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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [22]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[22] Judeus e cristãos novos

Judeus na descoberta e na colonização do Brasil - São Paulo e o judeu - Perseguição no Brasil e êxodo para o Peru - A Inquisição no Brasil e a sua desastrada estréia em São Paulo - O caso de Raposo Tavares - Índios com nomes judaicos

ão cabe num trabalho do gênero deste - simples reportagem retrospectiva sobre a vila de São Paulo - um estudo, mesmo sintético, sobre o judaísmo na povoação do planalto - nem trabalho de tal magnitude poderia exigir-se de um jornalista em audaciosa excursão por domínios alheios.

Antes, porém, de entrarmos nesta nova reportagem, digamos, a título de ligeiro preâmbulo, que já não sofre discussões, e está acima de qualquer dúvida, que o contingente hebraico, provindo das perseguições religiosas desencadeadas na Europa, entrou em larga escala na formação étnica do Brasil.

A começar por Abrão Zacuto, cosmógrafo judeu expulso da Espanha e acolhido em Portugal na corte de d. Manuel, e por seu discípulo, mestre José Vizinho, que continuou seus estudos e deu ao arrojo náutico da Lusitânia uma quase infalibilidade científica, não teriam sido poucos os judeus que exerceram uma extraordinária influência, não só na colonização, mas até mesmo no descobrimento do Brasil.

O certo, contudo, é que, descobertas as novas terras, Fernando de Noronha, agindo por conta de um consórcio de judeus, conseguiu que o rei de Portugal lhe arrendasse a Terra de Santa Cruz, mediante um contrato de cinco anos. Data daí, então, o considerável afluxo de hebreus ao Brasil, para onde acorriam em grandes levas fugindo às perseguições e aos pogrons desencadeados na Europa, principalmente após a ascensão de d. João III ao trono de Portugal, rei que estabeleceu na Lusitânia o impiedoso tribunal da Inquisição [1].

Senhores do monopólio da exploração comercial do pau-brasil, aparentemente livres das perseguições religiosas e dos autos de fé, tudo os impelia para o novo mundo. E, em verdade, para a nova Canaã se precipitaram legiões hebraicas fixando-se em vários pontos, principalmente no Nordeste, em cuja lavoura de cana e indústria açucareira exerceram influência considerável, apesar das "visitações" do Santo Ofício contra os que, na colônia, se entregavam à prática do mosaísmo.

"Para o Brasil - escreve João Paulo Freire em Os Judeus - o êxodo foi enorme, na suposição de que lá se encontravam ao abrigo da Inquisição. Mas a Inquisição foi-lhes no encalço e contra os conhecidos privilégios que pelos seus donatários lhes haviam sido assegurados, muitos de lá vieram presos para Portugal e aqui foram torturados e queimados. No entanto, em 1642, mais de 600 famílias demandaram o Brasil, chefiadas pelos rabinos Moisés Rafael de Aguilar e Isaac ben Matias Aboab da Fonseca, ambos de notabilíssima reputação. De lá veio a mãe do dramaturgo Antônio José da Silva, a cuja sorte já nos referimos".

Em tais circunstâncias, e vivendo a vila de São Paulo quase independente da colônia e do reino, o que afastava o perigo das "visitações" do Santo Ofício, seria de presumir que o elemento judaico tivesse, na longínqua vila do planalto, um relevo excepcional.

Isso, contudo, não parece provável. Se os judeus não existiam aqui em número mais baixo que noutras regiões do Brasil, é perfeitamente lícito afirmar-se que esse número não foi mais elevado. A sua presença, contudo, é indiscutível à luz de um vultoso acervo documental, desde os primeiros anos do seiscentismo, uns ainda aferrados às velhas práticas mosaicas, outros já de pazes com o catolicismo: os homens da nação hebréia e os cristãos novos de que nos falam, nas atas, os complicados escrivães seiscentistas.

Presume-se que, como não podia deixar de ser, os cristãos novos existiam em muito maior número que os circuncisos não conversos, pois, como no início do século afirmava o Inquisidor do Peru, os judeus faziam questão de abandonar seus trajes característicos, e "no se puede ya probar porque biven los tales con particular cuydado de no ser conocidos". E, em verdade, chegados a um meio que não os hostilizava, procuravam adaptar-se, integrando-se na comunidade hospitaleira - o que lhes era impossível em qualquer outra parte, onde, quando não usavam seu típico turbante ou sua gorra, os forçavam ao uso de um espaventoso chapéu amarelo, ou os encerravam violentamente em ghettos, judiarias ou judengasse...

Esse espírito de adaptação dos cristãos novos fez com que, em todo o mundo, milhões de judeus, pelo cadinho da miscigenação, se dissolvessem noutras raças, embora no fundo, consciente ou inconscientemente, tenham conservado todas as características psicológicas dos filhos de Israel, quando não aparece alguém para descobrir, em tais e tais indivíduos, um beiço comprometedor ou um suspeitíssimo nariz...

Em São Paulo, como no Reino, estão os judeus, durante algum tempo, sujeitos ao pagamento de um imposto. Homens ricos, procuram os governos, em toda a parte, associar-se a suas fortunas, lançando derrames extorsivos ou, simplesmente, arrebatando-lhas à força. Ainda em 6 de julho de 1613, reunida a câmara paulistana, requer o procurador que "semandasë vir a esta camara a fimta que se fez dos cristãos novos e homës da nasão hebréa pa. que a todo tempo conste a verdade".

A finta lançada sobre os judeus de Piratininga dá causa a um episódio curioso e singular.

O ouvidor Francisco Sotil de Siqueira, numa de suas provisões em 1614, exige que o fintador oficial arrecade, dos judeus da vila, a espantosa importância de duzentos mil réis. Parece que semelhante façanha não é das mais fáceis, tanto que aquele desesperado funcionário, estando em casas do provedor Diogo de Quadros, afirma em altas vozes "que avia de fimtar este povo em a fimta aos xpãos novos".

O procurador Francisco Jorge, que também se encontra em casa de Diogo, protesta energicamente contra essa declaração perigosa e ameaçadora, ao que o fintador Jorge Neto retruca que, tendo que arrecadar duzentos mil réis, lançará o tributo sobre todos os que lhe der na cabeça, "quer fosen xpãos velhos quer não"... E, sem saber o que fazer, o procurador vai queixar-se à Câmara, que, lavrando a sua ata "para por ela tirarem testemunhas do asima declarado", encerra a sessão, sem que possamos, hoje, saber o que se seguiu [2].

Sabe-se, entretanto, que o recolhimento do rico dinheirinho judeu às arcas da Câmara prossegue através dos anos. Em 1624, por exemplo, a Câmara faz vir à sua presença o fintador Gaspar Gomes, para que este declare quais os judeus da vila que pagaram seu tributo, exibindo ao mesmo o livro em que tais lançamentos se contêm. Gaspar Gomes confessa, porém, que essa diligência já fora realizada dois anos antes e que, estando o livro em poder do escrivão da ouvidoria, João da Fonseca, não tem uma lembrança exata dos judeus em dia com o fisco. Lembra-se apenas que pagaram a finta Rodrigues Fernandes, Tomás Freire e Francisco Vaz Coelho. Desses três confessa Gomes, placidamente, que se lhe tiraram o seu dinheiro...

Se Gomes, em tão solene conjuntura, se lembra apenas de três nomes, presume-se que não seriam muitos os judeus fintados - o que demonstra que eles, habilmente, vão se integrando no meio e dissolvendo-se na sub-raça em formação nas terras do novo mundo - ou porque desejam esquecer as próprias origens e viver tranqüilamente numa comunhão que não os lança ao "fogo purificador" ou então, apenas, porque desejam subtrair-se ao pagamento do tributo.

Seja como for, o certo é que, nesse início do século, podem eles viver em paz, apesar de lhes vedarem o acesso aos cargos públicos, pois as rígidas leis do Reino não admitem "pessôa alguma que tenhão rasa de mouro nem judeo" [3].

Isso não quer dizer que não tenha havido perseguições no Brasil. O que se pretende dizer é que, em São Paulo, elas foram quase nulas, ao contrário do que ocorreu na Bahia e em Pernambuco, onde as "visitações" se fizeram sentir com certa freqüência, dando causa a pequenas dispersões, oriundas principalmente do seqüestro de inúmeras fazendas judaicas.

O que não deixa dúvida é que não foram poucos os judeus que, fugindo do Brasil, procuraram o vice-reino do Prata ou o vice-reino do Peru. É o que se infere da carta que os Inquisidores do Peru, em 1620, escreveram ao Conselho da Inquisição, a propósito de um informe do comissário do Santo Ofício em Buenos Aires.

Nessa carta referem-se os Inquisidores a "muchas personas sospechosas de dibersas naciones" que, pelo porto de Buenos Aires entram no "reyno del Pirú, en particular de la nacion portuguesa christianos nuevos", acrescentando ter recebido aviso de que um Inquisidor ou Visitador "que avia venido com o titulo del señor Inquisidor General de Portugal a las costas del Brasil y Angola que son de la corona de portugal y que ua prendiendo muchos portugueses y secrestandoles gran cantidade de hacienda y que se benian huyendo muchos asi del brasil como de Portugal y venian a aquel puerto y se entraban en el Pirú"... [4].

Esse êxodo parece ter durado não pouco tempo, pois os Inquisidores do Peru insistem no sentido de se tomarem medidas urgentes e severas contra os fugitivos, não só para se evitar a entrada nos vice-reinos hispano-americanos, mas principalmente a saída de terras do Brasil. E essas medidas devem ser severas por vários motivos, entre os quais está a astúcia dos cristãos novos que, ao contrário dos de sua raça, "no tienen ocasion de declararse ni juntarse". E, desoladamente, os Inquisidores escrevem: "Por esto no se descubren aunque si sospecha que judaican".

Vê-se claramente que as perseguições da Inquisição no Brasil são, ao tempo, mais intensas do que se supõe. Na vila de São Paulo, contudo, tais acontecimentos não repercutem e o seu isolamento no planalto parece amortecer a vibração das paixões desencadeadas alhures e imunizá-la contra perigos dessa ordem. Tanto que, a única vez que se tem notícia de uma ação do Santo Ofício em São Paulo, não é contra nenhum judeu, mas contra um flamengo: Cornélio de Arzão.

À meia noite de 28 de abril de 1628, um grupo de homens bate à porta da casa de um grande sítio em Pirituba, enquanto um deles, com voz clara, brada:

- Abram, em nome da Santa Inquisição!

Uma mulher, pouco depois, escancara as portas, sem surpresa nem susto, pois já espera a incômoda visita. É ela dona Elvira Rodrigues, e sabe que esses homens sinistros a procurariam, pois seu marido, Cornélio de Arzão, acha-se preso em Lisboa, por ordem do Santo Ofício.

Cornélio de Arzão, flamengo que viera a São Paulo como perito em mineração, contratado por d. Francisco de Sousa, é homem de muita consideração na vila, onde se casa com a filha de um grande sertanista espanhol, mas, por motivos que se ignoram, cai no desagrado da Inquisição, que o prende na aldeia de Setúbal e o remete para Lisboa, após excomungá-lo. Cornélio não é judeu. Além disso é católico, e tão bom católico que trabalha na conclusão da igreja matriz, alguns anos antes, e ficam a dever-lhe não pouco dinheiro dessa empreitada.

O certo é que, por esta ou aquela razão, Miguel Ribeiro, meirinho do Santo Ofício, e o juiz Francisco de Paiva exigem que dona Elvira lhes entregue todas as chaves da casa e declare todos os bens que ali dentro se acham, após fazerem-na jurar com a mão sobre a cruz que o meirinho traz ao peito. Entregues as chaves, declara a interpelada que o que há é pouco: uma frasqueira com sete frascos, duas tamboladeiras de prata, três colheres de prata e que nada mais existe além de alguns escravos. E acrescenta que, numa casa ao lado, se encontra uma caixa com mais objetos. Vai-se à outra casa, tendo-se o cuidado, entretanto, de deixar guardas na primeira. Mas, como se faz tarde, vão todos dormir por ali mesmo.

No dia seguinte, pela manhã, inicia-se o inventário dos bens - ferramentas de lavoura, pratos, louças, tenda de marceneiro, tecidos, roupas, jóias, objetos de toda espécie além de dois negros da Guiné.

Mas não para aí a fúria confiscadora do Santo Ofício. No dia 2 de abril, o mesmo juiz, seguido pelo mesmo funcionário da Inquisição, vai ao sítio de engenho de ferro, e seqüestra o que lá se encontra - casa de três lanços com um lanço assobradado, no alto de um outeiro, roça de milho, serras, um catre, um bufete e um moinho de moer trigo moente e corrente.

Não é tudo, porém. No dia 3, é seqüestrado um lanço de casas que está junto das casas de Domingos de Góis no arrabalde da vila, além de uma caixa contendo tigelas, pregos de cadeira, uma cadeira, um espelho e um tostão de prata. E, pouco depois, mais umas casas que estão defronte das casas do reverendo padre vigário, e mais as casas que estão defronte das casas de Manuel João Branco. Quanto ao engenho de ferro, do qual a metade pertence a Cornélio de Arzão, não se avaliou por não haver pessoa que o entenda.

As pessoas que devem a Cornélio também não escapam, pois, sob ameaça de excomunhão, são forçadas a pagar, não ao legítimo credor, mas às autoridades incumbidas do confisco. Como, porém, os oficiais da Câmara em 1610 ficaram devendo ao flamengo espoliado a quantia de quarenta mil réis, pelas obras que ele realizara na matriz, são intimados a entrar cada qual com sua parte, inclusive o fintador da época, Matias de Oliveira, que o faz sob protesto.

No dia 9 de abril de 1628, na praça pública da vila, por ordem do inquisidor Luís Pires da Veiga, o meirinho do Santo Ofício, na presença do juiz Francisco de Paiva e do escrivão Simão Borges Cerqueira, e do tabelião do público e judicial Fernão Rodrigues de Córdova, vende em hasta pública todos os bens nóveis e imóveis arrecadados.

O desfecho de tão ruidoso processo seria, talvez, até agora ignorado, se o ilustre historiador e pacientíssimo investigador Félix Guisard Filho não houvesse encontrado nos arquivos da Torre do Tombo (seção Inquisição) (N.E.: situada em Lisboa, Portugal), fornecendo gentilmente a Alcântara Machado [5] uma cópia, o seguinte documento que encerra o surpreendente episódio:

"Acordam os inquisidores e deputados da Santa Inquisição... que vistos estes autos e qualidade das culpas de Cornelio Arzings... flamengo, neles contheudo e asyla (?) diligencia no caso feita, cõ o mais que pelos dictos se mostrar, mandão que o dicto Cornelio seja solto e se va em pas e do proprio carcer onde está se hirá a embarcar para sua terra, e não entrará na villa de Setubal, onde foi preso... e o amoestão que faça todo los auctos de bom catholico christão, e se confesse as 3 paschoas do ano, e nellas receba o Santissimo Sacramento de conselho de seu cura e que seja muito atentado em suas falas nos casos semelhantes, sob pena de ser gravemente castigado".

O grande crime do flamengo resumia-se, pois, como se vê, em quase nada. Solto, volta Cornélio a São Paulo, onde falece em 1638, deixando não poucos bens, inclusive um sítio em M'Boi, com sua casa de três lanços, plantação de trigo e mais 80 escravos, além de uma casa na rua Direita, em Santos. Deixa, ainda, a viúva Elvira Rodrigues e seis filhos, dois dos quais serão grandes bandeirantes, Brás de Arzão e Manuel de Arzão.

A estréia da Inquisição em São Paulo fez-se, pois, como se acaba de ver, com o que poderia chamar-se de "erro judiciário", "affaire Dreyfus" antecipado ou, simplesmente, uma "gaffe", pois não é possível saber-se até que ponto seriam verídicas as falas atribuídas ao flamengo. Tanto que os padres Tomás Coutinho, Lourenço do Espírito Santo, Manuel Nunes e frei Álvaro de Carvajal, que acompanharam o corpo de Cornélio e rezaram 23 missas, se declaram pagos e satisfeitos, afirmando que o fizeram pela alma de Cornélio de Arzão que Deus tenha em sua glória...

Quanto ao judeu no bandeirismo, não creio que a sua influência fosse tanta como desejam fazer crer os terríveis jesuítas do Paraguai. Os testamentos seiscentistas aí estão para provar a profunda fé católica de inúmeros chefes de bandeiras e é preciso levar-se em conta, ainda, que é muito do hábito jesuítico chamar judeus aos que lhes não seguem os passos.

Se é verdade o que afirma o padre Francisco Crêspo no memorial que envia ao rei da Espanha em 1631, isto é, que São Paulo "es poblado de muchos christianos nuevos", parece não passar de ardilosa fantasia a história contada pelo provincial da Companhia de Jesus. Vasques Trujilo, sobre a resposta que Antônio Raposo Tavares, após destruir as reduções guairenhas, teria dado a um dos padres que lhes indagava a razão de tanta fúria iconoclasta: que o faziam "por el titulo que Dios le daba en los libros de moysen"...

Sente-se claramente que o provincial inaciano, contando essa história terrível, pretende apenas impressionar o rei católico, acendendo-lhe a fúria contra os paulistas e conseguindo, assim, armas de fogo para as suas reduções. E isso não seria um caso isolado porque, em 1649, o padre Juan Pastor, querendo conservar as setecentas e tantas bocas de fogo nas reduções jesuíticas, contou coisas assustadoras a sua Majestade, a respeito das invasões paulistas.

E, levado a efeito um inquérito para apuração do que havia realmente, constatou-se, por unanimidade de todos os testemunhos, que os paulistas nunca haviam aparecido por aquelas regiões (províncias de Paraná e Uruguai) e que os socorros enviados pelos espanhóis, cada vez que os padres se diziam atacados, não encontraram outra coisa senão os próprios padres que "los abiam engañado" [6].

Hoje, parece estar solidamente provado que Antônio Raposo Tavares não era judeu. E, aos elementos, em que essa prova se baseia, desejo acrescentar um - pequenino, mas possivelmente útil.

Segundo Paulo Prado [7], "um documento do governador do Rio da Prata, de 1639, queixando-se das invasões dos aventureiros paulistas, afirma que a maior parte destes, por serem delinqüentes facínoras, desterrados de Portugal por sus delitos, son christianos nuevos, y se sabe que á los indios que se les reparten, los ponen nombres del Testamiento Viejo" [8].

E, em verdade, quem quer que percorra os inventários seiscentistas, encontra, entre o gentio da terra e peças de serviço, muitos índios com nomes recolhidos do Velho Testamento, mas em número infinitamente menor que os que trazem nomes cristãos.

Como exemplo, poderia citar-se Fernão de Camargo que, entre 21 escravos, tem apenas um Adão; Pedro Vaz de Barros, para 48 peças de serviço com nomes cristãos, tem apenas um Mateus; Margarida Rodrigues, que possui em sua fazenda 45 índios, conta entre eles apenas uma com nome suspeito: Sara; Gaspar Moreira é que possui um sítio meio parecido com a terra da Escritura, pois, entre seus 40 escravos, se acham Adão e Eva, Jeremias, Davi (sem harpa) e Noé, certamente sem arca... E, assim, pelos inventários entre as cópias de índios de serviço, surgem Evas, Adões, Jeremias, Baltasares, Davis, Rebecas, Elias, Saras...

Pois bem. Quando falece, nas ilhas do Cabo Verde, Fernão Raposo Tavares, filho do destruidor do Guairá, deixa em São Paulo, com seu famoso pai, sete índios. E, ao contrário do que acontece alhures, todos esses escravos têm nomes cristãos - o que não seria lógico num judeu que, em altas vozes, apregoa o seu judaísmo...

Quanto ao fato de, na Câmara, ser hábito prestar-se juramento sobre um livro dos santos Evangelhos - o que poderá servir de ótimo filão para os escritores judaizantes, não é ocioso lembrar que esse juramento, às vezes, é prestado sobre um livro de Horas, sabidamente cristão, ou sobre a cruz da vara...

Todavia, o que não se deve deixar sem registro é que o único instrumento de opressão contra o judeu em Piratininga, a finta "para a frota", parece surgir nos fins do século XVI com a chegada do inquisidor Heitor Furtado de Mendonça à Bahia, vai até o ano de 1622, pois em 1624, o fintador oficial, falando na Câmara, afirma que, desde aquele ano "não houvera mais finta". Em 1633, ainda há referências contra o judeu no planalto. Depois, um grande silêncio. Deixam-no em paz, definitivamente.


O senhor vereador com a sua vara
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Por esta razão considerável, d. João III recebeu do papa Paulo II o título de "Zelator Fidei".


[2] Esse fato dá causa a que um dos fintados, Diogo Pinto, promova um ruidoso processo, no qual se apura que esse cidadão não é judeu nem cristão novo, mas descendente de uma das mais ilustres famílias de Portugal. O próprio Jorge Falcão, que o fintou, foi obrigado a prestar esta curiosa declaração: "Respondendo ao despacho digo a esta petição digo que o supplicante não foi posto na finta porque se lhe conhecesse os paes nem avós senão pela fama que na terra havia e depois mostrou o contrario conforme os papeis que me mostrou hoje seis de agosto de seiscentos e dezoito anos" (Registro geral, vol. I, pág. 272).


[3] "Atas", vol. IV, pág. 181.


[4] "Anais do Museu Paulista, dep. do T. II, 12.


[5] "Vida e morte do Bandeirante", 201-202.


[6] "Anais do Museu Paulista", tomo V.


[7] "Paulística", 17.


[8] "Historia de la Compañia de Jesus", Pastells, vol. II.


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