Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0380c29.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/28/07 20:05:19
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [29]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[29] Ainda a Casa da Câmara de São Paulo

Respondendo a algumas explicações do senhor Afonso D'E. Taunay - E esperando por um alpendre e um balcão que não podem ser empalmados

ão era minha intenção voltar sem uma solução a este assunto, pois preferia deixá-lo ao cuidado dos doutos na matéria. Volto, contudo, por duas razões irrecusáveis: uma, porque é sempre agradável estar-se em contato, mesmo através da imprensa, com o formoso espírito de Afonso d'E. Taunay. E a outra, porque me vejo forçado a opor algumas objeções a certos trechos da gentilíssima carta com que me honrou, há dias, o grande historiador [1], e na qual algumas afirmações minhas mereceram do mestre longa e minuciosa contradita, oriunda, talvez, da maneira pouco pormenorizada por que me referi às igrejas das missões jesuíticas de Guairá e Vila Rica.

Eu escrevera: "se esse esboço não pretende figurar uma igreja, hipótese aceitável, dada a sua semelhança com as figuras das reduções jesuíticas de Vila Rica e Guairá...". Eu devera, para ser mais preciso, ter falado em "igrejas das reduções" e não como fiz, em "figuras das reduções". Mas, se assim escrevi, foi apenas por uma questão de estilo, evitando grafar duas vezes, no mesmo período, a palavra "igreja".

E Taunay exclama, então: "Há aí profundo equívoco. Nem Vila Rica nem Guairá (Ciudad Real de Guayrá) jamais foram reduções jesuíticas". Logo... concluiu o eminente historiador: há profundo equívoco.

Pois, não há equívoco nenhum. Eu me referi, como se observa logo, às reduções jesuíticas que existiam em Vila Rica e Guairá. Que ambas tinham sido fundadas por um espanhol, já o sabíamos de há muito, tanto que eu mesmo já havia anotado uma pequena confusão do velho e autorizado Azevedo Marques, nos seus preciosos "Apontamentos", quando atribui aos jesuítas a fundação de Guairá.

Isso, todavia, não quer dizer, de modo algum, que não possamos fazer referências às reduções de Vila Rica e Guairá. O padre Vasques Trujillo, no inquérito que abriu para apurar a responsabilidade de nosso caro dom Luís de Céspedes, no tráfico do íncola realizado pelos mamelucos de São Paulo, ouviu, entre outros, o nosso feroz inimigo padre Justo Mansilla e o superior das reduções do Guairá, padre Antônio Ruiz.

Aquele declarou, inicialmente, haverem "en el Guayrá, doce reduciones, de las cuales diez caían en el distrito de Villa Rica". E o segundo afirmou "que se havia hallado presente en la fundación de las doce reduciones que havia en el Guayrá y Villa Rica". Não há, mesmo, historiador que, tratando do bandeirismo ou do jesuitismo, não se tenha referido às reduções jesuíticas de Guairá e Vila Rica, inclusive o próprio Taunay, na sua monumental História das Bandeiras Paulistas.

E se, falando nelas, destaquei de preferência as igrejas, e não as municipalidades, foi pela razão muito simples de que as igrejas eram sempre, nestas terras bárbaras, os edifícios de melhor aspecto, mesmo quando essse aspecto era lamentável. E é natural que assim fosse, principalmente em Guairá e Vila Rica, que não passavam de lugarejos misérrimos sob o guante dos "encomenderos".

Os índios que se achavam sob o domínio dos jesuítas tinham duas espécies de trabalho: o coletivo e o particular, sendo que, durante o primeiro, trabalhavam em conjunto na organização das reduções ou na construção de igrejas e colégios. Com o "encomendero" não havia disso: os seus índios trabalhavam exclusivamente para o seu dono, em sua lavoura. Quem, pois, num regime desses, iria construir casas para as Câmaras? Se São Paulo, que era São Paulo, viveu alguns séculos sem Paço municipal, fazendo vereação em casas de empréstimo, que dizer de dois lugarejos perdidos no sertão, com pretensos "probleros" explorando furiosamente o íncola em seu exclusivo interesse?

Como se vê, as minhas suposições eram perfeitamente lógicas. Todavia, assinala Taunay que, enquanto Ciudad Real e Vila Rica são representadas no roteiro de Céspedes por uma casa com sótão, mastro e bandeirola, Loreto e Santo Inácio são representadas por casinholas sem sótão, mastro e bandeirola. De acordo. E daí surgiu a minha suposição de que se tratasse de representações simbólicas. Dos cinco povoados em questão, São Paulo era, evidentemente, o mais importante. Em segundo lugar vinham Ciudad Real e Vila Rica. E a seguir Loreto, Santo Inácio-Mini, Candelária, Xerez, etc., todos eles simples aldeamentos de índios, sob a doutrinação jesuítica.

Daí, os desenhos de Céspedes dando à grande vila de São Paulo a representação de uma casa com três corpos, bandeira e mastro, mas sem a cruz no alto - uma vila pagã onde os jesuítas não conseguiam dominar - Ciudad Real e Vila Rica, casas de um só corpo, no mesmo estilo da de São Paulo e com uma cruz no sótão... E as casinhas das "doctrinas", apenas com o cruzeiro, simples e misérrimas "chózas", no dizer de Montoya em "Conquista Espiritual".


Detalhe da planta da cidade de Campeche, mandada realizar pelo governador Esquivel
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Isso, pois, entendo que, em rigor, não é possível dar-se a Vila Rica [2] e Ciudad Real, ao tempo, o nome um tanto pomposo de "municipalidades", como escreve Taunay, no sentido amplo que esta palavra comporta. Elas só progrediram depois que os jesuítas ali chegaram, no fim do século XVI, quando esses dois lugares não passavam de simples "pueblos", ou talvez nem isso. O erudito e autorizado historiador paraguaio, padre Bernardo Capdeveille, no seu notável livro "Las misiones jesuiticas en el Paraguay" (Asunción, 1923), afirma que, à chegada dos loiolanos, "Ciudad Real tenia apenas cincuenta vecinos y Villarrica ciento cincuenta". Esses "pueblos" só se tornaram importantes após a chegada dos inacianos, como ainda assinala o autorizado historiador.

Daí, a minha presunção de que as igrejas de Guairá fossem os seus prédios mais característicos, pois é bem possível que, a exemplo de São Paulo, que já era uma grande vila, Guairá e Vila Rica nem casa da Câmara possuíssem e andassem fazendo vereação nas "pousadas" de qualquer Dom Gaspar, como se fazia por aqui...

Taunay, porém, insiste no mastro com bandeirola para afirmar que se tratava de Paços municipais. É que o eminente historiador não atentou bem para os desenhos do roteiro de Céspedes. Se o fizer verá que, na ponta dos mastros, há uma cruz! Se, como afirma Taunay, "os guairenhos se mostraram sempre centros de fortíssima oposição aos inacinos", como admitir-se que fossem colocar uma cruz sobre o sótão de sua Câmara municipal?

A bandeira é que, para Taunay, afasta a suposição de que aqueles prédios sejam igrejas [3], apesar da cruz. Mas os jesuítas não tinham também a sua bandeira? Ou melhor, a sua flâmula? Tinham. Clóvis Ribeiro, no seu precioso livro "Brasões e Bandeiras do Brasil", escreve:

"A Companhia de Jesús, usava uma flammula e uma bandeira com a effigie de Nossa Senhora..." (pág. 36).

E é exatamente uma flâmula que drapeja no mastro do famoso desenho de Céspedes.

Adiante, porém, o grande mestre, insistindo em não aceitar as figurinhas como igrejas, escreve:

"Não é crível que semelhantes casinhas tenham sido igrejas. O seu fácies nada tem que lembre templos".

Ainda uma vez peço licença para discordar do eminente mestre e amigo. Passo a palavra, pois, ao historiador argentino Torre Revello que, num interessante artigo em La Prensa de Buenos Aires (1º de janeiro de 1937) responde por mim:

"Según el obispo Guerra, que yá habia visitado otras ciudades de su distrito (1586) en toda su diocéis nó encontró ni un solo edificio que tuviera aparencia de iglesia, sino que daban, los mismos, la sensación de una casa pajiza, tristissima incluyendo en esta apreciación, a la propria catedral de Asunción".

Como se vê, embora muito antes da época de que nos ocupamos, eram assim as igrejas, "sem nada que lembrassem templos". Os grandes templos vieram posteriormente. E as maravilhosas igrejas que surpreenderam Céspedes, estavam mais para o sul, onde ainda hoje se encontram vestígios de suas ruínas ou restos dos seus escombros. Pois não nos conta Ramón J. Cardoso que a primeira coisa que Melgarejo vez em Vila Rica, foi construir uma igreja? E que espécie de igreja podia ter construído o Capitão?

Quanto ao misterioso paço da vila de São Paulo, tive a ventura de uma confirmação de Taunay. Foi quando escrevi que a Câmara de 1616 comprara uma casa de Francisco Roiz Velho, para nela realizar as suas sessões, tendo sido essa a casa que Céspedes conheceu. Estabelecido, assim, que a Câmara funcionava num prédio de residência particular, Afonso d'E. Taunay insiste em negar a existência visível do alpendre e do balcão que, indiscutivelmente, existiam no prédio. E, com a erudição que tão singularmente o caracteriza e que todos nós admiramos, teima o mestre em agarrar no balcão e no alpendre, transportando-os para os fundos do prédio, com argumentos que brilham mas que, infelizmente, não me convencem [4].

Já me referi, no artigo anterior, à desolante pobreza da iconografia paulista do seiscentismo. O próprio roteiro cespedeano, raríssimo dessa época, é isso que se vê: causa de controvérsias insanáveis. Razão por que os estudiosos do assunto, para dirimirem dúvidas, não têm outro remédio senão apelar para elementos iconográficos de outras regiões do Brasil e da América espanhola.

Ora, quem quer que observe as gravuras de Barleus, principalmente o mapa de Pernambuco e Itamaracá, encontrará ali não poucas casas com alpendre e balcão na frente. Essas duas peças arquitetônicas foram, mesmo, insistentes nas residências seiscentistas. Tanto assim, que Franz Post, o primeiro pintor que passou para a tela aspectos e paisagens do Brasil, produziu uma considerável coleção de quadros, muitos dos quais se encontram em poder de colecionadores brasileiros, e outros em galerias da Europa, como os museus de Nürnberg, de Schwerin, de Amsterdam, de Mogúncia etc. E, na maioria desses quadros, encontram-se casas do nordeste brasileiro, no século XVII, com alpendre e balcão, na fachada.

Numa velha gravura de A. Demersay - plano para a construção da missão jesuítica de Candelária que seria a capital das missões, bela fantasia que não se fez realidade - encontram-se 52 casas residenciais todas com alpendre na frente e não nos fundos.

Insisto neste ponto porque, como ficou provado, a Câmara de São Paulo funcionava numa casa de residência particular que, talvez, nem sino possuía, porque este andou perdido durante muito tempo. Mesmo, porém, que possuísse sino, não é admissível que fossem pendurá-lo dentro de um sótão, tanto que Taunay preferiu transformar esse sótão numa espécie de torreão, no quadro que se acha no museu do Ipiranga.

Quanto à última objeção de Taunay: os cruzeiros diante dos edifícios públicos e igrejas sem aspecto de igrejas.

Já respondi, em parte, a esses argumentos e, se insisto, é para ilustrar as minhas asserções com a reprodução do "Plano da cidade de Campeche" (México), mandado fazer pelo governador Esquivel, em 1664, pouco depois de uma invasão de piratas e "bucaneros". Ali estão igrejas quase semelhantes aos esboços de Céspedes (que Taunay não achou com aspecto de templos) e os cruzeiros diante dessas casas de religião.

As igrejas de N. Senhora de Guadalupe, de São Romão, de El Jesus e a Matriz, assim como a igreja-hospital de S. Joan de Dios e o convento de São Francisco em pé de guerra - casas térreas, com dois lances, porta no centro, sótão ou torreão com uma cruz e, na frente, o cruzeiro. Para ser o desenho de Céspedes, só lhe falta a bandeirola.

Entretanto, diante dos edifícios da "Comisaria" e da "Audiencia" (tribunal), que também estão situados em praças, não se nota a presença do símbolo da Fé. Por que motivo, pois, diante da Câmara de São Paulo se levantaria um cruzeiro? Afirma Taunay que isso se deu porque Céspedes era um homem de fé, que, a cada passo, recorda em seus papíes a sua profunda devoção a Nossa Senhora do Atocha.

Vê-se que o ilustre historiador se esforça por esquecer um pormenor: a profunda hipocrisia do homem de quem os jesuítas, jurando in verbo sacerdotis, disseram os maiores horrores...

Concluindo: é com infinito desconsolo que fico onde estava, neste atordoante caso da Câmara de São Paulo do remoto e obscuro ano de 1628. A argumentação elegante, erudita e fascinadora de Afonso d'E. Taunay não conseguiu, ao meu ver, vencer a pobreza documental da iconografia paulista. Nem a minha - pobre de mim! - conseguiu fazer a menor luz nessa treva densa. Treva de três séculos, de nada valeu o farol da erudição do mestre nem, muito menos, a humilde caixinha de fósforos da minha semiciência. Apenas, continuo onde estava: a casa do roteiro de Céspedes não pode ser a Câmara seiscentista de São Paulo.

Mas... escrever-se tanto para terminar negando, será acaso uma solução? [5]


TORRE DE LA TRINIDAD (Misiones) - Tipo característico da igreja rústica seiscentista na América do Sul - Alpendre fronteiro e corredores em torno
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] As duas cartas de Afonso d'E. Taunay, sobre este "caso", foram publicadas pela Folha da Manhã em 24 de abril de 1938 e 8 de maio do mesmo ano.

[2] Quando Melgarejo fundou Vila Rica, "hizo edificar una iglesia y levantar al lado una cruz; luego mandó construir alli una fortaleza..." (Ramón J. Cardoso, El Guairá, pág. 50).

[3] "... llegado el dicho Capitan à Guairá la primera cosa que mando hacer y se hizo fue una yglesia". (Ramón I. Cardoso, El Guairá, pág. 53).

[4] Quem ler os volumes de "Inventários e Testamentos" verá que os alpendres dos fundos e os laterais não tinham esse nome. Chamavam-se "corredores".

[5] A propósito desse caso recebeu o autor, do eminente historiador Basílio de Magalhães, uma carta em que há o seguinte trecho:

"Dois dos seus argumentos parecem-me insofismáveis. Primeiro, é o de que o elemento característico de uma casa de Câmara Municipal nunca foi o cruzeiro e sim o pelourinho. Segundo, é o de que, se o prédio em questão fosse o da edilidade paulistana, Céspedes não poderia ter deixado de representá-lo com o alpendre e o balcão que, indubitavelmente, lhe avultavam na fachada. Subscrevo, portanto, suas razões, que reputo claras, eruditas e indiscutíveis".


[...]Leva para a página seguinte da série