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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - BELMONTE - BIBLIOTECA NM
No tempo dos bandeirantes [02]

Conhecido principalmente pela atividade cartunística nos jornais paulistanos, e pelo seu personagem Juca Pato, o desenhista Benedito Bastos Barreto (nascido na capital paulista em 15/5/1896 e ali falecido em 19/4/1947), o Belmonte, foi autor de inúmeros livros, entre eles a obra No tempo dos Bandeirantes, que teve sua quarta e última edição publicada logo após a sua morte.

A edição virtual preparada por Novo Milênio objetiva resgatar esse trabalho, que, mesmo sendo baseado em pesquisas sem pleno rigor histórico, ajuda a desvendar particularidades da vida paulistana, paulista e, por conseqüência, também da Baixada Santista. Esta edição virtual é baseada na quarta edição, "revista, aumentada e definitiva", publicada pela Editora Melhoramentos, São Paulo, sem data (cerca de 1948), com 232 páginas e ilustrações do próprio Belmonte (obra no acervo do professor e pesquisador de História Francisco Carballa, de Santos/SP - ortografia atualizada nesta transcrição):

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[02] A fortificação

Ataques dos carijós - Pedido a Estácio de Sá - Construção dos muros - Avarias e descalabros - Guaritas e baluartes - Decadência 

as, para que a vila não desapareça, arrasada pelos bárbaros, como desaparecera o povoado que Martim Afonso erguera nos campos de Piratininga, urge fortificá-la.

É que são contínuos os assaltos carijós contra a povoação nascente. Tantas vezes eles se repetem, tanto morticínio espalham que, em requerimento a Estácio de Sá "capitão-mor da armada d'El-Rey Nosso senhor" a Câmara da vila escreve que, não satisfeitos de matarem os moradores que tentavam andar pelas imediações da vila, "e não lhes fazendo a gente desta Capitania mal algum, quebraram as pazes que conosco tinham e se ergueram e vieram sobre esta vila e a tiveram em cerco vários dias e assim, de então até agora, haverá dois anos, com assaltos muitas vezes, destruindo os mantimentos e matando alguns homens brancos e escravas e muito gado"...

E acrescentam que "as hordas indígenas não vêm com fundamento dos escravos que podem levar, mas das mulheres brancas que vêm buscar"...

São assim os bárbaros dos quais Gabriel Soares de Sousa [1] diz que são "inimigos tão cruéis que ainda não acabavam de matar um homem, quando o espedaçavam e comiam". Indignados com estes desvarios do gentio, os oficiais da Câmara de Piratininga concluíam a sua petição a Estácio de Sá, com esta sentença lapidar, exigindo um revide em regra:

- "É de melhor vontade a paz por meio da guerra que por outro meio que haja".


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

Em verdade, a continuarem os assaltos das legiões selvagens, São Paulo terá a sorte trágica de Piratininga de Martim Afonso, pois o vilarejo, como afirmam os vereadores ao capitão Jerônimo Leitão, está na fronteira dos índios guanonimis e outros de muitas nações embirabacas e é "atrevido e alevantado". É então que, circundando o escasso casario da vila no local onde hoje se ergue o triângulo central, se levanta a muralha de Piratininga.

Construída de taipa, há quem negue a essa obra militar de São Paulo quinhentista o caráter de muralha, tal como se conhecem as que se ergueram na Europa e na Ásia, em séculos recuados, e cujos cinturões de pedra resistiram aos pelouros das colubrinas, às bombas dos falconetes e das bombardas, aos embates das balestas e catapultas, aos arremessos dos aríetes. A verdade, contudo, é que à simples leitura das Atas quinhentistas se verifica a importância da obra, embora alguns moradores do vilarejo, por comodidade e displicência, a maltratassem continuamente, produzindo-lhe rombos e aberturas para, mais facilmente, descerem as encostas e irem às fontes.

Não se sabe ao certo quando foram iniciadas as obras dos muros, nem os lugares exatos por onde eles corriam. A verdade contudo é que, em 1562, eles ainda não estavam concluídos, como se depreende da ata da Câmara do dia 5 de novembro desse ano, ata em que se requer ao procurador que "se acabassem os muros e baluartes", tendo este informado que "acabaram de fazer e de cobrir um baluarte que está detrás da casa em que mora João Luiz".

Todavia, já dez anos depois, os muros da vila estão sofrendo avarias de toda a ordem, umas produzidas pelo tempo, outras pelos próprios homens. Estando o povoado dentro do cinturão da muralha, os seus moradores, para sair, só podem se servir das portas. Estas, contudo, como não são muitas, obrigam aqueles indivíduos a longas caminhadas, quando o mais prático seria abrir um rombo com uma picareta e sair por ele.

São contínuos, nas atas da Câmara, os casos de cidadãos às voltas com as autoridades por semelhante delito. Há, até, o caso de um indivíduo, Domingos Rodrigues, que abre um buraco no muro e, intimado a fechá-lo, alega placidamente que sua mulher precisa dessa saída para ir à roça com as escravas. E, ante os apelos que dirigem ao capitão Jerônimo Leitão, este dá força à Câmara mandando o recalcitrante reparar o rombo e afirmando que "é necessário a vila ficar cercada".

Ora, diante desses descalabros, há quem se engane supondo que a muralha de Piratininga seja uma obra de amadores, erguida apenas para atrapalhar um pouco as investidas dos Carijós e em desacordo com as regras da engenharia militar. Que esses muros foram levantados de acordo com os preceitos clássicos, exigidos nos trabalhos de fortificação dos burgos medievais e renascentistas, é coisa que ressalta à simples leitura das atas da Câmara dos fins do século XVI. Até mesmo a cooperação efetiva da população, isto é, a prestação do "serviço real de água" previsto nos antigos forais, foi realizada em Piratininga para a fortificação da vila.


Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro

É evidente que não se vai fazer comparação entre os muros de Piratininga e as muralhas do Porto, por exemplo. A gigantesca fortificação fernandina, erguida em enormes blocos de granito, fora feita para resistir aos demolidores engenhos de guerra de Castela que, por mais de uma vez, puseram em risco o povoado castrense. E, em São Paulo, tinha-se que resistir apenas contra as flechas e as lanças das hordas dos Carijós. Mas o simples fato da existência de baluartes nos muros paulistanos evidencia o cuidado com que se procurou pôr a salvo do inimigo todos os panos desse muro, evitando os ângulos mortos que inutilizariam grande parte da defesa.

Por mais de uma vez se encontram, nas atas da Câmara, referências expressivas aos baluartes: "Na dita Câmara requereu o procurador do conselho que se acabassem os muros e baluartes (5 de novembro de 1562)"... "que se acabasse de fazer e cobrir um baluarte que está detrás da casa de João Luiz (5 de novembro de 1562)" "foi penhorado Domingos Roiz por não tapar uma porta que tinha aberta no baluarte"...

Ora, a existência de baluartes nos muros da vila demonstra claramente que o problema do flanqueamento que, em muitos casos era resolvido com os bastiões, encontrou em Piratininga a solução mais prática, pois tirava aos atacantes a possibilidade de trabalharem na base da muralha ou junto aos postigos, a salvo de tiros e flechadas, pondo a defesa em sério risco.

Isso tinha uma importância considerável para o povoado, pois a pequena altura de sua muralha inutilizaria toda a defesa desde que os atacantes conseguissem beneficiar-se dos pontos mortos. O baluarte, permitindo ao defensor dominar todos os flancos, elimina esse risco. A fortificação de Piratininga não era, pois, uma primária obra de amadores. Além disso, a existência de bastiões de observação - "...alevantar uma guarita que está sobre a porta grande" (Atas) - e de seteiras na muralha - "...um par de frecheiras na dita casa para a banda do campo".... (Atas) - indicam a importância da obra militar que cercou Piratininga nos fins do século XVI.

Até 1590, isto é, durante quase trinta anos, encontram-se, nas Atas da Câmara, referências contínuas à muralha. Depois, pouco a pouco, o silêncio vai envolvendo a fortificação e, no fim do século, não se fala mais nela. Parece que a velha defesa se torna inútil, pois os assaltos indígenas são contidos cada vez mais longe. O mameluco surge com sua audácia e, abandonando a inércia da defesa, prepara-se para a ofensiva contra o sertão.

A velha muralha morre.

Vai iniciar-se a epopéia do Bandeirismo.


Arcabuzes de muralha
Ilustração: Belmonte, publicada com este capítulo do livro


[1] Gabriel Soares de Sousa - "Tratado descritivo do Brasil", 1587.


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