Clique aqui para voltar à página inicialhttp://www.novomilenio.inf.br/santos/h0380c15.htm
Última modificação em (mês/dia/ano/horário): 07/28/07 20:04:08
Clique na imagem para voltar à página principal
HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [15]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[15] O que lêem os paulistas

Os jesuítas e os livros - Bibliófilos de Piratininga - Livros sacros e livros profanos de frei Heitor Pinto a Cervantes - O surpreendente inventário de Pero de Araújo

uando o paulista do seiscentismo regressa de suas correrias pelo sertão e se reintegra na tranqüilidade do seu lar modesto, não encontra outras distrações senão aquelas que pode proporcionar-lhe o encanto da família.

São Paulo do Campo de Piratininga é, então, uma vila semimorta que só se anima em dias de festividades religiosas - procissão dos Passos, procissão de Santa Isabel, festa do domingo de anjo, e a do Corpo de Deus, e a da Visitação de Nossa Senhora - porque mesmo as festas oficiais não fogem ao caráter religioso.

Quem não é crente ou, se o é, acha poucas as procissões e não se diverte nas romarias, joga. Encontram-se nos inventários curiosos indícios de como o jogo de azar está arraigado na vila. Tão arraigado que os próprios bandeirantes não se esquecem, quando partem para o sertão, de incluir um baralho entre os papéis de alfinetes e as grosas de pelouros. Quando não o fazem, aparecem, no acampamento já feito arraial, alguns sertanistas "cometas", como é o caso do espanhol Martim Rodriguez, em cujo testamento se encontram estas linhas:

"Francisco de Spinoza deu-me quatro maços de contas e seis baralhos de cartas que lhe vendesse em o arraial de Francisco Barreto por sua conta".

Outras vezes, são dívidas que ficam: "... foi de dinheiro que perdi no jogo" ou "...dinheiro que me deve que lhe ganhei às tábolas" "... dívida que ficou do defunto de dinheiro que lhe ganhei às távolas"...

Nenhum desse papéis se refere à espécie de jogo. Apenas, no testamento de Antônio Machado do Passo, se faz referências a um nome: o truque.

Como vens de longe, vício caboclo!


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Fora disso, cada qual se distraia como puder. Há quem procure essa distração, trabalhando. Outros, tocando violão. Outros ainda, lendo.

Porque em São Paulo do Campo não são poucos os que sabem ler - a avaliar pelos muitos que sabem escrever, segundo se verifica à simples leitura dos testamentos seiscentistas. Se há carência de cultura, não será pelo excesso de analfabetos mas, apenas, pela escassez de livros.

E, em verdade, na vila não há livrarias. Livros, possuem-nos, naturalmente, os padres da vila, jesuítas, carmelitas e beneditinos. Mas, com exceção desses, quem pode dar-se ao luxo de ler, senão por empréstimo?

E, todavia, não são poucos os que, nessa rude e áspera centúria, se dão o gozo espiritual da leitura, nem tão poucos, como poderia supor-se, os volumes de vários gêneros.

Nos espólios de muitos paulistas aparecem, às vezes, entre fatos de vestir, objetos de uso doméstico, ferramentas e armas, os nomes de alguns livros. E que livros! Os mais esquisitos, os mais imprevistos...

Vejamos, por exemplo, o inventário de Matias Rodrigues da Silva, um dos potentados da terra. Matias é um bibliômano. Possui 18 volumes: 16, são de assuntos religiosos e os dois restantes são estes: Arte de Inglaterra e Prosódia.

Não sabemos que interesse pode ter Matias Rodrigues em enfronhar-se nessas misteriosas artes britânicas. É louvável, contudo, vê-lo, nestas terras bárbaras, zeloso do seu belo idioma, procurando preservar a pureza de sua pronúncia com as complicadas regras de ortoépia condensadas na sua raríssima Prosódia.

João da Costa, falecido em 1639, já é menos exigente e deixa, apenas, dois volumes pios: Livro de São José e Livro da Vida Christã. Quer estar bem com o santo e com toda a Corte Celeste, desejo que é também de Clementes Álvares, em cujo espólio se encontram estas duas obras: Contentis Mundi e Confessionario, além de outros volumes que se não especificam.

Manuel Pinto Suniga, com inventário feito em 1627, também é crente e pio, mas de uma religiosidade mais prática, raiando pelo materialismo. Deixa apenas um livro: Aplicação da Bulla da Santa Cruzada.

A Santa Cruzada é um movimento levantado pelo Papa Calixto III, para a defesa dos lugares cristãos ameaçados pelo avanço dos infiéis no Oriente; trata-se, portanto, de uma espécie de imposto sagrado, a aplicação dessa bula. Não sabemos se Manuel Suniga é "tesoureiro das bulas", na renúncia de Aleixo Jorge, ou se é apenas um contribuinte exigente que paga mas quer saber, com todos os detalhes, para que o faz e se, em verdade, os infiéis serão punidos e a sua consciência ficará aliviada. Suniga é crente mas é desconfiado...

Catarina de Siqueira tem uma biblioteca mais vultosa. No seu inventário escrevem os avaliadores: Foram avaliados oito livros de ler de letra redonda a saber a primeira e segunda parte de Heitor Pinto e um de "Novellas" de Miguel Cervantes e um "Confessionario".

A obra de frei Heitor Pinto é, sem sombra de dúvida, a Imagem da Vida Christã, que ainda se encontra em outros inventários. Mas, além dos onze diálogos desta obra célebre, Catarina de Siqueira tem a ventura de poder deleitar o espírito com as "Novellas Exemplares" de Cervantes, publicadas 25 anos antes de sua morte.

Mas Catarina de Siqueira não se contenta com tão pouco. Além desses dois mestres da literatura sacra e da profana, há no seu espólio, ainda, um Fernão Mendes Pinto, possivelmente as suas famosas "Peregrinações", pois não é possível que, num meio jesuítico, se encontrassem suas "Cartas do Japão", de cunho tão irreverentemente antiloiolano. E mais, ainda, com o livro do Marco Pólo português, um volume de "Villegas", que, pela grafia prosódica, parece tratar-se de Esteban Manuel de Villegas, poeta espanhol falecido em 1669.


Interior de casa com poiais, em Santo Amaro
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

O famoso bandeirante Sebastião Paes de Barros que, num de seus grandes rushes, foi parar às margens do Tocantins, contenta-se apenas com um livro: "Horas de Rezar". Este livro também se encontra no inventário de Antônio de Almeida.

Manuel Vandala, falecido em 1626, deixa um volume cujo título se acha mutilado no papel inventário. Aí se lêem as seguintes palavras:"um livro de La Divina..." De que se tratará? La Divina Comedia? Se o for, isso só poderá recomendar o belo espírito desse flamengo de nome tão peninsular e tão latino. O grande poema do grande florentino a semear emoções nas terras bárbaras do Novo Mundo mal desperto - que honra para Vandala!

Martim Rodrigues Tenório, sogro de Cornélio de Arzão, deixa, além de um "Retábulo da Vida de Christo" e dos "Mysterios da Paixão", um exemplar da "Chronica do Gran Capitão", que é, sem dúvida alguma, a biografia do famoso guerrilheiro espanhol do século XVI, Gonçalo Hernandez de Córdova.

Quanto a Mateus Leme, cujo testamento, de 1628, foi feito nas vésperas de sua partida para o sertão, talvez na ciclônica bandeira de Raposo Tavares e Manuel Preto, o seu inventário é dos mais curiosos.

Revela-nos ele, antes de tudo, que Mateus Leme é quem possui a "biblioteca" mais eclética, abrangendo vários ramos do saber humano. Essa "biblioteca" compõe-se, modestamente, de três escassos volumes. É indiscutível, porém, que a quantidade, aqui, não importa no caso, pois Mateus Leme se preocupa, acima de tudo, com a qualidade, armazenando obras que satisfaçam o seu espírito curioso e especulativo, ansioso de saber.

E assim, enquanto pela vila se multiplicam as "Horas de Rezar", os "Contentis Mundi" e as vidas de santos, Mateus conserva estas três obras essenciais: "Segredos da Natureza", que parece tratar-se dos famosos diálogos de Vanini, filosóficos e heréticos, com tendência para um panteismo desnorteante; um volume do "Repertorio", que tudo nos leva a crer seja o "Repertorio das Leys e Ordenações do Reyno", obra de muita importância para um bandeirante em constantes conflitos com as autoridades antiescravistas; e este livro simples, prático e indispensável: "Tratado de arithmetica". Uma obra filosófica, uma jurídica e uma didática.

Que mais pode desejar um homem?

No dia 29 de dezembro de 1617, Francisco Rodrigues da Guerra faz, no sertão de Paraupava, o inventário dos bens deixados, em plena selva, pelo bandeirante Pero de Araújo, integrante da grande bandeira de Antônio Pedroso de Alvarenga. Esta bandeira partira de São Paulo em 1615 e, no ano seguinte, encontra-se em território goiano. Aí falece Pero. Por ordem do capitão, faz-se o inventário dos bens que o acompanham - cobertores, anzóis, armas, ferramentas, roupas, munições, enfim, tudo o que constitui a bagagem de um sertanista, inclusive um tinteiro! E, duas coisas curiosas nos revelam o inventário e o testamento de Pero de Araújo: primeiro, a presença de um menino na bandeira, filho de Sebastião de Freitas. E, segundo, o que se contém no dorso da última página do inventário.

O que aí se contém é apenas isto: uma cópia de quatro estâncias dos "Lusíadas", canto V!

Que fazia o grande épico no sertão? Quem o leria? As estrofes simbólicas do poema imortal serviriam de incentivo e encorajamento aos lusíadas das selvas? É possível. Basta ler-se a estância VII para compreender-se a presença desses versos nas mãos rudes dos ciclópicos sertanistas:

"Passamos o limite aonde chega
O Sol, que para o Norte os carros guia,
Onde jazem os povos, a quem nega
O filho de Climene a cor do dia.
Aqui gentes estranhas lava, e rega
Do negro Sanagá a corrente fria
Onde o cabo Arsinário o nome perde
Chamando-os dos nossos Cabo Verde".

Como o lusíada, eles também passam o limite aonde chega o Sol e onde jazem povos que não são brancos. Ali também, onde um deles fecha os olhos para sempre, a corrente fria do rio Paraupava lava e rega gentes estranhas. Ali, igualmente, como no cabo Arsinário, o Brasil perde o nome. Ali, ainda, como o nauta, eles passam

"por calmas, por tormentas e opressões".

Mas, ainda como o peninsular heróico, eles, lutando e sofrendo, vão conquistar novos mundos para a Pátria.

Estância dos "Lusíadas" nas mãos rudes dos bandeirantes! Que simbolismo impressionante...


Os "Lusíadas" no sertão
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[...]Leva para a página seguinte da série