrendatário, aterrado, proporia sofregamente a rescisão do contrato, e só então é que o secretário da Fazenda do imaginário governo cesarista compreenderia finalmente a grandiosa asneira praticada. Tendo concedido um arrendamento sem privilégio, por amor às liberdades decretadas pela Constituição Federal; tendo permitido que empresas particulares livremente concorressem com o Estado no abastecimento d'água à população paulistana - não poderia reaver para o governo o privilégio de que espontânea e estupidamente abrira mão, por incapacidade para distinguir entre uma profissão industrial e um serviço público.

De posse de material inútil, de maquinismos caríssimos a oxidar-se por falta de uso regular, de cachoeiras e rios cujas águas lhe tinham devorado grandes capitais e ora corriam sem destino nos seus leitos, porque outros estavam abastecendo com maior sucesso os habitantes da Paulicéia - só então é que ele, atirando pela janela fora os volumes dos seus tratadistas geniais - empreenderia tardiamente a reeducação econômica de seu espírito, depauperado por debilidade congênita, agravada pela escassez e má qualidade dos alimentos de que se nutrira!

Pois é essa grave hipótese, de sua administração futura na Pasta da Fazenda, que o poeta Duarte quer converter em realidade atual no Município de Santos. Se as suas idéias vingassem, não só os contratantes, que estão empatando vultosos capitais na obra monumental do Matadouro Modelo e suas dependências, fatalmente se arruinariam, como a Câmara Municipal ver-se-ia, ao fim do contrato, despojada do privilégio de que ora goza e é inerente aos serviços públicos que administra diretamente ou por intermédio de terceiros.

Para concluir, por hoje: a Lei Orgânica permite às Municipalidades conceder privilégios para obras e serviços que dependam de grandes capitais. Ora, os privilégios são exceções ao direito comum, são vantagens especiais concedidas a uns, com exclusão de todos os outros. Desde que se estabelecem limites ou se opõem restrições a uma dada concessão, o privilégio correspondente deixa de existir.

O Poder que outorga um privilégio, que não adota medidas assecuratórias do gozo desse direito, e deixa, por negligência ou inépcia, que o concessionário sofra prejuízos resultantes de uma concorrência ilegítima - é necessariamente responsável pelos prejuízos que da sua imprevidência decorrerem.

O serviço público de abater e beneficiar o gado no Matadouro de Santos é privilégio do Governo Local, como o abastecimento de água, em S. Paulo, é privilégio do Governo Estadual. A Câmara, arrendando, mediante vantagens notórias, semelhante serviço, temporariamente, a uma empresa particular, transferiu-lhe os direitos inseparáveis do mesmo privilégio.

A matança de gado no Matadouro público é livre para todos os marchantes, respeitadas as leis fiscais e sanitárias: o que não é permitido, porque isto é o que constitui o privilégio do serviço que a Municipalidade administrava por sua conta e agora transferiu a outrem - é entregar ao consumo local produtos não abatidos no referido Matadouro.

Nada mais, no contrato que examinamos, é objeto de privilégio algum: pode entrar no Município qualquer quantidade de gado em pé, pode passar em trânsito para a exportação qualquer quantidade de carne beneficiada; o que não pode - o que nunca foi permitido - é entregar ao consumo da cidade rezes que não tenham sido abatidas no Matadouro Municipal.

A Lei Orgânica dos Municípios - repetimo-lo - confere às Municipalidades o direito expresso de conceder privilégios para a execução de serviços que demandem o emprego de grandes capitais, e, como já vimos, toda a restrição contradiz e burla o privilégio outorgado.

Privilégio concedido a um, com o direito de outros explorarem simultaneamente o mesmo negócio, a mesma indústria ou o mesmo serviço - é uma calinada jurídica que não devemos atribuir ao pensamento ponderado dos legisladores paulistas. Assim, pois, se o livre exercício profissional, que a Constituição garante, pode ser limitado por leis ordinárias, é claro que, no caso santista, o direito decorrente do privilégio concedido ao arrendatário do Matadouro, restringe aquela garantia.

O sr. Aristides Milton, nos seus eruditos comentários à Constituição Federal, entende que "todos podem exercer todas as profissões, contanto que não prejudiquem direitos alheios". Ora, não se pode contestar que a nossa Municipalidade concedeu aos contratantes do  Matadouro um privilégio, cujos direitos seriam prejudicados pelo regime da livre concorrência que se pretende obter do Senado Estadual.

E nem se diga que as Câmaras Municipais não podem legislar regulando ou limitando aa liberdade profissional, que é um direito garantido pela Constituição da República. Todas as Câmaras Municipais do Brasil restringem, limitam, regulam o exercício desse direito, obrigando as casas comerciais e as indústrias a não funcionarem aos domingos e dias feriados. Muitas delas restringem o livre exercício do serviço doméstico, impondo aos respectivos profissionais um certo conjunto de condições prévias que importam na limitação de semelhante liberdade. O Poder Judiciário tem reconhecido às municipalidades a faculdade de legislar em tais casos.

Note-se que estamos argumentando como se a matança de gado no Matadouro local fosse uma profissão industrial e não um serviço público - doutrina que não aceitamos.

Imagem: trecho do livro O Matadouro Modelo de Santos, de Alberto Sousa (página 23)