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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [11]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

Leva para a página anterior[...]                                            NO TEMPO DOS BANDEIRANTES

[11] A matriz, o sino e o banco

Uma igreja difícil - Um quarto de século infrutífero - A igreja da Misericórdia - O sino da Câmara e um vereador exigente - Um caso de cavalheirismo e... Viva a Democracia!

rinta e quatro anos após a sua fundação, acham os paulistas que já é tempo de possuírem a sua matriz. E é assim que, a 6 de junho de 1588, se reune o povo na Câmara da vila, ficando resolvido "que era bom que na dita villa houvesse igreja matriz e vigario". E mais: que a matriz "será erguida entre as casas de Diogo Teixeira e André Mendes", que são eleitos a seguir para angariar os recursos necessários.

Transcorre um ano. E, na sessão do dia 1º de maio de 1589, os senhores vereadores redigem uma representação ao governador geral pedindo-lhe que mande para cá um vigário, um sino e ornamentos para a igreja que se acha em construção.

Parece que o vigário não vem. Nem o sino. Nem os ornamentos. Os paulistas continuam às turras com os jesuítas do Colégio por causa dos índios. A matriz torna-se, por isso, cada vez mais necessária. Mas ninguém fala nela nesse ano. Nem no seguinte. Nem nos demais...

Transcorrem nove longos anos. Que seria feito da igreja?

No dia 30 de maio de 1598, numa sessão da Câmara, os senhores vereadores lembram-se da matriz. Mandam chamar Domingos Luís e Luís Álvares e incumbem esses prestimosos cidadãos de construírem as taipas e o corpo da igreja e a capela em taipa de pilão a 4 réis o taipal com tal condição que os taipes devem ser de cutelo e que dessem lumieiras e batentes e portais...

Para essa obra, autorizam-se os oficiais da Câmara a lançar uma finta sobre a população. Quatorze dias depois, esse contrato é solenemente assinado e os construtores saem, ufanos, para dar início à grande obra que, segundo delibera a Câmara, será onde já estava começada, no meio da vila - local que parece ser a parte Norte da atual praça da Sé.

Passam-se os dias. Passam-se os meses. E... dois anos depois (9 de abril de 1600) a Câmara resolve que os escravos e os moradores começarão as taipas da igreja, com pena de dois mil réis.

O desejo de possuir-se a Matriz é grande, mas a vontade de trabalhar é pequena. Tanto que, dois meses depois dessa ordem, são multados em dois mil réis vários cidadãos renitentes que se negam a auxiliar a construção: Gaspar Conqueiro, João Roiz e seu genro Clemente Álvares, que mais tarde será vereador e juiz, Diogo Miguel Malheta, Custódio D'Aguiar e sua sogra.

Multados os hereges, lá prossegue a tarefa ingente.

As obras, então, vão adiantadas porque, a 15 de julho, o procurador do Conselho requer que se procure um homem para serrar a madeira para o arco da igreja.

A madeira é serrada.

E, vencida mais essa penosa etapa, um longo ano se escoa.

Raia o dia 18 de agosto de 1601. Reunem-se os vereadores. Tratam de coisas sobre o bem comum e, entre estas, a Matriz. Indica-se, então, o procurador Domingos Afonso para, em companhia dos carpinteiros Bartolomeu Bueno e Antônio Nunes, avaliar a madeira que se gastou na igreja matriz a saber lumieiras das três portas e tabuão grande.

Há, porém, mais madeiras para as obras, material que se está estragando ao sol e à chuva, pelo que o procurador propõe a construção de um tijepau de palha para protegê-lo.


"... que se fizesse quartel e pelo porteiro desta Câmara se mandasse apregoar pelas ruas..."
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Passam-se mais sete meses.

Como andarão as obras? Pede-se a Bartolomeu Bueno e a Domingos Afonso que vão espiar os trabalhos.

Eles vão. Espiam. Tremem. Empalidecem. E, no dia 29 de julho voltam ao Conselho com esta notícia surpreendente: que a igreja não podia armar-se por ser fora de compasso... E adiantam que a obra é falsa, de pouca dura e correrá muito perigo se apodrecerem os ditos esteios e naves.

É de crer, todavia, que as previsões pessimistas não se tenham realizado, pois, por longo espaço de tempo não se fala em igreja matriz, nem mesmo para notificar o seu desabamento. Escoam-se os dias, passam os meses, e são só sete anos depois, a 1º de novembro de 1606, que o procurador do Conselho, falando na sessão desse dia, explica que a igreja matriz está alevantada e que não falta mais que janelas e portas, sendo necessário, contudo, lançar-se a finta sobre a população para que as obras possam concluir-se.

Anda-se, então, atrás de alguém que possa levar a bom cabo a dificílima obra e acaba-se por encontrar esse alguém na pessoa do Gonçalo Pires, "pois hé homem que entende de obras e tem ofisiais e posse". E no mês seguinte, a Câmara nomeia Domingos Luís e Garcia Madeira para fintarem o povo - isto é, recolher a taxa para a conclusão da suspirada matriz.

A verdade, contudo, é que as obras da matriz não se acham tão adiantadas como afirmara o procurador do Conselho. Tanto isso parece exato que, seis meses depois, a Câmara manda chamar Cornélio de Arzão para que este construa a igreja. E Cornélio aceita a empreitada, comprometendo-se ainda a fornecer toda pregadura e ferragem que se houver mister, dando a Câmara, por sua vez, quatro moços do gentio da terra e mais gente para o auxiliarem.

Dois meses depois, acontece um fato insólito.

O fintador Francisco da Gama, muito pálido, aparece na Câmara e aí, diante dos conselheiros assustados, afirma que desiste peremptoriamente da honra de fintar o povo.

Por quê?

Porque - explica o homem - os moradores da vila o afrontavam e injuriavam e maltratavam de palavras injuriosas, negando-se ao pagamento do tributo.

Diante do pavor do amigo Francisco, resolvem os senhores conselheiros indicar um homem que fosse pessoa suficiente para arrecadar e receber a dita finta. E acordou-se no nome de Álvaro Neto como o homem suficiente - o "cabra destorcido" capaz de arrancar o dificílimo dinheiro do povo.

Começa a arrecadação. Surge logo o primeiro "caso" na pessoa de Matias de Oliveira, que não somente se nega a pagar, mas com muita astúcia, faz tudo o que pode a fim de impedir que os índios das aldeias vizinhas venham trabalhar na matriz. Não há outro remédio: multa-se o Matias. Multa-se o Matias mas as obras não prosseguem por falta de dinheiro. Não se culpe, porém, o fintador Álvaro Neto que, como vimos, é homem suficiente. O dinheiro foi arrecadado. Mas... na sessão da Câmara, no dia 2 de outubro de 1611, o procurador Jorge de Barros quer saber por que motivo a finta que se lançou para se acabarem as obras da igreja, faltou.

Parece que ninguém sabe onde está o dinheiro. Incumbe a Câmara, então, dois de seus pares, José de Camargo e Alonso Peres, de tomarem contas dos vereadores do ano anterior, para saber-se que era feito do dinheiro arrecadado. O resultado dessa diligência não é conhecido.

É evidente, porém, que o dinheiro, ou não apareceu ou era muito curto, porque, dois anos depois, a 16 de março de 1613, os senhores vereadores resolvem, ainda uma vez, "que se ajunte o povo domingo para se fintar e tratar de se acabar a igreja, para que se não perca o que está feito".

E assim, vinte e cinco anos depois do seu início, a atribulada Matriz ainda está por concluir...


Ferrolho simples de arca em ferro batido
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Há uma igreja, porém, que se inicia muito depois e que termina muito antes: a da Misericórdia, no largo que, até hoje, conserva esse nome. Desde 1608, ela vem substituindo a Matriz, não só na devoção dos fiéis, mas até mesmo nas obrigações dos poderes públicos. E é assim que, quando a Câmara precisa afixar quartéis "em lugares públicos", apela para a igrejinha da Santa Casa.

"... nesta dita villa ás portas da igreja da santa misericordia que ora serve de matriz, pelo porteiro desta camara foi lansado pregão..."

Mas a Matriz... Que será feito dela?

Não se sabe. Depois de março de 1613, a Câmara não se refere às obras senão, indiretamente, vinte e três anos depois. E o caso foi assim: os vereadores do ano de 1632 emprestaram ao vigário o sino da Câmara. É de supor que a matriz se inaugurou nesse ano e, sem sino próprio, pediu emprestada a campana municipal. O sino foi.

Foi, mas não voltou. Tanto que, quatro anos depois, o procurador do Conselho Leonel Furtado requer que "ponham cobro no sino do conselho que os oficiais do ano de mil e seis sentos e trinta e dois emprestarão ao pe. vigario mel. nunes"...

Intimados os vereadores daquele ano, Onofre Jorge e Jaques Félix - o grande paulista fundador de Taubaté - fica-se à espera do sino. Mas o sino, inexplicavalmente, insiste em não voltar. Os vereadores irritam-se e, "visto, já serem notificados os ditos jaques felis e inofre jorge e não quererem obedecer o que visto pelos ditos ofisiais da camara mandarão que fosen novamente notificados jaques felis e inofre jorge que com pena de seis mil rs. pagos da cadeia puzesen o sino neste conselho donde ho tirarão".

Inanis Labor! Passaram-se quatro meses e nada de sino! É em vão que o procurador Leonel Furtado clama e reclama, exigindo o sino! O estóico edil, como o Evangelista, clama no deserto. A disputada campana continua, surda e impávida, na torre da matriz.

Transcorrem assim nove anos. O sino já parece esquecido quando, de repente, na sessão da Câmara do dia 20 de maio de 1645, não se sabe como, nem por que, o procurador Jorge de Sousa sai-se com esta: "requereu que na torre da matrís estava hum sino que hera do conselho que o mandassem vir a casa delle pera que quando se chamase a audiencia ou fosse necessario chamar-se o povo fosse toquandose o dito sino visto ser do dito conselho e estarem em posse delle como constaria por testemunhas..."

Parece que, desta vez, termina o longo exílio da campana municipal porque, posteriormente, vamos encontrá-la na Câmara, tangida pelo porteiro para "juntar o povo", em dias de audiência.

O que se não sabe é se, forçada a devolver o sino da Câmara, ficou a Matriz [1] sem ter com que chamar os fiéis à hora da missa.

É de crer que isso não tenha acontecido, para felicidade dos fiéis.

Já, anteriormente, ocorrera um episódio esquisito.

É o caso de que, na igreja, não há onde os fiéis possam sentar-se. Faz-se uma exceção, apenas, para os senhores oficiais da Câmara, que possuem, no centro do templo, um banco em que costumam sentar-se nos dias de festas religiosas.

Isso, contudo, mesmo nesse tempo, constitui um privilégio, até certo ponto odioso, porque, enquanto os senhores vereadores se refestelam no seu banco, as damas são obrigadas a se acomodarem no chão, sobre seus mantos e suas capas.

Ora, essa deselegância dos senhores edis repercute tão mal que, certo dia - 10 de janeiro de 1632 - o procurador Sebastião de Paiva afirma "que o banquo que estava no meo da egreja em que se assentavão os ofisiais era grande prejuizo e escandalo deste povo por se tratarem mal as molheres que lhe requeria outrosim o que visto pelos ditos ofisiais mandarão que se tirase o dito banquo"...

Como na velha anedota, o banco foi tirado. E, democraticamente, os senhores oficiais da Câmara passaram a sentar-se no chão, ao lado das lindas damas [2]...


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Quanto ao terreno em que se ergueu a Matriz, foi adquirido, por permuta, a Isabel Gonçalves, como se verifica no seu inventário feito em 1633. Aí, com efeito, na relação das terras que ficaram, conta:

 

"Cento e vinte braças de chãos em a vila de São Paulo para a banda de Ipiranga as quais cem braças lhe foram dadas em pago dos chãos que largou para a Igreja Matriz".

 

[2] Esse banco famoso porém, voltou ao seu lugar posteriormente. No testamento de Antônio Bicudo, feito em 1650, encontram-se estas linhas: "Mando que meu corpo seja enterrado na Igreja Matriz desta vila pegado ao assento dos oficiais da Câmara"...


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