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HISTÓRIAS E LENDAS DE SANTOS - RÓTULAS E... - BIBLIOTECA NM
Nos tempos das rótulas e das baetas (17)

Ambas serviam para as pessoas se esconderem, e foram proibidas por lei
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Clique na imagem para voltar ao índice do livroPor influência árabe-mourisca, os primeiros núcleos populacionais paulistas seguiram costumes como a colocação de rótulas nas casas e o uso de um traje conhecido genericamente como baeta, com um capuz que encobria o rosto. Essas histórias foram narradas pelo escritor Edmundo Amaral em sua obra Rótulas e Mantilhas, publicada em 1932 pela editora Civilização Brasileira, na capital paulista, com ilustrações do famoso chargista Belmonte. Um exemplar da obra, esgotada, foi cedido a Novo Milênio para esta reprodução pelo professor e pesquisador santista Francisco V. Carballa:

Edmundo Amaral foi um dos fundadores do Instituto Histórico e Geográfico de Santos (IHGS), ao lado de Júlio Conceição e Francisco Martins dos Santos. Embora suas principais referências no livro sejam à capital paulista, valem também para Santos, onde existiam os mesmos costumes (ortografia atualizada nesta transcrição):

Rótulas e Mantilhas

Edmundo Amaral

SEGUNDA PARTE - Heróica

[...]


Ilustração de Belmonte, publicada no livro

Um rei de 1º de abril

Com a subida de d. João IV ao trono português, sai o Brasil da soberania do Escorial, que é então substituída pela dos Paços da Ribeira. Outra vez a coroa portuguesa, sobre a cabeça de um Bragança, pesa sobre os destinos das terras dos brasis.

A Espanha violentamente prende d. Duarte, e toda Castela se insurge contra essa emancipação à força. Em S. Paulo, centro do núcleo espanhol na América portuguesa, agitam-se os castelhanos que não vêem indiferentes esses novos acontecimentos.

O elemento castelhano constituído pelos Rendons, Buenos, Godóis e Camargos, e muitos outros de muito boa nobreza, senhores de muitos arcos e de muitas terras, se insurge contra a volta de Piratininga à soberania portuguesa.

Conspira-se, então, nas noites escuras e nevoentas de S. Paulo antigo: capotes, capas e feltros desabados, tramam sob a luz de azeite: sublevação de Piratininga, independência paulista, aclamação de um rei e um novo reino surgindo na América Latina. O levante estala numa noite embuçada de outono paulistano.

Pelos becos estreitos um movimento desusado de vultos embuçados se agita na meia luz; passam mantéus, e capotes formigam na Rua Martim Afonso, defronte ao casarão de taipa de Amador Bueno, velho paulista, "homem bom" e ramo de tronco castelhano.

A turba cresce; vultos aumentam; trancam-se as portas de pau nas largas fechaduras mouriscas; e luzes se apagam por detrás das rótulas gradeadas. Súbito estrugem gritos na noite baça!

- Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor! Viva Amador Bueno, nosso Rei e Senhor!

A turba cresce com a grita. Já luzem facas de ponta no escuro, e lâminas de chifarotes rebrilham entre as capas. Um vento de revolução e de combate sacode as gualteiras de baeta caídas sobre as faces escuras, enquanto os sinos do Colégio, acordados, batem rijo. Na frente, um grupo de fidalgos aclama alto. D. Francisco de Toledo Rendon, embrulhado num pelote pardo, aperta um chifarote desembainhado; Antonio de Godói, moreno e hirsuto, num gibão preto de Holanda, sacode uma lâmina que brilha; e o mais moço dos Laras, senhoril e altivo, aperta um bacamarte de dois canos em defesa do novo rei.

E vozes aclamam alto na espera d'el-rei.

Súbito uma porta guincha aguda nas velhas ferragens; uma folha larga de pau range nos gonzos enferrujados, e, da sombra aberta de um corredor, surge para o claro aberto pela turba que se afasta, não el-rei da coroa e manto, mas um vulto assustado de ferragoulo de baeta gualteira caída sobre a face sumida, que dispara a correr sobre o lajedo vermelho.

Alguém ainda grita: É Amador Bueno! - É Amador Bueno! - ecoa toda a multidão, que dispara atrás do vulto de ferragoulo.

- Viva Amador Bueno, nosso rei!

Na frente, uma voz responde esganiçada no vento, num esforço de fidelidade:

- Viva d. João IV, nosso Rei e Senhor!

É Amador Bueno; é o prudente e avisado Amador, que recusa, quase em fraldas, espavorido e embrulhado num côvado de baeta, essa coroa improvisada pelo descontentamento de alguns nobres. É a sua prudência mais forte do que sua ambição, que recusa esse reino fabricado assim à pressa. O povo entretanto grita mais alto! Agora sente-se espoliado. Não é mais um povo em busca de um rei, é um ímpeto popular contrariado; e, no vendaval de capas que batem na sombra, grita-se agora raivosamente, numa exigência: Viva Amador Bueno, nosso rei!

Longe, mais longe, uma voz teimosa responde num eco:

- Viva d. João IV, nosso rei!

O vulto corre, atravessa rocios, quebra becos, envereda em sombras, enquanto o povo grita.

* * *

Agora é no Largo de S. Bento. A igreja escura ergue-se no fundo do rocio na sua arquitetura barroca, e a porta grande do Mosteiro, escancarada e negra, engole na treva um vulto que corre.

A turba cresce; mas, pesadas e vagarosas, giram as folhas largas da porta grande do Mosteiro.

- Viva Amador Bueno, nosso rei!

O povo aclama alto diante das portas fechadas e da fidelidade teimosa de Amador. Uma indignação fuzila nos olhos. Os bacamartes aperrados já apontam para a igreja. De repente, num ímpeto coletivo, o povo arremete para a porta. Mas, devagar nos gonzos, ela se abre uma outra vez de par em par e, na sombra, luzindo à luz das velas, uma cruz de prata brilha alçada no ar, segura por um frade de capuz descido.

Atrás, a irmandade, em alas, segura velas acesas. A multidão recua diante da cruz que caminha a passo defendendo a igreja; na frente, homens tropeçam, arrancando atropeladamente capuzes e enquanto os sinos tocam, o bando dissolve-se, lentamente, de cabeça baixa. Atrás, muito atrás, uma ou outra voz desgarrada ainda aclama: Viva Amador Bueno!

Outra vez na sombra, a cruz recolhe a passo, cercada de lumes. Outra vez as portas fecham-se vagarosamente; um silêncio pesa de novo no largo vazio.

Assim terminou a tentativa de aclamação do muito digno e leal servidor de El-Rei, Amador Bueno da Ribeira, que recusou a coroa que se lhe oferecia no ano de 1640, no dia 1º de Abril.


Ilustração de Belmonte, publicada no livro


[...]

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